Realizou o filme "Tropa de Elite", alguns episódios de "Narcos" e criou "O Mecanismo", a série brasileira que tem como inspiração a operação Lava Jato, que desvendou o maior escândalo de corrupção no Brasil e que ainda hoje aguarda um desfecho definitivo. Falamos de José Padilha que, sabe-se agora, vai estar encarregue de realizar uma nova série — desta vez sobre Marielle Franco, uma ativista e política brasileira, conhecida por defender o feminismo e criticar a violência policial, que foi brutalmente assassinada a 14 de março de 2018.
Quem mandou matar Marielle? É a pergunta que está há demasiado tempo sem resposta e cuja série promete voltar a trazer para a opinião pública.
Mas não demorou muito para que a decisão da Globo em escolher José Padilha como realizador do novo projeto se tornasse polémica. E a explicação está em dois dos projetos por que Padilha ficou conhecido: "Tropa de Elite" e "O Mecanismo". Vamos por partes.
Ainda que "Tropa de Elite", lançado em 2007, tivesse como objetivo pôr em evidência não só a corrupção na polícia, mas também a forma de atuação da polícia militar brasileira — expondo os métodos bárbaros com que abordavam suspeitos ou não —, a verdade é que o filme foi acusado de glorificar a tortura e violência policial. Tudo aquilo, portanto, contra o qual Marielle Franco se insurgiu.
Foi exatamente essa aparente contradição que começou a ser comentada nas redes sociais aquando do anúncio da nova série pela Globo, esta sexta-feira, 6 de março.
"Escolher José Padilha para filmar uma série sobre Marielle é sádico, pois ele fortaleceu a narrativa daquilo que ela lutou contra politicamente. Padilha favoreceu em sua narrativa o BOPE [Batalhão de Operações Policiais Especiais] e sua truculência que Marielle morreu a criticar. É sádico", escreveu no Twitter a ativista Stephanie Ribeiro.
Um utilizador contra-argumentou que o realizador "não favoreceu nada" e que se "o público comprou [a ideia] de que a polícia violenta era maravilhosa", então a culpa não deve cair em Padilla.
Mas o jornalista Henrique Araújo é implacável: "O problema de José Padilha em 'O Mecanismo' não foi apenas o tratamento edulcorado de Moro, mas o de ter falseado a realidade para fortalecer uma narrativa política. É um panfleto lavajatista, pura e simplesmente. Entregar a história de Marielle nas mãos dele é um risco."
O jornalista refere-se, claro, à forma como o juiz Sérgio Moro foi retratado na série e que José Padilha descreveu, por diversas vezes, com vários elogios na forma como instruiu todo o processo da Lava Jato.
A reviravolta aconteceu quando o "The Intercept Brasil", um jornal independente, assinou uma reportagem que comprovava, através de vários ficheiros de áudios, que quando Sérgio Moro foi o responsável pelos processos da operação Lava Jato, trocou mensagens com procuradores, deu conselhos e comentou o processo — tudo o que não é permitido pelo ordenamento jurídico brasileiro.
As revelações mexeram com aquilo que, até à data, era uma das investigações mais complexas do país e levou o realizador a afirmar, em entrevista à BBC, que tinha cometido "um erro de julgamento" a respeito de Moro e que isso iria ter impacto nos episódios futuros da série.
"Parece que Moro tomou a iniciativa de ajudar a acusação. Uma atitude antiética e claramente estúpida. Primeiro, porque juízes precisam ser neutros. Segundo, porque as evidências eram muito claras. Ao se arvorar para além das suas funções, Moro pode terminar soltando políticos que, claramente, depenaram o país em conluio com grandes bancos e construtoras", revelou em entrevista à BBC.
Mas o jornalista Henrique Araújo não se fica por aqui e atira-se, através do Twitter, à problemática das decisões artísticas tomadas pelo realizador em "Tropa de Elite".
"Um lembrete: 'Tropa de Elite' materializa a figura do justiceiro fascista em ascensão, a retórica anticorrupção como salvaguarda para matar e o sebastianismo político à procura de um herói – um capitão, de preferência. Qual o peso desse filme na construção da figura de Bolsonaro?", lê-se.
E continua: "A cena em que Nascimento [interpretado por Wagner Moura] é aplaudido num restaurante depois de autorizar matança no presídio de Bangu era um aviso tão cristalino e incontroverso, uma mensagem ao futuro que a ficção oferecia. Todos os elementos do Brasil de hoje estavam lá, em fermentação, prestes a explodir.
É por isso que o jornalista conclui dizendo entender que o realizador representa "profissional e artisticamente, o mesmo sistema contra o qual Marielle Franco se empenhou em sua luta parlamentar e pessoal" e que, por isso, é um absoluto "contra-senso que sua vida e morte, ainda não solucionada, caia nas mãos dele."
Apesar das críticas, e dos receios de que a morte de Marielle seja retratada de forma muito diferente da que era na realidade, o projeto vai mesmo avançar numa parceria entre a argumentista Antonia Pellegrino, José Padilha e a Globo.
Em entrevista à "Folha de São Paulo", Pellegrino, amiga próxima de Marielle e uma das primeiras pessoas a chegar ao local do crime, explica que a escolha recaiu em Padilha porque "precisava de alguém que pudesse levar a história ainda mais longe". E não esconde os seus motivos para a criação da série.
"O assassinato de Marielle Franco não é o único crime que aconteceu no Rio de Janeiro, mas é sim o único crime capaz de revelar esse esgoto da cidade, que a gente insiste em chamar de maravilhosa, mas que talvez a gente já tenha que começar a chamar de cidade do crime", ressalva. Ainda sem uma data de estreia concreta, sabe-se apenas que o projeto vai estrear-se em 2021 e vai contar com duas temporadas.
Enquanto a primeira temporada vai servir como uma espécie de biografia da ativista, que se espera que culmine com o homicídio que chocou o Brasil e o mundo, a segunda temporada deverá focar-se apenas nos responsáveis e, caso a investigação esteja concluída até lá, a resolução do crime.
Os vários suspeitos do homicídio de Marielle Franco estão ligados à polícia militar e às milícias.