Marian Van Zeller é um dos mais reconhecidos e reputados nomes do jornalismo de investigação a nível mundial. A portuguesa de 45 anos, que começou a carreira de jornalista na SIC, é corresponde do National Geographic há vários anos. O submundo do crime, do tráfico de droga, dos mercados ilegais são o epicentro da série documental "Na Rota do Tráfico", cuja segunda parte chega ao canal National Geographic este sábado, 18 de dezembro.
Mariana Van Zeller e a sua equipa enfrentaram, ao longo de um ano, o desafio acrescido de fazer jornalismo nos quatro cantos do mundo durante a pandemia da COVID-19. Mas nada disso os demoveu. Dos Estados Unidos ao Gana, passando pela Ucrânia, Brasil, Colômbia, Libéria, os 10 novos episódios da série "Na Rota do Tráfico" abordam temas como o tráfico ilegal de marijuana, o mercado negro da cirurgia estética, mulheres líderes do narcotráfico ou os grupos de supremacistas brancos nos EUA, como os Proud Boys, que estiveram na origem da invasão do Capitólio, em Washington, a 6 de janeiro de 2021.
Em conversa com a MAGG, Mariana Van Zeller revela em qual das reportagens mais temeu pela sua vida. A jornalista fez também um balanço, 13 anos depois de "The Ocxycontin Express", a reportagem que lhe valeu um Peabody Award, das consequências que esta teve na epidemia de overdose de opiáceos nos Estados Unidos.
Quanto tempo demoraram as investigações dos 10 episódios?
Começámos em julho de 2020 e acabámos um ano depois, e no meio de uma pandemia global. Também foi um desafio extra, numa série que já é bastante complicada de fazer.
A experiência de fazer estas reportagens durante a pandemia já dava uma reportagem em si.
Não tem ideia dos sítios onde nós fomos fazer testes. Os hospitais na Libéria, as clínicas no meio da Amazónia... Tínhamos de ser testados todas as semanas, às vezes até diariamente. Conseguimos — não sei como — fazer estes 10 episódios, viajando à volta do mundo, no meio de uma pandemia global, com saúde e nenhum de nós apanhou COVID-19.
Isso foi mesmo uma sorte!
Não tem nem ideia! Em agosto de 2020, um dos episódios que fizemos foi sobre o mercado negro das cirurgias estéticas e estivemos, só para dar um exemplo, num clube de striptease em Atlanta, cheio, com centenas de pessoas, ninguém com máscaras, antes de haver vacinas. Eu também estava sem máscara, porque estava a filmar, e nenhum de nós apanhou COVID. Foi incrível. Eu acho que uma das razões pelas quais percebemos, desde muito cedo, que era importante fazer esta segunda temporada, mesmo durante uma pandemia, é porque houve uma explosão gigante de mercados negros durante este período. A partir do momento em que há uma crise financeira, sempre que há pessoas que perdem o trabalho, há muitas que são obrigadas a virar-se para os mercados negros para fazer dinheiro. Percebemos isso e concordámos, em conjunto com a National Geographic, que era importante fazer esta segunda temporada.
Sempre que há uma crise, seja nos países desenvolvidos, seja no Terceiro Mundo, estes negócios crescem ainda mais.
O mais possível. Sejam armas, sejam drogas, sejam esquemas… um dos episódios da segunda temporada é sobre “romance scammers” (esquemas ilegais de relacionamentos amorosos). Houve uma solidão muito grande no mundo inteiro. As pessoas foram obrigadas a ficar em casa durante meses, muitas sem famílias, então houve uma grande explosão deste tipo de redes. Há pessoas que encontraram aquilo que acharam que eram o amor da vida delas. Uma das vítimas com quem filmámos deu mais de 1,5 milhões de dólares a uma pessoa que ela achava que era o amor da vida dela. Veio a descobrir que era um golpista do Gana. Passámos tempo aqui, com vítimas americanas, e depois fomos para o Gana, onde fizemos a segunda parte da história, em que passámos tempo com os próprios golpistas.
O perfil das pessoas que gerem essas redes é muito diferente das que gerem, por exemplo, redes de prostituição ou de tráfico de droga?
É um mercado negro, tal qual os de bens que conhecemos melhor. No Gana percebemos que, muitas vezes, são grupos de pessoas que têm um patrão e uma rede muito parecida com um cartel do México e o tráfico de droga. Cada um tem o seu papel: um é perito em fazer as chamadas, o outro em encontrar as vítimas certas, outro é perito em fechar o negócio. Cada um tem a sua especialidade, trabalham em conjunto e conseguem fazer centenas de milhões de dólares por ano. No ano passado, houve um crescimento de mais de 100% deste tipo de burlas, a nível mundial.
As vítimas são maioritariamente mulheres ou homens?
Isso foi super interessante para nós. Nós passámos tempo aqui nos EUA a entrevistar vítimas e 100% foram mulheres. Quando chegámos ao Gana e começámos a passar tempo com estes burlões do amor, percebemos que a maior parte das vítimas eram homens. E. no entanto, nos EUA, não encontrámos um homem que quisesse falar connosco. Acho que para um homem ser burlado, seja por que motivo for, é mais vergonhoso do que para uma mulher.
"Nenhum país está livre do crescimento dos movimentos de supremacia branca"
Qual foi a reportagem mais desafiante desta temporada?
Não sei se foi a mais desafiante mas foi seguramente a mais assustadora para nós. Foi a reportagem sobre o movimento de supremacia branca. Tive muito mais medo sentada frente a frente com um neonazi, e ouvir pensamentos de ódio que ele tem em relação a minorias, do que me assustei, por exemplo, num superlaboratório de metanfetaminas, rodeada de pessoas com armas, no México. E ver a rápida propagação dessa ideologia de ódio, como é que é feita, a facilidade com que acontece e o efeito que tem tido, em ligação, por exemplo, com ataques terroristas que aconteceram na Nova Zelândia ou em El Paso, Texas, isso foi bastante assustador. A facilidade e a eficácia com que estas redes funcionam é bastante assustadora.
Esta reportagem foi feita antes da invasão do Capitólio, a 6 de janeiro de 2021.
Sim. Aliás, estivemos vários dias com os Proud Boys (grupo de extrema direita norte-americano que terá, alegadamente, planeado o ataque ao edifício), muitos dos quais fizeram parte da invasão. É incrível.
"Tive muito mais medo sentada frente a frente com um neonazi do que num superlaboratório de metanfetaminas, rodeada de pessoas com armas, no México"
Havia sinais de que aquilo poderia vir a acontecer?
Sabe, é incrível. Eu fiquei em contacto com pelo menos um dos membros dos Proud Boys e lembro-me perfeitamente de ele me dizer que iam a Washington no dia 6 de janeiro, que estavam a organizar uma manifestação para esse dia. E depois aconteceu. Até hoje, como jornalista, arrependo-me de não ter estado lá nessa altura, porque um jornalista quer estar no centro da ação. Sabendo, inclusive que passámos tempo e filmámos pessoas, dois três meses antes, que estiveram presentes na invasão. Gostava de ter estado lá e presenciado.
Isto pode vir a acontecer novamente?
Acho que pode vir a acontecer novamente, não só nos Estados Unidos como no mundo inteiro. Nenhum país está livre do crescimento dos movimentos de supremacia branca. Vemos que está a acontecer no mundo inteiro, através da disseminação de informações falsas, de ideologias de ódio. Especialmente numa época em que os governos são obrigados a tomar medidas que não são populares, durante uma pandemia, por exemplo, acho que existe muito esse instinto de nos virarmos contra o governo, de querermos acreditar que as informações são falsas, em relação à medicina, por exemplo e isso é muito perigoso. O trabalho mais importante dos jornalistas é a procura e a disseminação da verdade. E a verdade nem sempre é fácil de encontrar. No caso de “A Rota do Tráfico”, essa verdade geralmente está escondida e protegida. Mas é incrivelmente importante, mais do que nunca. Vivemos numa época de desinformação.
A desinformação é o inimigo invisível o jornalismo?
As redes sociais têm uma grande responsabilidade. Nós, como jornalistas, podemos dizer que os governos têm responsabilidades, que Donald Trump tem responsabilidade, que o André Ventura tem responsabilidade mas eu acho que nós também temos responsabilidade. Hoje em dia, é muito mais fácil pormos o nosso trabalho em compartimentos e tirar conclusões precipitadas. Mais do que nunca, nós, jornalistas, temos de ter a responsabilidade de ter a certeza do que investigamos, do que procuramos, do que publicamos, do que o que tentamos encontrar é, de facto, verdade, mesmo que essa verdade seja desconfortável.
Um bom exemplo disto são as primeiras notícias sobre a propagação da COVID-19 ter sido feita em laboratório, na China. Lembro-me perfeitamente de achar logo que era uma teoria da conspiração e, hoje em dia, não temos a certeza se é verdade. Venham essas notícias de fontes que, geralmente, não são seguras, como alguns partidos políticos, eu acho que é importante para nós, como jornalistas, que verifiquemos a informação que nos é dada.
Há dois episódios que têm as mulheres no centro da narrativa: o das cirurgias estéticas ilegais e o que aborda as rainhas do narcotráfico. Sobre o mercado negro das cirurgias plásticas, as mulheres são um alvo mais vulnerável desta indústria paralela?
O mais possível. Tem muito que ver com as redes sociais, com a enorme pressão que existe em ter um determinado corpo. Por causa disso, esta pressão gigante tem levado cada vez mais mulheres a fazerem coisas extremamente perigosas para conseguirem essa imagem. Estas injeções ilegais de silicone, que são feitas um pouco por todo o mundo, em certos casos, levam à morte. Também vimos clínicas na Flórida, onde aliciam pessoas que não têm dinheiro para irem a clínicas e médicos mais conceituados e que acabaram por morrer em algumas destas clínicas de beira de estrada.
Muitas mulheres negras, também.
Latinas, também.
Há aqui também uma vulnerabilidade associada à raça.
O mais possível. Esteticamente, ter um rabo muito grande e uma cintura muito pequenina é uma imagem que, esteticamente, se tem expandido para todas as culturas, no mundo inteiro. Mas o centro ainda é muito ligado à cultura latina e afro-americana. Muitas vezes são essas pessoas que são as vítimas, as minorias.
E em relação às rainhas do narcotráfico? Como é que essas mulheres chegam a essas posições?
Faço reportagem sobre redes de tráfico de droga há dezenas de anos e, nos últimos anos, comecei a reparar que há cada vez mais mulheres envolvidas no tráfico de droga. Então achei que seria super interessante fazer um episódio focado nessas mulheres. Passámos algum tempo nas favelas do Brasil e nas montanhas à volta de Medellín, na Colômbia. E é incrível que existe praticamente um paralelo entre a economia legal, em termos da emancipação da mulher, e o ilegal. A luta pela emancipação, pelos direitos das mulheres, também existe nos mercados ilegais.
As mulheres são melhores narcotraficantes do que os homens?
Eu acho que as mulheres são melhores em geral, seja nos mercados negros ou legais (risos). Eu acho que seria um mundo melhor se tivéssemos mais mulheres em lugares de poder.
Ficamos com a ideia de que estas oportunidades de negócio ilegal vão sempre existir, enquanto existir dinheiro e pessoas. Onde é que os governos e as entidades supranacionais falham? Até que ponto são cúmplices?
Existe uma falta de visão, quer por parte dos governos, quer por parte das forças de segurança, a nível mundial. É mais fácil por um penso rápido, tratar do final do problema em vez de ir à raiz. Qualquer espectador que veja “Na Rota do Tráfico”, a raiz de todos estes mercados negros é a desigualdade e a falta de oportunidades. Ninguém entra no mercado negro, ninguém nasce a querer ser um criminoso. A maior parte das vezes, as pessoas entram no mercado negro por falta de outras oportunidades. É muito mais difícil abordar a desigualdade que existe no mundo do que por criar um policiamento para tentar parar o tráfico de droga para os Estados Unidos, por exemplo. Mas só quando isso acontecer, quando abrirmos os olhos para a raiz do que causa estes mercados negros, é que vamos conseguir acabar com eles.
"A luta pela emancipação, pelos direitos das mulheres, também existe nos mercados ilegais"
Passaram-se 12 anos desde que lançou o documentário "The OxyContin Express" e os números das mortes por overdose deste tipo de opiáceo não diminuíram. Quadruplicaram. Para si, que mostrou ao mundo esta realidade, é frustrante?
É incrivelmente frustrante porque, sabendo que lançámos o alarme. Começámos a fazer esta reportagem em 2008. Passaram-se 13 anos e a situação está pior do que nunca. É incrivelmente frustrante saber que gastámos grande parte do nosso tempo, recursos, dinheiro, a apontar o dedo, por exemplo, aos cartéis mexicanos e à Colômbia e a todos esses países e não nos apercebemos de que a maior epidemia de drogas na história do país foi feita aqui, nos Estados Unidos.
É frustrante que, através de farmacêuticas, de famílias multimilionárias, que tinham total conhecimento de que isto se estava a passar e não quiseram saber. Aí está a cumplicidade dos governos, das empresas privadas, da economia legal, em relação aos mercados negros. Ao fim do dia, todos nós fazemos dinheiro, todos nós beneficiamos, de uma forma ou de outra, com mercados negros. E existe uma grande falta de vontade de tentar pará-los.
Para terminar, qual é a sua opinião sobre o lançamento da CNN Portugal?
Super orgulhosa! O Nuno Santos [diretor da CNN Portugal] foi o meu primeiro patrão na SIC. Tenho grande carinho pelo Nuno, ele deu-me bastante força na altura em que eu fui viver para os Estados Unidos. Tenho vários colegas que estão hoje em dia na CNN. Precisamos, mais do que nunca, de jornalistas sérios. A abertura de um canal que gera tanta confiança e traz jornalismo à séria, e que espero que aloquem recursos para jornalismo de investigação, vem numa altura super importante.