No momento em que atende o telefone, Roberto Pereira, 43 anos, não deixa que a conversa avance sem antes reforçar um ou outro detalhe. É que até 28 de agosto, o argumentista tinha no ar três formatos nos três canais generalistas em Portugal: "Pôr do Sol", na RTP; "Festa é Festa", na TVI; e "Patrões Fora", que terminou nesse mesmo dia, na SIC. No entanto, e porque os créditos são para ser dados a quem são devidos, reforça que embora tenha ajudado "a construir o esqueleto" de "Pôr do Sol", a minissérie da RTP que brinca, sem fazer pouco, com as novelas, é uma ideia original de Henrique Cardoso Dias, Rui Melo e Manuel Pureza.
"O meu processo de trabalho com o Henrique [Cardoso Dias] passou por construir o esqueleto, ou a estrutura, da série toda e dos seus 16 episódios", conta-nos. Depois disso, continua, seguiu-se a "escrita dos guiões".
"Escrevemos juntos os dois primeiros episódios, mas entretanto recebi o convite para encabeçar o projeto de 'Festa é Festa' e o Henrique acabou por finalizar os restantes episódios sozinho", explica.
Foi um processo dividido em várias partes, tal como o descreve. E ainda que a sua contribuição para aquilo em que a série se tornou tenha sido diminuta, é mais um crédito de escrita que junta a um currículo que já conta com produções como "Bem-Vindo a Beirais", "Aqui Não Há Quem Viva", "Virados do Avesso"ou "A Mãe É Que Sabe".
O "pequeno fenómeno" de "Pôr do Sol"
"Enquanto criadores do argumento, eu e o Henrique sentimos que aquilo tinha, realmente, muita graça. Conseguimos fazer um argumento clássico de novela, com todos os ingredientes base de uma produção destas, em apenas 16 episódios. Logo de início, achámos que o texto era forte e que toda a equipa envolvida, desde atores a produtores, era muito boa", diz.
Inicialmente, havia algumas certezas sobre que tipo de público se iria interessar por "Pôr do Sol", mas à medida que a série — que termina esta sexta-feira, 3 de setembro — foi avançando na sua história, o "pequeno fenómeno" em que se tornou foi surpreendendo.
"Achámos que iria chegar, em primeiro plano, ao meio: à malta que trabalha no audiovisual. Mas também às pessoas que dizem não ver novelas. Mas chegámos também a um público muito mais abrangente no digital e nas redes sociais." Numa base diária, a série é "dissecada no Twitter", num exercício que Roberto Pereira "conhece bem" e acha divertido.
"Houve muito cuidado na construção do texto. As pessoas retiram frames [imagens de certos momentos ou diálogos da série], fazem memes... Talvez o cuidado com o texto explique porque é que a série bomba tanto no Twitter. Isso é giro", diz-nos.
Enquanto profissional do meio e espectador assíduo de séries e televisão, acredita que formatos como "Pôr do Sol" ou "Festa é Festa" vêm marcar a diferença no panorama da ficção e do entretenimento nacional. "Estou nisto há muitos anos e nunca se fez tanta coisa, e tanta coisa diferente, como agora", diz à MAGG.
Os números não deixam mentir. Desde 2020, a ficção e o entretenimento português contaram com formatos como "A Generala" e "Esperança" (OPTO SIC); "Até Que A Vida Nos Separe", "Programa Cautelar" e "Vento Norte" (RTP); "Princípio, Meio e Fim" (SIC); e "Festa É Festa" e "O Amor Acontece" (TVI).
Deixar de olhar para o humor como o parente pobre do prime time
E, acredita, o contexto pandémico terá contribuído para a mudança de um paradigma há muito instituído.
"A pandemia veio fazer-nos dar razão àquilo que já sentíamos há muito tempo: que era preciso deixar de olhar para o humor como o parente pobre do nosso prime time. A novela 'Festa é Festa' veio mudar isso, mas também o 'Pôr do Sol'. De repente, passámos a ter, em prime time, dois produtos de humor e é isso que os faz serem tão acolhidos pelo público", refere.
"A novela quebrou com aquilo que era normal e estou convicto de que, nas grelhas em prime time dos nossos canais, haverá um antes e um depois do 'Festa é Festa'." Quando lhe pedimos para concretizar em que termos é que o formato da TVI terá rompido com o status quo, Roberto Pereira tem a resposta pronta.
"É um produto maioritariamente de humor que vem quebrar com os dramas constantes que vemos nas novelas." É que embora também essas retratem um bocadinho de Portugal, também é verdade que contam "temas que não são tão nossos, como os raptos" ou outras situações de violência que "não são dominantes da nossa sociedade".
"'Festa é Festa' inova em trazer problemas do dia-a-dia, em ser um produto leve e totalmente transversal porque a história passa-se num universo que novos, velhos, ricos e pobres reconhecem: o das aldeias. É uma caricatura, quase real, do Portugal que temos e daquilo que somos enquanto povo."
E ainda que haja tendência para desvalorizar uma história aparentemente simples, "talvez sejam estas histórias simples que as pessoas mais queriam ver depois de meses de grande tristeza e incerteza", referindo-se ao surto da COVID-19 em Portugal e no mundo.
Sobre se a novela teria surgido da mesma forma mesmo que não tivesse existido pandemia, Roberto Pereira acredita que sim. Afinal, "esta ideia de fazer uma novela que se inspirasse, baseasse e tratasse a festa de uma aldeia, parte de Cristina Ferreira, que conhece muito bem esse ambiente".
Mais cedo ou mais tarde, continua, "Cristina acabaria por querer fazer este produto, mas chegou na altura certa". Prova disso, diz, é o facto de o formato estar a chegar a um público que diz nunca ter visto novelas. "As mensagens que mais me têm feito chegar é de pessoas que dizem que os seus maridos nunca viram novelas e que, agora, estão a ver uma pela primeira vez. Passaram a ver esta."
Porquê? O argumentista é assertivo: "Porque é leve, humorada e mesmo que se perca um episódio, está-se sempre dentro da trama."
Inicialmente, no entanto, o anúncio de "Festa é Festa" foi criticado num exercício que Roberto Pereira diz revelar o desdém que, até aqui, tinha o humor em prime time como alvo. "Foi dito que o formato jamais iria ter o público de outros géneros. Criou-se uma espécie de estereótipo face ao humor porque as pessoas segmentam-no. Ou gostam de um humor mais popular ou de outro mais intelectual. Há uma tendência para catalogar o humor e subdividi-lo e isso faz com que, na televisão, raramente haja um produto de humor abrangente — porque as televisões têm medo de apostar."
Além disso, há outro factor em jogo: o facto de todos os produtos de humor em televisão serem feitos "sempre com os mesmos". Nisso, diz Roberto Pereira, "Festa é Festa" fez diferente ao ir buscar outras figuras, como Pedro Alves, que "não era assim tão conhecido do grande público que vê televisão". E embora se possa pensar que isso ajuda a que o espectador comum se lance num formato sem preconceitos, a verdade é que isso não acontece.
Escrever para o prime time de três canais generalistas
Quando o elenco de "Festa é Festa" foi anunciado, recorda o argumentista, "disseram que nunca iria resultar" por ter pessoas que nunca tinham feito novelas na vida, como é o caso de Pedro Alves.
Embora Roberto Pereira tenha deixado a escrita de "Pôr do Sol" e "Patrões Fora" para se dedicar inteiramente a "Festa é Festa", reconhece que, a certa altura, o seu trabalho "foi escrever humor para o horário nobre dos três canais".
"Honestamente? Não vejo mal nenhum nisso. Esta coisa das guerras entre canais... Este é um meio tão pequeno que andar à guerra uns com os outros... acho que não. Deve haver um espírito livre porque todos querermos fazer coisas e trabalhar", diz-nos. O facto de ter abandonado o projeto "Pôr do Sol", finalizado por Henrique Cardoso Dias, e "Patrões Fora", não se deveu a nenhum pedido de alguém, mas sim a uma vontade de se dedicar "de corpo e alma a um projeto que iria ser grande" na TVI.
Apesar disso, e de já ter escrito para as três generalistas ao mesmo tempo, diz que nunca sentiu necessidade de adaptar o seu registo ao estilo do canal, nem de querer "fazer diferente só porque já tinha feito alguma coisa noutra estação".
"A ideia em si, fosse ela qual fosse, já trazia um registo muito próprio que depois foi sendo apurado. Cada produto que fiz é totalmente diferente. Gosto muito do 'Pôr do Sol' e adorei fazer a série. Digo o mesmo de 'Patrões Fora', mas identifico-me muito com 'Festa é Festa'", admite.