Estudava relações internacionais, fazia esqui e nunca tinha pensado sequer cozinhar para alguém que não fosse da família. Todas estas certezas caíram por terra no dia em que Ana Roš decidiu não deixar morrer o restaurante que era dos sogros.
Leu o mais que pôde, viajou para provar comida diferente, falou com chefs de todo o mundo, mas não precisou de sair sequer do vale onde está o Hiša Franko —restaurante que já se tornou uma meca da gastronomia — para criar com produtos locais os pratos que lhe valeram o prémio de Melhor Chef Feminina do Mundo, atribuído na cerimónia The World's 50 Best Restaurants.
Este reconhecimento, a juntar à participação na série da Netflix Chef's Table, mudaram a lógica de um restaurante que se queria de família, mas que se viu obrigado a abrir ao mundo. Mesmo assim, Ana não pensa cozinhar além fronteiras e abre uma exceção esta semana, com uma viagem a Lisboa onde além de participar num jantar a quatro mãos com José Avillez, aproveita para dar a conhecer a Portugal o peixe do Adriático na 11.ª edição do Peixe em Lisboa.
Em Portugal, a comida eslovena não é muito conhecida. Pode ajudar-nos a conhecer melhor a vossa gastronomia?
E difícil falar de comida tradicional na Eslovénia, porque é um país super diversificado. Geograficamente, talvez seja um dos países com maior diversidade do mundo, uma vez que, apesar de ser possível atravessar o país de norte a sul em duas horas e de este a oeste em duas horas e meia, a cada 50 quilómetros a geografia muda completamente, o que acaba por influenciar também os produtos e as tradições. No norte comemos mais fermentados, nas montanhas mais altas comemos carne de cordeiro e de cabra, até porque como está mais frio precisamos de comida mais pesada. Mas no sul privilegia-se a comida mediterrânea e perto da costa come-se mais peixe.
Consegue misturar todas essas características nas suas criações?
Nem por isso. O nosso conceito é o do ‘quilómetro zero’, até pelas características do restaurante. Por ser tão longe de tudo, preferimos usar produtos locais e de produção local. Claro que o mundo mudou e agora é mais fácil ter acesso a tudo o que precisamos, mas há vinte anos sentimos a necessidade de pensar local. E é fácil fazer isso, basta subir à montanha, dar uma volta de 360 graus e usar apenas aquilo que conseguimos ver dali.
Mas o restaurante não tem só comida eslovena. Acaba por ser uma extensão da sua procura por inspirações de outros países?
Começamos por conhecer bem os ingredientes mais tradicionais e claro que acabamos sempre por pôr nos pratos um pouco da nossa personalidade. Não fazemos comida 100% tradicional, até porque eu sempre viajei muito e de cada uma dessas viagens trago novas influências. O peixe que comi no Vietname, a mistura de sabores da China… há sempre algo que me fica de cada viagem e que acabo por usar nas minhas criações.
Há algum país que a tenha influenciado mais do que todos os outros?
Adoro a precisão da comida japonesa. Temos um prato no restaurante semelhante a um dashi (caldo japonês), mas sempre feito com ingredientes locais.
A comida é uma forma de apresentar um país ao mundo?
Claro que sim.
É esse o seu objetivo?
Não diria que é um objetivo, mas acaba por ser uma consequência do meu trabalho. Sempre que viajamos, acabamos por conhecer o país através da comida, seja num restaurante tradicional ou numa cozinha de luxo. A cozinha fala uma linguagem democrática.
A Ana não estudou cozinha e, por isso, foge um pouco ao percurso habitual dos chefs. Alguma vez viu isso como uma desvantagem?
Todas as formas de evoluir são válidas, tudo depende da pessoa. Eu vejo vantagens e desvantagens no facto de não ter tido aulas de culinária. Podem falhar-me algumas das técnicas básicas que se ensinam em todas as escolas, mas por isso tive também uma maior liberdade para criar.
Se não andou em escolas de cozinha, como é que aprendeu a cozinhar?
Eu tinha livros em casa e produtos para explorar. Procurei saber mais ao falar com amigos que sabiam do assunto, assisti a conferências, fui a muitos restaurantes. Claro que cometi erros e tomei más decisões, mas acredito que é isso mesmo que me levou a resultados fora do comum. O ir sempre tentando é a prova de que não chegaste ao ponto final do teu conhecimento.
Lembra-se do primeiro dia à frente do Hiša Franko? Foi caótico?
Ainda é! Foi muito difícil coordenar toda uma equipa quando me faltavam conhecimentos básicos.
O menu foi todo pensado por si?
Não há um único prato que não tenha saído da minha cabeça e do meu coração. Às vezes a inspiração vem da natureza, outras vezes vamos ao mercado e vemos um novo legume e pensamos: ‘o que é que eu posso fazer com isto?’
Dos chefs que já conheceu, tem algum que considere uma espécie de guru?
Não tenho gurus em nada na minha vida. Nunca tive um ator preferido, um cantor preferido, nunca tive heróis na minha vida. Sempre acreditei que cada um deve ser o seu próprio herói.
A Ana é a sua heroína?
Posso parecer muito auto-confiante, mas não sou. Gostava de ser uma heroína para os meus filhos, mesmo que cometa erros. Todos os heróis cometem erros. Mas sim, acho que sou a minha heroína, pelo menos a heroína da minha história.
Quando é que percebeu que é realmente boa naquilo que faz?
Nunca, nem acho que alguma vez irei ter essa perceção. Acho que quando alguém que trabalha na área criativa chega a essa conclusão, isso pode ser um bloqueio. A humildade é muito importante na nossa área.
Gostava de passar as fronteiras da Eslovénia?
Não. O Hiša Franko só faz sentido onde foi criado, porque não vive apenas da cozinha, mas sim de todo um conjunto de produtos e produtores muito específicos. Já o Hiša Polonka, um restaurante de comida tradicional que abrimos no ano passado, talvez possa ser replicado noutras cidades, mas nunca fora do país.
Participar no Chefs Table foi a sua forma de ir além-fronteiras?
Se até o programa ir para o ar o Hiša Franko era um restaurante reconhecido na Europa, passou a ser um destino gastronómico mundial.
Considera então que há um antes e um depois do Chef’s Table?
Completamente. Obrigou-nos até a mudar a lógica do restaurante. Passou de um restaurante familiar em que eu e o meu marido decidíamos tudo, para uma estrutura mais profissional.
No meio de tanta coisa positiva, como é que se lida com a crítica?
Eu adoro críticas! Mas atenção, não gosto é de críticas estúpidas. Quando criticas tens que ter noção do que estás a fazer, porque vais sempre magoar alguém. Mas quando alguém critica com o intuito de querer ver-te fazer melhor, aí sim faz sentido.
Qual foi a melhor crítica que lhe fizeram?
Temos um crítico muito conhecido na Eslovénia que sempre adorou a nossa comida. Um dia, visitou o restaurante e deu-nos uma nota entre 4 e 5, quando normalmente dava sempre 5+. Nunca me hei-de esquecer. Abri o jornal, fechei e disse ‘O quê?’. A minha primeira reação foi a negação, mas logo a seguir tentei perceber se ele teria razão. E tinha. Provavelmente, se essa crítica não tivesse sido feita nunca estaria onde estou agora.
Criticou a comida ou a chef?
Acabou o texto com a seguinte frase: ‘a chef perdeu o controlo da cozinha’. Pensei muito sobre o assunto e acabei por lhe dar razão. Foi aí que percebi que sou responsável por todos os ingredientes, todos os processos e todos os pratos que saem da minha cozinha. Não há desculpas. Quando cometemos um erros temos duas hipóteses: recuar ou ir em frente, eu escolho sempre ir em frente.
E críticas destrutivas, recebeu muitas?
É algo comum hoje em dia. De repente, há uma democracia que faz com que toda a gente possa ser crítico gastronómico, mais não seja no TripAdvisor.
Ser uma mulher num mundo de homens faz com que esteja sempre na defensiva?
De todo. Tudo gira em torno da qualidade da cozinha. Eu nunca conheci um chef homem que não me respeitasse por ser mulher nem nunca me senti rejeitada neste mundo.
A Eslovénia é um dos países mais bem cotados nos rankings de igualdade entre género. Sente isso?
Sim. Temos mais ministras que ministros, temos grande empresas em mãos femininas e até nas indústrias mais tradicionais é muito comum ver mulheres a liderar.
E na cozinha, isso também acontece?
Não acho que seja um meio sexista. Há mais homens que mulheres, é um facto, mas isso só acontece por uma razão: é um mundo duro e exige um tipo de compromisso muito forte. É inevitável que nós mulheres sintamos culpa pelo tempo que não estamos com a família, com os filhos. A cozinha é algo que exige uma dedicação total e sentido de autoridade, algo que nem todas as mulheres têm.
Li que no ano passado despediu cinco chefs homens. Imagino que não por serem homens.
Isso foi tirado do contexto numa entrevista que dei à CNN. Eu não os despedi, apenas não os contratei. Em todos eles notei que não lidavam bem com o facto de terem uma autoridade feminina acima deles. Eles não aceitavam a presença de mulheres que podiam ser tão boas quanto eles. Se calhar apenas por não serem tão bons quanto se julgavam. Na verdade, agora que penso, um deles era mesmo um idiota. Não sabia desossar um cordeiro ou arranjar uma truta, algo bastante básico, e também não aceitava ajuda de quem o sabia fazer. Dizem que eu tenho uma atitude positiva na cozinha, não sou uma idiota, nem mesmo quando devia. Para isso tenho uma chef comigo, americana. Ela sim é dura quando é preciso.
Foi considerada a melhor chef feminina do mundo. Acha que faz sentido esta divisão entre homem e mulher na entrega de prémios?
É muito difícil que uma mulher seja a melhor chef, porque globalmente temos uma cozinha feita 90% por homens e apenas 10% por mulheres, ou seja, há uma chance muito maior de um homem ser sempre considerado o melhor. Acho que este prémio foi criado para mostrar que há mulheres fortes na cozinha e que podem servir de modelos. Eu vejo isto como algo positivo e por isso não percebi quando algumas pessoas me perguntaram se eu iria aceitar o prémio. Claro que vou, é um honra. Podia ser qualquer pessoa e fui eu a escolhida.
Este prémio serve igualmente para falar sobre a importância da igualdade de género, também na cozinha?
É uma forma de mostrar que temos dúvidas, que às vezes vamos para um canto chorar, que não conseguimos ser sempre multitasking como se espera. Eu não acredito que a cozinha tenha que ser dividida entre homens e mulheres, a cozinha é uma só, não tem género. E talvez por ter tantos homens como mulheres na minha cozinha o ambiente seja tão bom. Se entrar lá pessoas a rir, a falar, não há gritos, há chefs mulheres, chefs homens e miúdas de lábios pintados.