"O facto de haver alguma relação afetiva, ou outra, não desvaloriza, de forma alguma, a natureza de violação", diz à MAGG o advogado António Garcia Pereira. Esta segunda-feira, 30 de agosto, Rúben Semedo, o central português e atual jogador do Olympiacos, foi detido por suspeitas de violação a uma jovem de 17 anos que chegou a ser descrita, pela News 24/7, como sua namorada.

Apesar de não ter ficado provado que o jogador e a jovem mantinham uma relação, e inclusive já ter sido dito que não se conheciam anteriormente, a notícia desta segunda-feira gerou vários comentários nas redes sociais. "Se era namorada, porque dizem que foi violada?" ou "mas se era namorada (...) com 17 anos já deve é ter a escola toda", foram apenas alguns exemplos.

Rúben Semedo detido por alegada violação à namorada de 17 anos
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Daniel Cotrim, psicólogo e responsável pela área da violência de género na Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), explica à MAGG que falta na sociedade a necessidade de compreensão daquilo que é o consentimento em relações sexuais entre casais ou pessoas desconhecidas. "Quando uma pessoa não quer, a outra não faz e não avança. O consentimento não tem de ser um sim claro ou um não claro. Ou seja, falta perceber que a ausência desse não ou desse sim não pode passar por um talvez. Tudo tem que ver com o outro estar atento aos sinais da pessoa com quem se encontra."

Como responsável por este tipo de casos na APAV, Daniel Cotrim assume que tudo o que tem que ver com a violência sexual no âmbito das relações de intimidade, como o namoro, não é um tema ou um género de denúncia que surja no imediato. "Normalmente, aquilo que nos chega primeiro é a violência mais emocional, física e psicológica e só depois, porque é preciso ganhar confiança e empatia com os técnicos, se fala das questões de violência sexual", diz.

"A pressão de pares leva a que as relações sexuais aconteçam e sejam, muitas vezes, marcadas pela própria violência"

Daniel Cotrim frisa que há ainda por parte dos jovens uma ideia, que também as pessoas mais velhas têm, de que as relações sexuais fazem obrigatoriamente parte do relacionamento. "Claro que fazem parte, mas aquela ideia de que têm de ter relações, porque senão o namoro acaba ou porque senão deixam de ser iguais ao resto dos colegas ou dos pares, está errada. A própria pressão de pares leva muitas vezes a que as relações sexuais aconteçam e sejam muitas vezes marcadas pela própria violência."

Segundo António Garcia Pereira, advogado e um dos impulsionadores da petição para a conversão do crime de violação em crime público, são ainda muitos os que tentam "desculpar" uma violação pela possível relação que o agressor tem com a vítima, incluindo juízes. Mas o especialista frisa que, em termos legais, a situação é, ou deveria ser sempre, julgada da mesma forma.

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Em causa está o crime de violação nos termos do Artigo 164.º do Código Penal. "Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa: sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou  sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos;é punido com pena de prisão de três a dez anos", diz a lei portuguesa.

Ainda assim, e apesar de o artigo ser aplicado a qualquer tipo de violação, António Garcia Pereira assume que há uma jurisprudência criminal que tem vindo a ser alterada, mas ainda tende a "desculpabilizar ou a tratar de forma menos severa este tipo de realidades". O advogado aponta como exemplo um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de há cerca de 30 anos, que se mostrava "compreensivo" para com o ato de violação de duas cidadãs estrangeiras pelo facto de se passearem de calções "em plena coutada do macho ibérico".

"Esta expressão, que está muito por trás daquela lastimável teoria do 'elas estavam a pedi-las', consta num acórdão do Tribunal de Justiça no final dos anos 80, mas, depois disso, temos muitos casos mais recentes, como é o subscrito pelo presidente da associação sindical dos juízes, onde se procura justificar a violência sexual sobre uma mulher que estava inconsciente pela bebida num bar em Gaia e que foi violada por dois funcionários, por exemplo", diz à MAGG António Garcia Pereira.

"Se a mulher diz não, tudo o que passe para além disso representa a prática do crime de violação"

Segundo o especialista, há ainda "uma grande tendência para procurar atenuar, senão justificar, os atos desta natureza com base no comportamento da vítima".

"Porque estava vestida de uma determinada forma ou porque seduziu de uma determinada maneira, além de que essa teoria tem ainda por trás o pressuposto de que os homens são umas bestas e não conseguem controlar os seus instintos e que, a partir de um determinado momento, tudo se justifica. A verdade é que se a mulher diz não, tudo o que passe para além disso representa, a meu ver, a prática do crime de violação", afirma António Garcia Pereira.

Daniel Cotrim, da APAV, explica que é este julgamento por parte da sociedade que faz com que, muitas vezes, as vítimas não tenham coragem de denunciar os agressores. "Uma agressão sexual colide sempre com as nossas questões mais íntimas. A sexualidade faz parte do nosso nível mais íntimo e expô-lo é, muitas vezes, complicado. Depois é também pela vergonha do que os outros vão achar e dizer, sobretudo quando se trata de uma rapariga."

Para que menos situações destas se verifiquem, Daniel defende que é preciso trabalhar, principalmente com os mais jovens, as questões de inter-relações pessoais positivas e o saber dizer que não. "O 'não' nem só nestas situações, mas também em relação às drogas ou outros comportamentos desviantes. Acho que há a fazer um trabalho grande de prevenção de violência".

Advogado defende a conversão do crime de violação em crime público

António Garcia Pereira defende ainda que falta converter o crime de violação em crime público para poupar as vítimas de todo um processo doloroso ao qual ainda são sujeitas. Para isso, alerta para a importância da petição, que conta já com mais de 83 mil assinaturas,  subscrita pelo próprio, por Francisca Meleças De Magalhães Barros, Isabel Aguiar Branco, Manuela Eanes, Dulce Rocha e Rui Carlos Pereira.

"É preciso que o desencadeamento do procedimento criminal não esteja dependente da iniciativa exclusiva da queixa da vítima, porque nós sabemos perfeitamente que esta se encontra em situação de grande constrangimento psicológico, social, físico, e, por vezes, até financeiro. Isso conduz a que, não sendo um crime público, tal e qual como se passava antigamente com o crime de violência doméstica, as pessoas não apresentem a queixa ou a desistência da queixa acabe por fazer com que não haja procedimento criminal."

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Além disso, o especialista considera ainda que falta preparar melhor o sistema para apoiar a vítima. "Ainda hoje, nem sempre as vítimas deste tipo de crime são bem tratadas pelas autoridade policiais e judiciários. Além disso, por outro lado, um processo deste tipo significa que a  vítima terá de reviver uma situação profundamente traumática o que leva, muitas vezes, a questionar sobre se valerá a pena tornar a reviver esse trauma".

Segundo o advogado, na maioria das vezes, as pessoas nem apresentam queixa porque sabem por que situações vão ter de passar. "Se a violação for praticada por alguém com quem há um relacionamento quotidiano, mais ainda". Contudo, alerta para que "o facto de existir alguma relação afetiva não desvaloriza a natureza de violação, de forma alguma, se o parceiro forçar 'por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir' ao ato sexual."

Daniel Cotrim explica também que o esquecimento deste tipo de casos não está relacionado com o facto de ser difícil comprovar que existiu uma violação no namoro, mas sim com o facto de o sistema não estar organizado para trabalhar com as vítimas de violação da melhor forma.

"Quando nos forçam a falar 50 vezes sobre a mesma coisa ou quando os exames médico-legais podem demorar muito tempo, tudo isto são, muitas vezes, obstáculos a que as vítimas queiram falar", refere. Para contrair este medo, Daniel Cotrim reforça que uma pessoa que seja vítima de uma violação, no âmbito no namoro, pode também ligar para 116006 da APAV. "O que vamos fazer, por um lado, é avaliar o grau de risco em que a pessoa se encontra, isto tudo debaixo do consentimento da própria vítima, articular com outras entidades, e prestar apoio psicológico e jurídico", remata.