Terminados os primeiro quatro anos de mandato de Donald Trump, eleito em 2016, os Estados Unidos vão esta terça-feira, 3 de novembro, às urnas com o propósito de eleger um novo presidente ou reforçar a confiança no atual. Só que este ano, as eleições acontecem num contexto atípico e muito particular em que o mundo inteiro se vê afetado pela pandemia do novo coronavírus, à qual o país não escapou: no currículo da administração Trump figuram mais de nove milhões de casos diários de infeção e mais de 230 mil mortes no país.
Nas campanhas eleitorais, Joe Biden, o candidato pelo partido Democrata, atacou a má gestão da pandemia do atual presidente, que politizou o uso da máscara, recusou a fechar o país e acabou infetado depois de longos meses de desvalorização e negacionismo.
Do lado do partido Republicano, Donald Trump fez das suas intervenções uma rede social, transportando para os comícios e para os debates presidenciais a mesma retórica incendiária e acusatória que usa no Twitter. Recusa-se a fechar o país para conter a pandemia e defende que a economia está a recuperar, numa altura em que os EUA enfrentam uma terceira vaga do surto.
E ainda que as últimas sondagens reforcem a vantagem de Joe Biden face a Donald Trump, a vitória está longe de ser garantida. E nem mesmo o facto de estados como o Texas estarem a assinalar índices de votação elevados (até 31 de outubro, mais de 9 milhões eleitores votaram no Texas, representando um aumento de 57% face às votações em 2016) servem para prever, com exatidão, o que pode acontecer.
As eleições como "uma grande confusão"
A única certeza possível para estas eleições é que serão "uma grande confusão". Quão grande? Essa é a pergunta para um milhão de euros. Quem o diz é Edson Athayde, especialista em campanha política e um dos responsáveis pela campanhas de António Guterres para primeiro-ministro, em 1995 e 1999, de Eduardo Ferro Rodrigues, em 2002, e de António Costa, em 2015.
A única forma de essa confusão não acontecer, explica à MAGG, passa pela vitória de Joe Biden em todos os estados — pintando todo o mapa do país a azul, a cor dos Democratas. Ainda assim, alerta que, segundo as sondagens que têm vindo a ser reveladas, "não há uma diferença absurda entre os dois candidatos em nenhum dos estados", pelo que não é dos cenários mais certos.
Mas para o publicitário e estratega político, um dos cenários prováveis de se concretizarem na terça-feira é uma vitória clara de Biden "em estados difíceis que não se esperava que fosse ganhar", como é o caso de Ohio — e cujas sondagens dão vantagem clara ao candidato Democrata. "Se isso acontecer, o mais provável é que Donald Trump dispute as contagens e defenda a necessidade de uma recontabilização quer por alegada fraude ou por acreditar que ainda falta apurar os votos de todos os estados", e não tem dúvidas de que o atual presidente fará de tudo para "empatar o processo eleitoral".
Outro dos cenários possíveis, mas menos prováveis segundo Athayde, passa pela vitória de Trump, que pode ser decidida apenas por um delegado. Caso isso se verifique, haverá pouco interesse do partido Democrata em entrar numa disputa legal. A explicação é simples: "Numa disputa dessas, o último voto cabe sempre ao Senado que será sempre favorável a Trump por contar com uma maioria republicana nos assentos."
E a probabilidade de o mundo ser surpreendido, tal como em 2016 quando se esperava que Hillary Clinton vencesse, também está presente em 2020, independentemente de as sondagens darem uma vantagem clara a Joe Biden. Para Edson Athayde, essa possibilidade, e a impossibilidade de prever com exatidão, explica-se com o facto de estas eleições não corresponderem ao padrão.
Das possíveis surpresas ao telefonema de concessão
"Com a polarização destas eleições, é possível que as pessoas que supostamente não sairiam de casa para votar, o façam este ano, o que se traduziria num reflexo inesperado nas urnas e não previsto nas sondagens que têm vindo a ser conhecidas. Quando Barack Obama ganhou a sua primeira eleição, essa vitória significou um ponto fora da curva através da mobilização da população jovem que decidiu ir às urnas votar. Estaria sempre previsto ele ganhar, mas não com o voto jovem", refere, lembrando que esta possibilidade nunca surgia nas projeções.
E continua: "Se as eleições com um Trump enquanto candidato já foram uma surpresa, estas com ele enquanto presidente poderão ser ainda mais surpreendentes. Especialmente porque se trata de um candidato extremista, radical e que se dirige a uma facção específica do país que pode ser mobilizada de forma tão impressionante e inesperada, capaz, até, de atropelar o voto dos Democratas."
Essa possibilidade, por sua vez, pode levar a que muitos dos eleitores "que talvez só votem de vez enquanto" estejam, agora, "a correr às urnas com o objetivo claro de tentar tirar Trump do poder". Tudo isso leva o estratega político a admitir que esta é uma eleição que este ano acontece num contexto muito específico e através de moldes muitos novos, "o que torna difícil encontrar alguém que possa ter vivido eleições tão polarizadas como estas, em que tudo é novo".
A juntar a isso, espera-se também que nestas eleições se registe um número expressivo de votos antecipados por correio. Isso significa que o vencedor pode não ser conhecido na madrugada de terça para quarta-feira? Depende. "Cada estado, tem a sua máquina, o seu tipo de votação, a sua tecnologia e o que será votado. Neste momentos, há leis que estão a ser votadas e estados que estão a votar orçamentos", o que significa que cada estado do país terá o seu tempo.
Haverá, no entanto, uma projeção. E aqui a questão complica-se outra vez. A menos que as primeiras projeções dêem uma vitória clara e inequívoca a Joe Biden, analisando os estados azuis e os estados decisivos que podem pender para ambos os lados, Edson Athayde diz que o partido Democrata não arriscará uma declaração de vitória. Mas mesmo que isso aconteça, está no ar a dúvida sobre se Donald Trump fará ou não o telefonema de concessão — ou seja, o momento em que "o derrotado concede a vitória para o rival" que, "do ponto de vista informal, é uma declaração de que as eleição acabou independentemente de ainda haver votos para contar".
"Olhando para o percurso de Trump, parece impensável que ele faça uma coisa dessas [o telefonema]. Enquanto não fizer isso, há eleições mesmo que os votos estejam todos contados", explica.
Sabe-se, aliás, que está nos planos de Donald Trump aproveitar-se da demora na contabilização dos votos por correio para se declarar vencedor assim que surgir à frente nas primeiras projeções e com vantagens claras em estados como Ohio, Florida, Carolina do Norte, Texas, Iowa, Arizona e Georgia, diz o jornal digital "Axios" citando fontes próximas do presidente dos EUA.
Se Trump não reconhecer derrota, como já fez questão de dizer em diversos momentos caso esse seja o desfecho, o caos adensa-se.
Pode um presidente recusar-se a sair do poder?
Para o especialista em comunicação política, "Trump não esconde a vontade de, pelo menos, desafiar o sistema", embora os sinais recentes dêem conta de que o atual presidente não tem "o apoio da máquina do Estado e da máquina militar ao ponto de conseguir fazer isso". Mas recorda que "há guerras civis que começam por menos".
"Há que entender que a própria constituição americana previu o papel das milícias e de todas as pessoas armadas pelo país inteiro, mais num estado do que noutros, que têm vontade de desafiar o sistema e o próprio conceito dos Estados Unidos. Eles sempre existiram, mas agora estão num canto à espera. Quando Trump diz que não vai aceitar os resultados eleitorais, ele está não a falar para o sistema, mas para essas milícias", explica.
"É o chamado apito para o cão ao dizer: 'Se eu perder, saiam às ruas e defendam-me.' E o problema é que há maluquinhos suficientes para responder à chamada e fazer um grande estrago." Mas Athayde reforça que mesmo a materialização desse cenário é difícil de prever.
Também a historiadora Raquel Varela diz que um cenário em que as milícias sejam envolvidas parece-lhe improvável. "Não sei até que ponto é que Donald Trump estaria disposto a apoiar-se na existência de milícias para pôr em causa a própria estrutura eleitoral no país. Ponho várias dúvidas de que, neste momento, isso seja mais do que um bluff, mas não descarto essa hipótese para um futuro."
Um Estados Unidos mais desunido pós-eleições
Seja qual for o desfecho das eleições presidenciais, os próximos quatro anos prevêem-se relativamente difíceis. Caso Donald Trump ganhe a reeleição, espera-se um reforçar e intensificar da sua retórica incendiária, da desvalorização da pandemia e da discriminação racial e de género. Se, pelo contrário, Joe Biden conseguir a vitória, o partido Democrata terá pela frente um senado de maioria Republicana.
Para a historiadora Raquel Varela, é impossível fazer qualquer previsão uma vez que a América é, cada vez mais, um país "dividido e relativamente instável" e, nessas condições de maior instabilidade política, social e económica, qualquer capacidade de previsão diminui. Apesar disso, admite um possível cenário de impasse que impeça a passagem de leis e medidas no senado como, aliás, já se verificou no passado.
"A governação pode tornar-se mais difícil porque há mais divisões. Isto mostra, aliás, que os governos já não conseguem governar como antes, porque as classes sociais, que são várias, viram o seu bolo a diminuir a partir de meados de 2008. Mas este é um cenário que não pode vigorar durante muito tempo, até porque estamos a falar de uma das maiores potencias mundiais", explica. A única forma de se poder assistir a um apaziguar da sociedade americana, continua, seria através de políticas reformistas a serem encarnadas por Bernie Sanders, que perdeu a nomeação Democrata para Joe Biden.
"Sanders teria o papel de conter uma exacerbação dos antagonismos sociais que decorrem do crescimento brutal da desigualdade social na América. Como não foi ele a ganhar a nomeação, o que acontecerá, quer com a vitória de Joe Biden ou de Donald Trump, será uma contínua intensificação dos problemas sociais, das greves e dos protestos de uma classe operária que está provavelmente a ultrapassar um dos momentos mais questionadores da ordem da sua história como nos anos trinta e no final da Segunda Guerra Mundial", admite.
Já Edson Athayde acredita que, apesar de se anteverem momentos difíceis, a mudança de presidência, a acontecer, pode servir para "realinhar o sistema imediatamente após as eleições com as instituições a tentar remediar os muitos estragos que foram feitos". Esse processo aconteceria talvez no início de 2021, depois da tomada de posse de Joe Biden, com o país a ser pensado pelos dois partidos.
"Se Joe Biden for eleito, enfrentará um senado Republicano e o país voltará a ter que ser pensado pelos dois partidos através de propostas bipartidárias que sejam capazes de reunir votos de um lado de outro", explica. Era isso, aliás, que se verificava até à eleição de Donald Trump em 2016.
Sobre desfechos concretos para uma noite que se adivinha caótica, tanto Edson Athayde como Raquel Varela não se comprometem. Face à instabilidade política e social, as previsões são sempre falíveis e, diz Edson, ao reforçar-se um total desrespeito pelas instituições, como a recusa de Donald Trump em aceitar os resultados eleitorais que não lhe forem favoráveis, traduz-se em "anarquia", "bagunça" e caos.