Numa altura em que cada vez mais se fala da falta de condições das prisões portuguesas, ou da carência de guardas para lidar com a quantidade de reclusos, a MAGG entrevistou José (nome fictício). O guarda prisional trabalha há mais de 15 anos num dos vários estabelecimentos prisionais em Portugal.
José falou do que pôde, sem filtros mas sempre com a preocupação de não revelar qualquer tipo de informação que pudesse comprometer a sua identidade por questões de segurança. Explicou no que consiste o seu trabalho, como é mal pago para as exigências e responsabilidades que lhe estão associadas e de como se protege ao tentar não saber os crimes por que os reclusos com quem lida diariamente foram condenados. É que especialmente por ser pai, crimes como pedofilia mexem muito consigo.
1. Em que consiste o dia a dia de um guarda prisional?
Começa sempre com uma formatura onde, além da chamada do pessoal, ainda nos é feito um briefing sobre alterações na cadeia ou sobre a forma como deveremos agir durante aquele dia.
Iniciamos o serviço com a abertura das celas para que seja feita a contagem dos reclusos, onde a ideia é ver se ninguém fugiu durante a noite. Depois vem a parte do controlo dos pisos enquanto os reclusos se movimentam pela cadeia e tomam o pequeno-almoço. Claro que, além disso, também nos ocupamos de toda a segurança interior e exterior do estabelecimento.
A seguir ao jantar, todos os reclusos são fechados nas celas para uma nova contagem. Durante a noite é feita uma segurança periférica com rondas regulares dentro do estabelecimento.
2. Qual é o tipo de crime mais frequente no sítio onde trabalha?
No estabelecimento onde trabalho há de tudo um pouco, na verdade. Desde reclusos condenados por pedofilia, violação, assassinatos ou tráfico de drogas. Há uma população muito variada.
3. Em média, quanto ganha um guarda prisional?
Sou guarda há mais de 15 anos e, neste momento, o meu ordenado base é de 850€.
4. Diria que é justo para o trabalho que faz?
Não, claro que não. Nunca podia ser. Quando comecei a trabalhar como guarda disseram-me que o salário subia consoante os anos de serviço mas isso não tem acontecido. Embora não consiga ser preciso, neste momento deveria de estar com um ordenado superior em 50% ao que tenho agora.
Psicologicamente, consegue ser um pouco desgastante. Principalmente porque há muita pressão, seja da população prisional ou da própria chefia"
5. Como se chega a guarda prisional?
Através de um concurso onde temos de passar por provas físicas, provas de português e matemática e testes psicotécnicos. Depois de entrarmos, fazemos uma formação que, apesar de agora ser de nove meses, na minha altura não foi tanto.
6. Sempre quis ser guarda prisional?
Não. Cheguei a trabalhar noutro tipo de trabalhos, que não estavam sequer ligados aos serviços prisionais, mas conhecia relativamente bem o meio. Dentro daquilo que me poderia satisfazer profissionalmente, achei que era uma profissão que era mais ou menos bem remunerada — tendo em conta o que tínhamos no nosso País e aquilo que me era prometido pelos serviços prisionais.
7. Quantas horas trabalha?
Faço as 35 horas semanais obrigatórias mais horas extras, que são pagas. E às vezes são precisas mais que não são pagas. Quem perde, claro, é a minha família, que raramente me vê.
8. É um trabalho exigente?
Psicologicamente, consegue ser um pouco desgastante. Principalmente porque há muita pressão, seja da população prisional ou da própria chefia que leva os guardas a sentirem-se quase que perseguidos.
É um bocado difícil de explicar, mas sinto que fazia falta uma melhor formação para que as chefias saibam lidar com as pessoas que têm abaixo de si. Acredito até que essa formação exista, só não sei se está a ser aplicada da forma correta a julgar pela maneira como o Corpo da Guarda Prisional é tratado.
9. Alguma vez criou uma relação de amizade com um recluso?
Não é amizade, mas ganhamos ali uma certa proximidade. Lidamos com eles sempre que estamos de serviço e já cheguei a passar por postos de trabalho onde estavam sempre os mesmos presos. A certa altura, as conversas que eles têm dão a revelar uma parte mais íntima e pessoal das suas histórias.
A forma de proteção que eu tenho é tentar, ao máximo, não saber o crime por que foram condenados. Se os crimes deles forem ligados à pedofilia, é óbvio que é uma coisa que me vai fazer muita confusão — até porque tenho filhos
Mas é compreensível porque eles estão em reclusão e acabam por ver em nós a maneira mais fácil de partilhar o que sentem. Se calhar chega a uma altura em que olham para nós como amigos, mas nós sabemos manter essa distância. Claro que quando os encontro já em liberdade, não tenho qualquer problema em falar com eles. Não faço por criar inimizades com os reclusos, não vale a pena.
10. Mas tenta ao máximo distanciar-se daquilo com que tem de lidar como uma forma de defesa?
A forma de proteção que eu tenho é tentar, ao máximo, não saber o crime por que foram condenados. Se os crimes deles forem ligados à pedofilia, é óbvio que é uma coisa que me vai fazer muita confusão — até porque tenho filhos.
Mas se consigo ser diferente daquilo que sou? É difícil. Tento sempre criar uma certa distância entre mim e os reclusos, naturalmente.
11. O seu trabalho é em alguma coisa semelhante àquilo que vemos em séries e filmes?
O que se vê em séries e filmes é mais ligado a países onde o crime é bem mais violento. Felizmente, somos um País pacato onde quase não se passa nada. Mas às vezes sinto que a representação do guarda prisional nas séries ou nas telenovelas fica muito aquém daquilo que nós fazemos diariamente.
Vejo-os como pessoas normais que cometeram um crime e estão a pagar por ele. Vejo, sim, que os estabelecimentos prisionais não estão a saber lidar da melhor maneira com a população reclusa
12. E no que é que os filmes e a séries acertam?
Na perigosidade do trabalho e na necessidade de estarmos constantemente em estado de alerta — principalmente durante as vistorias às celas dos reclusos, para não passarmos por nenhum dissabor como nos picarmos em alguma agulha que esteja escondida.
No que toca à segurança, muitas das coisas que vemos acabam por ser reais. Como prevenir ou detetar tentativas de fuga, quando elas aparecem. No estabelecimento prisional onde eu trabalho, já houve tentativas de fugas. Todas elas não consumadas a 100%, mas quase. E isso obriga a um cuidado redobrado.
13. As prisões portuguesas são violentas?
Não, de todo.
14. E maioria dos prisioneiros é violenta?
Também não diria isso. Vejo-os como pessoas normais que cometeram um crime e estão a pagar por ele. Vejo, sim, que os estabelecimentos prisionais não estão a saber lidar da melhor maneira com a população reclusa já que muitos deles estão a cumprir pena e não estão a ser acompanhados da melhor forma.
Sinto que muitos dos reclusos deveriam trabalhar para ter as regalias que os outros têm. Um recluso entra ali e se quiser televisão, pode ter. Se quiser uma PlayStation, também a pode pedir. Se quiser ficar na cela o dia todo, há quem lhe leve comida e roupa lavada.
Se estão ali é porque merecem estar. Não sou juiz para os condenar, mas normalmente 99% da população reclusa diz estar presa injustamente"
Não é de admirar que haja quem seja libertado e, uma vez já fora da prisão, volte a cometer os mesmos crimes. Porque na verdade não sentem na pele aquilo que deveriam sentir, digo eu. Talvez devesse haver um acompanhamento maior para os educar.
15. Quais foram os momentos mais marcantes a que assistiu?
O mais marcante foi talvez quando presenciei um motim que nos obrigou a intervir com a força. Inevitavelmente, nesses momentos há sempre muito receio. Não só por mim, mas também pela segurança e bem-estar de todos os meus colegas. Felizmente, tudo acabou bem e conseguimos fechar todos os reclusos nas suas celas. Mas foi difícil.
16. É uma realidade para a qual estão preparados?
Apesar do perigo e da dificuldade que há em resolver um conflito destes, estamos sempre conscientes e preparados para a inevitabilidade de um dia isso acontecer. O que nos custa mais neste trabalho é o facto de também nós acabarmos privados da liberdade.
Isso sente-se mais em alturas como o Natal ou a passagem de ano, porque são datas comemorativas onde a família já sabe que não pode contar connosco.
17. Alguma vez sentiu pena de um recluso?
Não, nunca. Se estão ali é porque merecem estar. Não sou juiz para os condenar, mas normalmente 99% da população reclusa diz estar presa injustamente. Também há quem assuma logo no primeiro dia aquilo que fez — principalmente quando se tratam de crimes passionais.
Por princípio, tento sempre não saber os crimes que cometeram, por isso podem até estar a contar a maior mentira da vida deles que me é indiferente.
Das poucas vezes que me ameaçaram, minutos depois estavam a pedir desculpas por chegarem à conclusão que não lhes valia de muito"
18. Alguma vez foi agredido durante estes anos de serviço?
Felizmente não, e nunca houve uma tentativa sequer. Vivo a máxima de respeitar para ser respeitado e com eles não haveria de ser diferente só porque estão presos. Não estou de acordo com a violência gratuita, não que a haja no meu trabalho, e por isso não a procuro, seja na vida pessoal ou na profissional.
19. E já se sentiu em perigo de vida?
Não, mas de vez em quando ouvimos aquelas ameaças que, na verdade, nunca se concretizam em nada por ter sido feita no calor do momento. Das poucas vezes que me ameaçaram, minutos depois estavam a pedir desculpa por chegarem à conclusão que não lhes valia de muito.
20. A comida da prisão é assim tão má como se pensa?
Sim, mas tem uma razão de ser. A partir do momento que um estabelecimento prisional investe pouco dinheiro na alimentação dos reclusos, não é possível fazer melhor. É verdade que, dentro daquilo que podem, as empresas responsáveis por fornecer a comida tentam fazer as coisas da melhor maneira. Não tenho dúvidas nenhumas disso.
Mas há alturas em que vejo os reclusos a reclamarem de tipos de comida que eu próprio não comeria. Não é que esteja estragada, mas as condições em que é preparada e a forma como é apresentada não são das melhores.
Não me dizem coisas como 'você é que podia trazer um telemóvel ou droga'. Isso eles não dizem. Mas atiram para o ar. São mais subtis, digamos a assim, a ver se alguém lhes dá atenção"
21. Os guardas alguma vez estão armados?
Dentro estabelecimento prisional, não. Até para não haver a hipótese de um recluso alcançar uma arma. As únicas que existem estão localizadas na portaria e nas torres de vigilância. Fora isso, podemos estar armados quando nos deslocamos no exterior com os reclusos — como quando vamos a tribunal ou ao hospital, por exemplo.
22. Os prisioneiros fazem-lhe pedidos?
Sim, o recluso tem sempre segundas intenções. Mas pouco tempo depois de falarem comigo, chegam sempre à conclusão de que não vale a pena. Se o conseguem com outros guardas, não sei, nem quero responder por eles. Mas sim, estão sempre a experimentar o guarda.
23. E o que é que geralmente lhe pedem?
Muitas das vezes não são concretos… mandam para o ar na esperança de que alguém morda o isco. Ou seja, e só posso falar por aquilo que tem sido a minha experiência, não me dizem coisas como “você é que podia trazer um telemóvel ou droga”. Isso eles não dizem. Mas atiram para o ar. São mais subtis, digamos a assim, a ver se alguém lhes dá atenção.
Acredito, ou quero acreditar, que a grande percentagem dos meus colegas seja como eu e não atenda a este tipo de jogos.
24. O seu trabalho deixou-o mais preconceituoso?
Não necessariamente. Nunca tive esse preconceito de associar um crime a uma etnia ou a minorias sociais e nunca me considerei racista.
25. E há racismo nas prisões portuguesas?
Sem dúvida. E muitas vezes os negros são usados como exemplo para tudo e chegam até a ser maltratados na base da palavra. A palavra “preto”, por exemplo, é uma coisa que se ouve muito e que a mim me faz confusão. Não gosto de ouvir porque sei que tem como objetivo insultar, denegrir e violentar.
Mas nas prisões vê-se muito esse tipo de tratamento, sim.
26. Alguma vez o tentaram subornar?
Já tentaram, sim. E essas tentativas, que recuso sempre, dão lugar ao medo. É que quando recusamos uma tentativa dessas, há sempre o risco de que exista uma qualquer retaliação — principalmente sobre a nossa família. Felizmente nunca aconteceu e acabei por saber lidar com essas situações. Além disso, tento sempre mostrar que sou um guarda a quem não vale a pena fazer pedidos desses. E tenho tido sorte com essa abordagem.
Mas já vi telemóveis escondidos dentro de bolos de aniversário ou nas solas dos sapatos. Também há quem tire azulejos das paredes para usar como cofre e depois os volte a colar"
27. É assim tão fácil para um recluso descobrir mais sobre a vida de um guarda?
Sim, demasiado fácil até porque estamos sempre identificados com o nosso nome. Talvez seja mais difícil quando os guardas vivem longe, mas nem nesses casos é totalmente impossível. Se os reclusos quiserem saber mais, não terão qualquer problema em ir procurar e depressa chegam à informação de onde vivem e em que escola os filhos estudam.
28. Já viu alguma coisa a entrar na prisão que não era suposto?
Sim. Fiscalizamos e reportamos a situação, seguindo todos os trâmites legais. Mas já vi telemóveis escondidos dentro de bolos de aniversário ou nas solas dos sapatos. Também há quem tire azulejos das paredes para usar como cofre e depois os volte a colar — dando a sensação de que não foi remexido.
Se um estabelecimento prisional tiver cerca de 500 reclusos, às vezes chegam a estar apenas 20 guardas durante os turnos
Também há casos em que os reclusos levam objetos escondidos no ânus. Em caso de forte suspeita, e mesmo que o pórtico de detetores de metais não apite, podemos fazer a revista por desnudamento e até levar o recluso ao hospital para serem retirados os objetos.
Às vezes é também a própria família dos reclusos que tem este tipo de tentativas. As mulheres, por exemplo, podem esconder droga ou outros artigos na vagina mas caso o pórtico não apite, não podemos fazer uma revista por desnudamento. Mas é só uma das opções que eles têm disponíveis. É que é muito fácil usar é qualquer tipo de funcionário da prisão (que tenha um contacto direto com os reclusos) para fazer entrar todo o tipo de material.
Agora até com drones é possível. O estereótipo e a ideia de que o contrabando é feito pelos guardas não corresponde à realidade, até porque não é a maneira mais fácil.
29. Há falta de guardas para a quantidade de presos?
Claro que sim. Vou dar-lhe números aleatórios que servem apenas como exemplo: se um estabelecimento prisional tiver cerca de 500 reclusos, às vezes chegam a estar apenas 20 guardas durante os turnos.
E embora todos eles possam ser chamados ao serviço a qualquer altura, especialmente em situações de motim ou tentativas de fuga, até lá chegarem as situações podem ser consumadas.