São dez da manhã, mas parece que é final da tarde. O Pingo Doce junto à Morais Soares forma filas invulgares para esta hora do dia. Os carrinhos circulam e acumulam-se junto das caixas, do talho, da peixaria. As prateleiras dos enlatados estão substancialmente mais vazias, assim como as do leite. A corrida ao gel de banho, toalhas, sabonetes, álcool, soro e lixívia também tem sido grande, dizem-nos espaços vazios nas estantes.
“Levam tudo, não há direito. As pessoas realmente...”, exclama uma cliente, enquanto observa a prateleira das massas, também a dar sinais de falta de produto. Ofegante, a repor as paletes de leite, uma empregada deste supermercado explica à MAGG que o fluxo aumentou. “Tem sido assim nos últimos três dias. Veja: são 10 horas e isto está cheio.”
Em causa está o aumento dos casos de infecção pelo vírus Covid-19, que, à data, já atingiu 78 portugueses, estando 4923 sob vigilância — o primeiro caso foi detetado no início de março. A população teme que a situação escale a um cenário semelhante ao de Itália, que regista já 12.462 casos e 196 mortos. Este país está em quarentena, com todos os estabelecimentos comerciais encerrados, excepto os de primeira necessidade, como supermercados, mercearias ou farmácias.
Passamos por um antigo funcionário da Marinha Mercante. Vai de carrinho muito bem organizado. Está a certificar-se que tem espaço para tudo. Saltam-nos à vista os enlatados. “Não estou a açambarcar”, garante-nos, a rir. Mas explica-nos: “Sim, estou a garantir que tenho o necessário para se alguma coisa acontecer. Ponha os olhos em Itália. Eu tenho 77 anos e a minha mulher tem problemas respiratórios. Fazemos parte dos grupos de risco.”
Na porta ao lado está o Continente e a história repete-se: o atum, salsichas, leguminosas desaparecem. As prateleiras do papel higiénico estão a ficar vazias. Uma jovem de 24 anos passa por nós, com um lenço a tapar a boca e o nariz. Admite-nos que começa a ficar assustada, sobretudo desde terça-feira, 11 de março, dia em que Organização Mundial de Saúde declarou estado de pandemia. Esqueceu-se da máscara em casa, trabalha numa loja de roupa do Centro Comercial Vasco da Gama (cada vez mais vazio, garante-nos) e os alertas para uma correta higienização e distanciamento social têm sido constantes.
Quer garantir que fica abastecida para o caso de os produtos esgotarem e para ter o que comer caso tenha de ficar em quarentena. “Estou a levar um pouco de tudo, desde congelados a enlatados, para uma ou duas semanas.”
“Posso entrar com este álcool”, pergunta uma mulher à entrada de um supermercado Auchan. “Pode”, diz a funcionária. De seguida, vira-se para o colega e brinca: “É o único que existe neste supermercado.” Os dois estão a trabalhar de luvas e, percebemos mais tarde, que não foi por diretrizes da empresa — foi por opção própria.
Também nas duas farmácias em que entramos nos dizem que o fluxo aumentou. Além de analgésicos e antiinflamatórios, os clientes vão em busca dos medicamentos que lhes são essenciais, seja para a tensão, coração ou dor crónica. O gel desinfetante já esgotou, explica a farmacêutica, assim como as máscaras que desapareceram já vai mais de um mês.
“Estão de manhã à noite a entrar e a perguntar se há gel, desinfetante e máscaras”, conta a farmacêutica da Farmácia Alcális. “As únicas máscaras que há em armazém custam 200€ a caixa, 10€ a unidade. Mas são FFP2.”
Apesar dos eventos e voos cancelados, das aulas suspensas, do alvoroço nos supermercados, na rua é como se nada se passasse. As pessoas circulam normalmente, tocam-se, trocam dinheiro em mãos, juntam-se em cafés e esplanadas, onde conversam descontraidamente e a aproveitar uma Lisboa invadida por um verão precoce. A noite, então, é uma festa. Mas já lá vamos.
E embora as máscaras estejam esgotadas é raro vermos alguém de cara tapada. Porém, num Instituto Superior Técnico praticamente deserto, de atividades letivas suspensas — nos cafés estão apenas académicos que trabalham na universidade —, encontramos uma mulher equipada com o tal acessório raro. Rapidamente justifica: “Sou asmática e trabalho no laboratório de análises.”
Escolas sem alunos e alunos que faltam à escola
O enorme pátio logo à entrada do Colégio Sagrado Coração de Maria está vazio, à excepção de duas ou três funcionárias que o atravessam. Apesar de o Conselho Nacional de Saúde de Pública ou de o Governo não terem ainda recomendado e decidido pelo encerramento de todas as escolas ou universidades, esta instituição não teve outro remédio. Aqui não há aulas, porque o pai de um aluno deu positivo na análise para o Covid-19, revelou uma fonte à MAGG.
A direcção desta instituição, que se junta agora aos Salesianos de Lisboa na suspensão das atividades, confirma a situação à MAGG, que também está descrita num comunicado disponibilizado no site da escola: “Hoje, dia 11 de março de 2020, tivemos informação que um pai de alunos do nosso Colégio obteve resultado positivo na análise ao COVID-19. Em função desta situação, decidiu a Direção Pedagógica suspender todas as atividades letivas e não letivas de dia 12 ao dia 25 de março (inclusive).”
No mesmo comunicado, no qual a instituição reforça que a decisão “tem o propósito de salvaguardar o bem-estar e a saúde da comunidade educativa”, em particular dos seus alunos — que "devem resguardar-se em casa” — o colégio informa que “não tem conhecimento de nenhum colaborador (docente ou não docente) ou nenhum aluno com sintomas”.
Ressalva ainda os casos excepcionais em que pode receber alunos, mas apenas até ao 6.º ano de escolaridade: “Pais profissionais de saúde que não tenham, logisticamente, outra forma de acautelar o acompanhamento dos filhos” e “outros pais que não tenham, efetivamente, nenhuma outra forma de assegurar o acompanhamento dos seus filhos.”
No Agrupamento de Escolas Filipa de Lencastre as aulas seguem o rumo normal. “Há colegas que não vêm porque os pais preferem que fiquem em casa por causa do vírus”, diz-nos um aluno. Um outro adolescente está sentado no jardim na companhia de um colega e explica-nos que não foi às aulas porque se sente mais seguro cá fora. Também tem um amigo que ficou em casa. “Ele mora aqui. A mãe não quer que ele venha às aulas.”
“Ninguém se deve sentir obrigado a vir à missa ao domingo"
Antes de chegarmos a esta escola junto à Praça de Londres, decidimos entrar na igreja São João de Deus, a pensar nos ajuntamentos das missas, onde se reune uma população mais envelhecida e vulnerável. Na zona onde funcionam os serviços da diocese encontramos Robson Cruz. O padre tem-se estado a informar junto de quem sabe — desde especialistas em epidemiologia, a conhecimentos que tem dentro do Ministério da Saúde — e conta-nos que têm sido uma semana de muitas mudanças.
Há uns dias não pôde deixar uma miúda participar das atividades dos escuteiros, depois de inocentemente lhe ter perguntado onde tinha passado as férias. A resposta foi “Milão”. Levou as mãos à cabeça.
Pelos corredores vemos papeis colados na parede que dão conta do cancelamento de várias atividades que naquelas salas se realizam, desde a catequese, aos escuteiros ou reuniões de Alcoólicos ou Narcóticos Anónimos. A medida preventiva tem sentido: não há controlo sobre quem está presente em todas estas acções, que se realizam em salas de porta fechada, pouco arejadas, durante uma hora ou mais. “Não conseguimos manter as atividades de grupo. Está toda a gente a tocar nos mesmos sítios. É impossível controlar”, diz.
Na igreja já estão a ser tomadas medidas. As portas vão ficar abertas para que haja mais arejamento e não seja necessário tocar nas maçanetas, o horário das equipas de limpeza foi alagado — passou também a incluir pessoas que trabalham noutras funções da limpeza —, as casas de banho passam a ser limpas cerca de cinco a seis vezes por dia, o chão é lavado com uma máquina industrial diariamente e os bancos são desinfectados com álcool. “Vai-me dar cabo das madeiras”, ri-se.
O cálice do vinho já não tem sido partilhado. “Estamos a mergulhar a hóstia no vinho”, explica. Aos fiéis, faz questão de ressalvar que “ninguém se deve sentir obrigado a vir à missa ao domingo, porque se vive uma situação extraordinária.”
Além disso, recomenda a que todos comunguem recebendo a hóstia na mão e não na boca. Mas há sempre os teimosos, garante, e por isso está já a pensar numa solução para que discretamente se possa higienizar no decorrer da missa.
Suspender os coros não está fora de questão. “Não é que seja uma atividade de risco, mas há uma probabilidade de projeção de saliva maior.”
O Patriarcado de Lisboa já emitiu três comunicados relacionados com o vírus Covid-19. Neles estabelecem-se diretrizes sobre os comportamentos a adotar pelas dioceses. "Como em situações semelhantes e em sintonia com outras conferências episcopais e dioceses, e para evitar situações de risco, recomendamos algumas medidas de prudência nas celebrações e espaços litúrgicos, como, por exemplo, a comunhão na mão, a comunhão por intinção [molhar a hóstia no vinho consagrado] dos sacerdotes concelebrantes, a omissão do gesto da paz e o não uso da água nas pias batismais", pode ler-se.
Do outro lado da Praça, na Pastelaria Mexicana, a entrada tem alertas sobre os comportamentos preventivos, como tantos outros sítios. As casas de banho são desinfectadas com frequência, assim como as mesas e balcões, medidas que são também adotadas pelo café Pão de Açúcar. Nos dois estabelecimentos, o fluxo de pessoas começa a diminuir, mas ainda não é drástico. “Era bom que as pessoas [clientes] mantivessem mais distanciamento social”, diz o gerente do café junto à Alameda Afonso Henriques. “É como se nada fosse.”
Nos ginásios o caso parece ser diferente. Em comunicados enviado à MAGG, duas das cadeias mais presentes em Lisboa não notam diferença no fluxo de sócios. “Notamos apenas uma maior vontade dos nossos sócios em estarem informados quanto às medidas de prevenção que temos implementadas”, diz o departamento de comunicação do Holmes Place à MAGG, que acrescenta que tem definido um Plano de Contingência que inclui medidas “preventivas estão disponíveis para consulta na zona da receção, do bar, ginásio e balneário, onde disponibilizámos também gel desinfetante.”
A higienização é um dos pontos mais destacados, tanto no Holmes Place, como no Fitness Hut. “A empresa possui rigorosos protocolos de higienização e limpeza nos seus ginásios e nesse sentido implementou nos seus 44 ginásios um reforço adicional da limpeza e desinfeção, para que os usuários não sejam afetados na sua rotina, bem como novos procedimentos de higienização e formação dos seus colaboradores. O Fitness Hut dispõe de desinfetantes para mãos em todos os ginásios, para utilização dos sócios nas principais áreas dos clubes”, diz a cadeia detida pelo grupo Viva Gym.
No Cais do Sodré a festa abranda mas continua
Na noite anterior, quarta-feira, 11, espreitámos o Cais Sodré para perceber o estado das andanças. Se tivéssemos em conta apenas a quantidade de lugares disponíveis para estacionamento, a coisa estaria calma. Mas percebemos depois que depende do sítio.
Entramos no bar Desordem que nos diz de imediato que nota uma diminuição na quantidade de gente que circula pela zona. Mas alerta-nos para o facto de o Mercado Time Out estar a sentir o impacto do vírus com mais força.
“Notámos uma grande diminuição nos últimos dois dias”, conta uma funcionária do food court do mercado. “Mas amanhã [quinta-feira] é que vamos perceber melhor, porque é uma noite em que costumamos estar mais cheios, porque chegam muitos turistas.”
Na animada Rua Nova do Carvalho, mais conhecida por Cor de Rosa, ouvimos relatos opostos. Há espaços que notam que há muito menos pessoas. “Para a noite fantástica que está hoje, isto está vazio. O meu irmão até me ligou a dizer para hoje não abrirmos. Tem sido uma semana terrível”, diz-nos a dona de um bar. “Sim, noto que o fluxo diminui, mas ainda não é nada que se note muito. Quarta-feira também é sempre a pior noite e ainda é cedo”, diz a porteira do Music Box.
Na Espumantaria do Cais está tudo normal. “Não notamos nada. Ontem estivemos cheios." Na Pensão Amor a mesma coisa. A sala está cheia, há música ao vivo e custa-nos chegar ao balcão para falar com alguém. Com sorte, encontramos cá fora um segurança e funcionários em momento de pausa.
“Isto está sempre ao barrote”, diz, a rir. “Nem parece que é uma situação de emergência de saúde pública”, respondemos. “Sabe porquê? É que temos aqui uma bebida com 60% de álcool. Mata qualquer bicho.”