De 25 para 26 de novembro de 1967 choveu toda a água do mundo na Grande Lisboa. Pelo menos, era isso que parecia. Entre Alenquer e Cascais o dilúvio foi de tal ordem, que água e lama levaram milhares de casas e muitas centenas de vidas. Morreram perto de 1000 pessoas, mas a contabilização parou a pouco mais das 400. Foram essas as ordens dadas às redacções, porque foi essa a vontade do governante autoritário que subjugava Portugal. Salazar não censurava só as palavras. "Ele censurava a realidade".

No Estoril choveu ainda mais do que nos outros sítios, mas as consequências não se comparam às que atingiram a periferia de Lisboa. Loures ou Odivelas foram duas das freguesias mais atingidas e são aquelas que também a pandemia de 2020 mais castigou. Coincidências? Para Joana Amaral Dias, psicóloga, ex-deputada, comentadora e autora, não. É no seu sexto livro, "Dilúvio Sem Deus", editado pela Leya, que, através de relatos arrepiantes, narra esta tragédia tão "olimpicamente" ignorada pelo Estado Novo. Enterrada com a lama, foram os estudantes, sobretudo de Lisboa, que se uniram para ajudar, iniciativa que levou a que muitos, pela primeira vez, vissem o que era o país de Salazar. Pobre, muito pobre.

A conversa começa aqui, mas foi com a assertividade e humor que lhe são conhecidos — e com a descontração que pede uma manhã de sol num quiosque de Campo de Ourique — que as bolas se foram batendo, num pingue-pongue que rolou entre variadíssimos temas: da tragédia de 1967, fomos à tragédia de 2020. Passámos para da ascensão da extrema-direita, às polémicas ligadas ao Chega e, depois, para questões que realmente importam: a corrupção, a guetização, a precariedade e os conflitos de interesse "gritantes" nas estruturas de poder — o cocktail explosivo que "alimenta a besta". Passámos ainda pelos sintomas de uma sociedade machista e, quase no fim,  gerou-se um capítulo dedicado à fotografia: dick picks e imagens em biquíni.

Foi difícil escolher um título para esta entrevista. Ora leia.

Quando é que começou a investigar este livro?
Em 2019. Tinha acabado de lançar o meu livro anterior, o "Psicopatas Portugueses", Já tinha tropeçado neste tema, e como não sei estar parada, comecei logo a recolher algumas coisas, a ir à hemeroteca, para fazer isto com calma, lá para 2021. Mas depois fecharam-nos em casa e nessa altura, como já tinha o material quase todo, comecei a escrever.

Foi um ótimo timing, tendo em conta aquilo que estamos a viver agora.
Foi. Há pontes de contacto interessantes entre a pandemia e a situação que se viveu em 1967.

"Com as cheias, os estudantes de Lisboa tomaram consciência crítica e perceberam que, afinal, a ditadura não impunha só o tal lápis azul, a censura, ou Guerra Colonial, que também gerava pobreza. É nesta altura que se ganha a noção de que o Estado Novo era uma máquina debulhadora da vida."

Que semelhanças é que identificou?
Uma das coisas é o facto de não estarmos todos no mesmo navio. Tanto na pandemia, como nas cheias, uns estão lá em baixo a esfregar o convés e outros estão lá em cima, no camarote a bebericar cocktails. A malta que está no convés é a malta destas freguesias muito castigadas de Lisboa, como Loures ou Odivelas, que passaram a estar em confinamento quando já estava toda a gente cá fora no verão. São também os que andam em transportes públicos lotados às seis da manhã, são os que não se deram ao luxo de ter teletrabalho ou layoff. Não há teletrabalho para quem está nas obras ou a limpar casas. Muitas vezes nem há contrato de trabalho. Há precariedade. É o chapa ganha, chapa gasta. Ou trabalhas ou morres. E, portanto, trabalhas, porque, para morrer em casa de fome, mais vale morrer com o vírus. E estas pessoas são exatamente as mesmas pessoas que, nas grandes cheias, foram muito, muito, muito crucificadas com o dilúvio, apesar de ter chovido ainda mais no Estoril. Ou seja, a pobreza estrutural continua a ser o fator principal a vitimizar numa pandemia, numa catástrofe natural. Em qualquer situação de calamidade e de emergência, sofrem mais os que estão na base da pirâmide. Mudou alguma coisa? Não mudou. Porque Portugal tem esta característica singular de varrer tudo para baixo do tapete. Tudo o que é lixo vai para baixo do tapete. Não aprendemos nada com as cheias, porque nos esquecemos que elas aconteceram.

Voltando aos pontos de contacto.
Há outro ponto de contacto que é a guerra dos números. Os números são torturados e distorcidos até que eles digam aquilo que nós queremos que eles digam. Em 1967, havia uma ditadura e, por isso, as coisas eram feitas à tripa forra. À grande. À vontadinha. O Salazar enviou uma regra para as redacções a dizer que a partir dos 400 e tal mortos não morria mais ninguém. Morreram quase mil pessoas, mas a contagem oficial ficou nos 400 e tal. Não se contaram as pessoas que desapareceram (tal como na tragédia em Entre-os-Rios, em que um terço das vítimas nunca apareceu, aqui a mesma coisa), as que morreram de tifo, ou de traumatismos crânio-encefálicos anos mais tarde, etc. Tudo isso desapareceu do radar, porque Salazar censurou a própria realidade. Falamos muito do lápis azul, mas ele não censurava só as palavras. Ele censurava a vida. Aquilo que acontecia, não acontecia. E, neste momento, é igual.

 "Na ditadura havia o pensamento único, imposto. Agora, o pensamento é único na mesma, mão não é preciso impô-lo. Basta ver a reacção a todas as pessoas que discordam destas medidas de contingência ou que pensam em medidas alternativas às de confinamento. São logo considerados negacionistas"

Porque ignoramos os que morrem por causa da COVID-19 — e não de COVID-19.
Nesta contabilização, contabilizamos só as pessoas que morreram de COVID-19. Então e os pacientes todos não COVID-19 que morreram por causa da COVID-19? Pessoas que morreram porque tiveram medo de ir ao hospital, porque as estruturas de saúde não conseguem responder, porque estavam em lares. Na ditadura havia o pensamento único, imposto. Agora, o pensamento é único na mesma, mas não é preciso impô-lo. Basta ver a reacção a todas as pessoas que discordam destas medidas de contingência ou que pensam em medidas alternativas às de confinamento. São logo considerados negacionistas. Sobre esses, diz-se logo "ah, então também deves achar que a terra é plana, não?".

O Governo de António Costa esteve mal na forma como lidou com a COVID-19?
Acho que esta situação é muito difícil para qualquer Governo. Mas não é a questão prática o mais perigoso. A questão é: como é que é possível termos embarcado todos nesta mega experiência de engenharia social mundial, de proibir crianças a dar beijos, de ter idosos fechados seis meses em lares, sem discutirmos, sem termos um debate? Isso a mim, como democrata, e daí a comparação com as cheias de 1967, é que me faz muita confusão. A magnitude destas experiência social é tão grande que, no mínimo, devíamos ter discutido isto como País. Outros países optaram por vias completamente diferentes, como a Suécia. Não estou a dizer que é melhor ou pior. O ponto a que estou a querer chegar é: na origem de qualquer sociedade democrática não está a ideia do debate, da reflexão e procura de alternativas? Não foi isso que aconteceu. Numa decisão tão gigante, que altera a vida toda de todos nós, acho que no mínimo era irmos tendo uma discussão.

Havia tempo para isso?
A questão do tempo é muito importante. É verdade que nos primeiros meses fomos apanhados de surpresa — ainda que já houvesse o exemplo de outros países. Mas a verdade é que já estamos há seis meses nisto. Gostava de ver um debate entre dois epidemiologistas, um que defendesse as medidas de contingência e confinamento e outro que defendesse, por exemplo, a via sueca. Porque é que não há esse confronto? Estamos a falar de uma medida que altera a vida pessoal, altera os alicerces de uma civilização. E não há uma discussão? Para mim, como clínica, estamos doentes. Estamos doidos. Nas cheias de 1967 foi exatamente a mesma coisa: estavam doidos, porque não houve uma discussão. Mas aí havia uma força maligna, que era uma ditadura. O pensamento único, hegemónico, foi uma decisão burocrático-política. As pessoas tinham medo de falar das cheias. Falavam à boca pequena, às escondidas. Em 2020, foi uma decisão política, mas que não precisou de força. Não há uma ditadura, mas há uma servidão voluntária de que fala o filósofo La Boétie. As pessoas sujeitam-se.

Terá a ver com vulnerabilidade?
Com o medo. E este livro é sobre isso: sobre o medo. E sobre como o medo é a forma mais fácil de dominar o outro. Dominar, subjugar, maniatar, manipular. Todas as formas de domínio sobre o outro. E nem precisamos de ditadura. Essa era ingénua porque achava que precisava daquele músculo todo. Não era necessário.

Fala no facto de, na altura do Estado Novo, haver os bons pobres e os maus pobres, os pobres honrados e os moralmente em perigo. Uns podiam mendigar e outros iam para a o Albergue da Mitra.
Sim, havia os bons pobres e os maus pobres. Os bons pobres eram os pobres certificados, autorizados à mendicidade, podiam pedir esmola. Eram pobres honrados — daí a  expressão "pobre mas honrado". E havia os considerados revoltados e subversivos. E esses indigentes não eram tolerados. Iam para o  Albergue da Mitra, iam para o castigo.

Qual era o critério para ser um pobre honrado?
O pobre honrado amochava: era um bom cristão, defendia os princípios do Estado Novo. É mais ou menos como agora.

Como é que transpõe isso para a atualidade?
Acontece de outra forma. Por exemplo: debate-se, em auditoria, se é ou não revelada a lista dos devedores do Novo Banco, com preocupações sobre a quebra do sigilo bancário. Só que para aceder ao Rendimento Social de Inserção (RSI), ou a qualquer outra prestação social, tem de se mostrar as contas bancárias. Aqui ninguém se preocupa com o sigilo bancário. São pobres, mas honrados. Não vão para a Mitra, porque também não é preciso. Agora não é necessário o tal músculo.

Fala no poder da juventude. Este dilúvio foi um dos gatilhos para a revolta dos estudantes e para o 25 de Abril. A juventude de hoje tem a mesma força?
A juventude tem sempre força. A juventude é espetacular. Apesar daqueles velhos do Restelo que adoram a frase "no meu tempo é que era", a verdade é que grandes mudanças civilizacionais têm vindo das camadas mais jovens. E o 25 de abril começa aqui. Nasce com 1967, já com um clima propício: havia muita malta nova a morrer na Guerra Colonial, pessoas a ficar sem os seus filhos, namorados, maridos. A esperança, o sonho e o futuro estavam a morrer em África.

Com as cheias, os estudantes de Lisboa tomaram consciência crítica e perceberam que, afinal, a ditadura não impunha só o tal lápis azul, a censura, ou a Guerra Colonial, que também gerava pobreza. É nesta altura que se ganha a noção de que o Estado Novo era uma máquina debulhadora da vida. A malta do Técnico, a juventude Católica, juntam-se — em alianças até bastante improváveis, porque muitos deles tinham posições antagónicas — e foi espetacular. A malta dos liceus, sobretudo de Lisboa, e das faculdades consegue uma angariação de fundos, de bens e de géneros, porque o Estado não fazia nada. A Cruz Vermelha Portuguesa, não obstante a Cruz Vermelha Internacional ter instigado a que a nacional participasse, recusou-se a intervir, porque estava feita com o regime. Se não fossem os putos, alguns novíssimos, de 16 ou 17 anos, a andar com os pés enterrados na lama, entre cadáveres de animais e de pessoas, não tinha havido ninguém a ajudar. O Estado ignorou olimpicamente.

joana amaral dias

"A extrema-direita alimenta-se dos nossos erros"

Ainda assim, há quem ainda goste de apregoar que "no tempo do Salazar é que era". O que é que diz a estas pessoas?
Estudassem (risos). Considero-me uma pessoa razoavelmente aberta, gosto de pensar pela minha cabeça, procurar o meu contraditório, e se olharmos para os indicadores de saúde, mortalidade infantil, níveis de escolaridade, alfabetização, pobreza, não há dúvidas: o Estado Novo foi napalm sobre Portugal. Enquanto a Europa galgava a passos largos, a caminho da civilização, era nisto que andávamos. Por mim, essas pessoas podem ir todas para o Chega. Eu até acho bem que eles tenham um sítio, porque assim sabemos onde é que andam. Acho que isso é uma vantagem. Mas é isso: entre o estudassem e o tratem-se.

"Alimentou-se uma guetização, quase uma auto-discriminação, com certas etnias e minorias. E agora queixam-se de que haja quem explore, justamente, esses problemas?"

Por falar em Chega, era expectável a ascensão da extrema-direita em Portugal?
Era. Fizemos tudo para isso. A extrema-direita alimenta-se dos nossos erros. A corrupção endémica em Portugal, o facto de termos permitido que não só, mas sobretudo, o bloco central fizesse do dinheiro público a sua marmita, a sua gamela, vá, a sua lancheira, abriu a porta para isto, porque as pessoas sentem-se desiludidas com a democracia, profundamente desiludidas, portanto quem acha que a democracia a abandonou, também vai abandonar a democracia. É óbvio.

A extrema-direita alimenta-se da precariedade e criou bodes expiatórios para resolver os problemas do desemprego e impostos?
É isso mesmo. Alimenta-se das nossas fraquezas. Podemos falar noutro exemplo concreto. A etnia cigana tem problemas de integração que deviam ter sido observados e atendidos há muito tempo. A etnia cigana não tem de ser discriminada, antes pelo contrário, deve ser atendida, protegida, defendida. Mas não é desta maneira, com uma Esquerda e uns bem pensantes de Esquerda a dizerem que não há nenhum problema de integração, porque isso deixa-os ao Deus-dará. Não é a deixar criar guetos, não é a permitir que as mulheres e crianças não vão à escola. Alimentou-se uma guetização, quase uma auto-discriminação, com certas etnias e minorias. E agora queixam-se de que haja quem explore, justamente, esses problemas? Nós sabemos que a maior parte dos crimes em Portugal, sejam de colarinho branco ou de sangue, não são cometidos por ciganos, nem por nenhuma etnia minoritaria. São cometidos por brancos. Mas ao deixar que existam bolhas de guetos e de exclusão abre-se a porta para o discurso de ódio. É mais fácil cascar no cigano do que ir contra os poderosos. Contra o Luís Filipe Vieira, contra o Novo Banco. É mais complexo, mais sofisticado. E não é o nosso vizinho do lado.

A culpa é, então, dos sucessivos Governos? Foram eles que deixaram que a extrema-direita entrasse?
Sim, os sucessivos governos e os protagonistas políticos. A precariedade, os recibos-verdes, a guetização, a corrupção são uma porta aberta, são a levedura, o fermento, o bolor desta gente. É levantar o dique para passar esta porcaria toda. Se tivéssemos sido mais disciplinados, mais civilizacionalmente exigentes, isto não tinha acontecido.

A disciplina de cidadania ou a redução do valor das propinas poderiam ajudar?
Essas medidas podem ser boas, mas acho que o problema é mais estrutural. Temos uma sociedade mal organizada na fonte, onde as pessoas não têm tempo para ler, para se informarem, para estudarem, para se cultivarem, cuidarem dos seus e educarem as crianças. A melhor educação para a cidadania acontece em casa. Querem maior deseducação para a cidadania do que entrar na escola às 9 horas para sair às 8 horas, porque os pais trabalham estas horas todas para receberem uma miséria? Precisamos de políticos que tenham rasgo e arrojo. Discutir sobre cidadania pode ser bom, mas eu quero um bocadinho mais. Quero pensar a médio/longo prazo. Que modelo queremos para a vida? Como é que nos queremos organizar como sociedade?

"Na auditoria do Novo Banco, o auditado diz que não quer que os números sejam divulgados, o Departamento Jurídico da Assembleia da República diz que tem dúvidas sobre se é viável ou não divulgar, e os deputados da nação amocham. Não há um deputadozinho que valha o lugar que tem, que pegue naquilo e entregue a um jornalista? A sério? Sigilo bancário? Só não há para os pobres"

Foi uma das grandes defensoras do Movimento Vote Sim, pela Interrupção Voluntária da Gravidez. Como é que vê a discussão sobre a proposta de um membro do Chega, entretanto chumbada, sobre o Estado retirar os ovários às mulheres?
Para já, é patético. É inconsequente por todos os motivos. O Serviço Nacional de Saúde faz o aborto, mas depois extirpa os ovários? Quem são os médicos que vão fazer isso? É tudo apalermado. Há outra coisa que me preocupa mais: passámos a semana toda a dar de comer à besta, a alimentar a extrema-direita, a discutir uma coisa que nem sequer ficou no programa do Chega, quando na Assembleia da República aconteceram duas coisas gravíssimas, que não tiveram espaço político-mediático.

Quais?
Na auditoria do Novo Banco, o auditado diz que não quer que os números sejam divulgados, o Departamento Jurídico da Assembleia da República diz que tem dúvidas sobre se é viável ou não divulgar, e os deputados da nação amocham. Não há um deputadozinho que valha o lugar que tem, que pegue naquilo e entregue a um jornalista? A sério? Sigilo bancário? Só não há para os pobres. Para os devedores há. Depois, passou-se outra coisa gravíssima: os regulados não podem passar a reguladores, portanto, como é que Mário Centeno vai estar regular o Novo Banco se foi ele que vendeu o Novo Banco? O Bloco de Esquerda vai para uma solução de nem sim, nem sopas, sobre um período de nojo de dois anos. E o Partido Socialista diz: "Período de Nojo sim, mas só daqui a um ano, porque entretanto temos de fazer nomeações." Isto grita conflito por todo o lado. É flagrante. Depois, o Ventura diz "está aqui uma parvoíce" e nós vamos a correr, a salivar, discutir aquela parvoíce. Damos-lhe tempo de antena, quando o  importante é estarmos a debater e resolver aquilo que tem, realmente, de ser debatido e resolvido.

"André Ventura vai para as redes sociais falar de cocó. Vamos escrever notícias a falar de cocó?"

Qualquer polémica parece fortalecer André Ventura. Até as mais palermas. Tendo em conta o perigo que representa, seria viável cortar-lhe o tempo de antena?
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Vivemos numa democracia, ele é um deputado eleito, tem um partido político com alguma expressão eleitoral — vamos ver agora os resultados no novo ciclo —, portanto ele tem de ser escrutinado como todas as pessoas que têm um cargo público. O problema é que, como o jornalismo vive de precários, com profissionais completamente à mercê dos cliques e dos "soundbites", há muito mais leituras aos ovários do que à auditoria do Novo Banco. É disso que se vale este tipo de populismo. Este populismo maligno. Acho que temos de ter uma atitude normal, como teríamos com outro assunto, de acordo com a sua importância. Uma palermice da extirpação dos ovários pode ter uma notícia, mas deve ser uma notícia de rodapé.

Até porque hoje os políticos conseguem gerar notícias com polémicas que criam — propositadamente, parece — nas redes sociais, como foi quando Ana Gomes anunciou a candidatura à presidência.
Isso é o tipo de coisa que já encosta a irrelevância. André Ventura vai para as redes sociais falar de cocó. Vamos escrever notícias a falar de cocó?

joana amaral dias

"O Marcelo Rebelo de Sousa faz sessões de striptease em frente às câmaras desde que se candidatou à Câmara Municipal de Lisboa"

Por falar em redes sociais. Há pouco tempo ameaçou divulgar as dick picks que recebe por mensagem.
Recebo muitas. Enfim, enviar dick picks deve ser considerado crime, porque é como o crime de exibicionismo — tal como é crime estar aqui a abrir uma gabardine de pelota por baixo. Os códigos penais estão a adaptar-se em todo o mundo. Em Inglaterra, neste momento, há um debate grande em relação a isto. Não me considero vítima de um crime, mas era bom que as pessoas tomassem consciência que não é por ser digital que podem fazer tudo.

Nunca chegou a divulgar.
Pois não, porque assim vão-me bloquear a conta. Mas já arranjei uma maneira, em parceria com um canal de televisão, para as divulgar. É para o "5 Para a Meia-Noite", na RTP.  Tenho levado isto para o lado da brincadeira, mas era bom que as pessoas tomassem consciência de que isto é crime. Isto e outras coisas que recebo, insultos pornográficos. Não é "ó boazona", é outro nível, muito mais acima. Estratosférico.

"Isto é como os ovários face ao Novo Banco: dá muito mais falatório o biquini do que as competências, o esforço, mérito ou zelo das pessoas."

Como psicóloga, acha que estas pessoas têm mesmo um problema?
Têm um problema. E não têm consciência. As duas coisas cruzadas. Temos de pensar no que é que faz uma pessoa enviar uma dickpick, que é uma forma de violentação e opressão face ao outro. Cruza-se este tipo de perturbação com uma boa dose de ignorância. Portanto, são perturbados e estúpidos. Não percebem que isto deixa um rasto digital.

Houve algum caso de estupidez mais flagrante?
Havia um homem que era GNR que me mandava especiais insultos — se ele ler esta entrevista, ele vai saber que estou a falar sobre ele —, daqueles que são mesmo ofensas, que podiam ser crimes de injúria ou difamação. Ele tinha uma fotografia fardado  — só para verem o nível de estupidez — e tinha um apelido muito invulgar. Foi fácil chegar a esta pessoa. Ela percebeu que tinha a sua identidade em perigo e decidiu apagar as mensagens que me tinha enviado no Instagram. Mas as pessoas esquecem-se que existe um rasto digital. Não só posso fazer screenshots ao ecrã, como há todo um histórico que fica ali para sempre. Perturbação e burrice. São estúpidos.

É muito comentada pelas fotografias biquíni na imprensa cor de rosa.
É patético. Eu nunca vi comentários sobre os calções de banho do António Costa a comer bolas de Berlim com os pézinhos nos areias e águas algarvias. Nunca vi comentarem o seu corpo, se está mais magro, mais gordo, mais atlético, se tem demasiado colesterol, se os calções têm de ser mais para cima  ou para baixo. O Marcelo Rebelo de Sousa faz sessões de striptease em frente às câmaras, desde que se candidatou à Câmara Municipal de Lisboa, em 1900 e troca o passo. Isto é o século XXI.

Mas continua a ser mulher.
Pois, a questão é essa. Continua a haver estas bolhas completamente retrógradas e anacrónicas.

São muitas vezes as mulheres a atacarem as próprias mulheres, como foi evidente agora com o caso de Sara Sequeira, que denunciou o comentário do revisor da CP.
A Sara esteve muito bem. Ela foi espetacular, tiro-lhe o chapéu. Foi corajosa e rápida. Não é fácil. Uma pessoa nessas situações, em que está a ser oprimida pelo outro, nem sempre consegue ter sangue frio. Mas esta situação é mais um exemplo de como as pessoas, nas redes sociais ou nos comboios, acham que podem dizer o que quiserem. Também nas minhas redes há uma grande fauna feminina a dizer "esse tamanho de biquíni, deve ser da sua filha" ou "tem a cueca ao contrário" (gargalhada). Nós somos muito mais educadas no machismo do que os rapazes. Aos rapazes é-lhes dada a liberdade. Nós é que somos as oprimidas: "não vistas isso", "não faças aquilo", "não venhas tarde", "não fales com não sei quem". Quem é que leva com a grande dose de lavagem cerebral? É muito natural que as mulheres sejam mais castradoras do que os homens. Nós é que levámos com a carga viral máxima.

Como é que faz com os seus filhos?
Lá em casa comem todos pela mesma tabela. Não há cá distinções.

Entrou na política há já alguns anos. Neste aspeto, o que é que mudou?
Há uma diferença boa, que é o facto de termos mais mulheres a fazer política. Nisso nota-se muito a diferença, não tem comparação com os tempos em que fui deputada, no início de 2000. Mas, mesmo assim, a postura em relação às mulheres, a atitude social, no grosso, ainda se mantém. Basta pensar que o primeiro comentário que adoram fazer na política em relação às mulheres é sobre o aspeto. Se são bonitas, é porque são bonitas. Se são feias, é porque são feias. Se se produzem, é porque se produzem. Se não se arranjam, é porque não se arranjam. Nunca estão contentes. Com a mulher é sempre assim: presa por ter cão, presa por não ter um cão, presa por ter o cão preso. Nisso não está diferente.

Ouviu comentários destes?
Claro. Agora e quando estava na política. Isto é como os ovários face ao Novo Banco: dá muito mais falatório o biquíni do que as competências, o esforço, mérito ou zelo das pessoas.

"Não estou particularmente entusiasmada com estas presidenciais"

De facto, faz muitas coisas. Acumula uma série de funções. É psicóloga, escreve livros, é comentadora. E é mãe. Como é que faz para ser tantas coisas?
Também tenho cães e um peixe. Primeiro, só faço 50% das minhas tarefas domésticas. Mesmo. Portanto, só sou mãe dos meus filhos em 50%. Há um 50% pai. Isso é realmente útil. Se querem um conselho de mulheres, arranjem um homem que faça 50%. Não é 23%, não é 30%. É 50%. Depois, tenho uma rede de suporte familiar ótima, que me ajuda. E acho que é uma questão de organização e de não perder tempo com o que não interessa. São opções. Se me perguntarem há quanto tempo é que não vejo televisão? Há muito tempo. Sinto que em Portugal há uma grande dificuldade em planificar e em fazer as coisas de forma mais sistemática. Vou também todos os dias ao ginásio. Mas não vejo Netflix.

Última tema. Vêm aí as presidenciais. Como é que vê os candidatos principais?
Estou contente de ver Ana Gomes, Marisa Matias porque, caso contrário seria um passeio no parque entre o "beijinhos e abraços" e o "fascista". Seria o populista benigno, com o populista maligno, quase ao estilo "Dr Jekyll and Mr. Hyde", numa versão cartoonesca. Portanto, acho bem que haja esta diversidade. Ainda bem que entrou aqui esta lufada de ar fresco. Mas também me preocupa que esta lufada de ar fresco não seja mais robusta e que não seja uma frente mais unificada ou articulada. Essa parte preocupa-me. Não estou particularmente entusiasmada com estas presidenciais, porque o segundo mandato é sempre menos entusiasmaste. Mas vamos ver.