A violenta agressão e consequente morte do estudante cabo-verdiano, a residir em Bragança, que demorou dez dias a chegar às autoridades portuguesas. O caso de Cláudia Simões, que terá sido violentamente agredida por um agente da PSP, a caminho da esquadra. A polémica em torno de Moussa Marega, o jogador do Futebol Clube do Porto, que este domingo, 16 de fevereiro, foi alvo de insultos racistas por parte dos adeptos do Vitória de Guimarães, que assistiam ao jogo em que os dois clubes se defrontavam.

Se o início de 2019 arrancou com o problema da violência doméstica no centro do debate público (até março, já tinham morrido 13 vítimas), pode considerar-se que o debate mais premente do arranque de 2020 está a ser o racismo. Uns desvalorizam a questão, outros consideram essencial que se reflita sobre ela.

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A História e os sintomas do quotidianos dão razão à segunda hipótese: é preciso refletir sobre o racismo. Mas as distintas formas de conversa não são todas igualmente produtivas. É que, mais do que justificado pela existência de pessoas racistas, o racismo é uma realidade que nasce de um sistema que o legitimiza e se recusa em assumi-lo.

Esta é a opinião Silvia Maeso, investigadora dos Centro de Estudos Sociais, que nos falou a partir da Universidade de Coimbra. A resposta para a nossa questão inicial parecia-nos bastante simples. Do ponto de vista individual, quando e porque é que as pessoas se tornam racistas?

Como diz a fundação Fundação Lilian Thuram – Educação Contra o Racismo, ninguém nasce racista, as pessoas tornam-se racistas. Esta parte é simples. A discriminação não vem cravada na nossa genética individual, como se de uma característica ou de uma doença física se tratasse.

“Nós não nascemos racistas, mas temos resistência à diferença. A discriminação é feita pelo desconhecimento, ignorância. Temos de mentalizar os miúdos de que somos todos diferentes: altos, baixos, gordos, morenos, uns com pele mais clara e outros com pele mais escura. Explicarmos que termos acesso aos mesmos direitos será a melhor forma para que o racismo não se construa”, diz a psicóloga Margarida Mendes à MAGG.

Mas, neste último ponto, será que temos mesmo acesso aos mesmos direitos? Dificilmente. É que, ainda que não esteja no nosso ADN físico, o racismo está impregnado na nossa genética histórica, cultural, social e política, por mais que se repita que em Portugal não há racismo, que Portugal é um país "tolerante". Aqui impõe-se a questão: não será esta ideia da tolerância, de benevolência face ao outro, uma forma de perpetuar o racismo?

Nem todas as injurias têm o mesmo peso. O que está em questão no caso de Marega não é só um ataque a uma pessoa: é a antinegritude, a desumanização que nasce com a questão colonial, que é atravessada pela escravatura racial, um conceito em que ser negro equivale a ser escravo e menos humano."

A realidade é que, de forma mais ou menos evidente, mais ou menos agressiva, mais ou menos consciente, o olhar colonialista persiste e, assim, a sociedade continua a privilegiar o branco e a oprimir quem tem uma cor de pele diferente e a desconfiar de quem vem de uma cultura que foge aos padrões europeus, tidos como normais, superiores e um exemplo daquilo que é o progresso.

“Claro que as crianças não nascem assim”, destaca de imediato a investigadora. Só que há os contextos sócio-políticos, herdados. “É uma questão histórica e enraizada. Aboliu-se a escravatura, mas a forma como se olha para a pessoa de pele negra perdura.”

A questão racial, segundo a investigadora, continua permear e a contextualizar quem é o sujeito que é acarinhado pela norma social e política. “O estado regula, quer cidadãos, mas tem uma concepção sobre qual é o cidadão que quer fazer crescer. E não são precisamente pessoas negras ou de etnia cigana, por exemplo.”

Desde pequenos que o nosso olhar nos leva a associar a “branquitude” às “questões positivas”. Se é branco, então é parte integrante da sociedade, um cidadão que tem direitos, que o estado valoriza e protege. “A negritude é constituída em oposição.”

De acordo com a investigadora, a ideia da negritude é tida como a contrária à concepção daquilo que é um ser humano completo. É o animal, é o “macaco”, como gritaram a Marega. E "por isso a única forma de nos relacionarmos com eles é mediante a violência.”

Sobre o caso do futebolista, Sílvia Maeso considera que o que se produziu ali não foi um simples insulto, como se de outro palavrão se tratasse. Foi um reflexo da mesma ideia: do humano branco, europeu e ocidental como superior.

“Nem todas as injurias têm o mesmo peso. O que está em questão no caso de Marega não é só um ataque a uma pessoa: é a antinegritude, a desumanização que nasce com a questão colonial, que é atravessada pela escravatura racial, um conceito em que ser negro equivale a ser escravo e menos humano. É um padrão repetido: a analimalização e a imitação de um macaco. É algo que tem uma história.”

É de facto um acontecimento repetido e aparentemente normalizado. Marega não é a única vítima de racismo no mundo do futebol, como mostra uma cronologia publicada pela edição online da TSF.

A realidade é que o caso do futebolista do FCP é o quarto de 2020. A 14 de fevereiro, o clube italiano Cagliari baniu do estádio três adeptos, na sequência de comportamentos racistas contra os adversários; a 27 de janeiro, o Espanyol identificou 12 adeptos que terão estado envolvidos na imitação de sons de macaco, dirigida ao avançado de origem ganas Iñaki Williams; a 8 de janeiro, a italiana Lazio foi punida por cânticos racistas dirigidos a Mario Balotelli.

A lista é longa, vai até 2012 e inclui também casos em que bananas foram arremessadas aos jogadores: aconteceu em dezembro de 2018, quando um adepto do Tottenham atirou esta fruta ao jogador do Arsenal gabonês Pierre-Emerick Aubameyang, que comemorava um golo. Ou ainda em abril de 2014, quando adeptos do FC Barcelona atiraram uma banana ao defesa brasileiro Dani Alves (que a apanhou e comeu).

“A normalidade democrática do racismo é que é preocupante”

Em muitos destes casos houve punição. Mas será que é assim que se resolve o problema? De acordo Silvia Maeso, é preciso mais, é preciso ir muito mais fundo, é preciso pôr em causa os pilares sobre os quais se erguem as sociedades que ainda ontem eram coloniais. É preciso refletir objetivamente sobre a história de Portugal.

Marta Araújo, investigadora do mesmo centro de estudos, autora da tese "Racismo.pt?", vai ao encontro da mesma ideia. Considera que "a especificidade portuguesa face ao racismo deve ser compreendida de forma crítica”, porque só assim será possível "desenhar políticas e outras formas de intervenção social” que sejam “capazes de lidar com a resiliência deste fenómeno [racismo] em Portugal.”

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Só que admitir isto não é fácil. “No momento em que se confronta o racismo de forma estrutural, põe-se em cheque a identidade das pessoas, sobre o que é ser português, sobre o que é ser branco. As pessoas não querem lidar com isso.”

É que o racismo, diz Sílvia Maeso, não tem que ver com pessoas racistas. “Isso são sintomas. São sintomas da democracia europeia. A normalidade democrática do racismo é que é preocupante.”

Negam-se os sintomas quotidianos do racismo, que se mascaram de outras formas, como se fossem um acaso. “Um imigrante que está cá há 30 ou 40 anos, continua a ser chamado de imigrante”, diz. “Depois, há segregação, como se fosse normal que as pessoas ciganas ou de pele negra vivessem em bairros afastados dos centros da cidade, tidos como problemáticos e com um policiamento violento e muito superior. É como se fosse normal as escolas tidas de pior qualidade estarem nas piores zonas.”

Isto não é uma casualidade, diz. Mas é como se fosse. “O racismo naturaliza coisas que têm que ver com relações e decisões política, que têm uma historia.”

O Ministério Público já abriu inquérito aos insultos de que Marega foi alvo. O Primeiro-Ministro, António Costa, apoiou o jogador no Twitter.

Mas voltamos ao mesmo. “A condenação e a pena destas pessoas não resolve a problema.” É a nível político que se tem de agir. Mas parece haver resistência, porque os estados e governos, considera, “são tão protetores da branquitude, portanto não se mexe mais do que no estritamente necessário.”

Além de pôr em causa a identidade portuguesa e a estrutura social, pensar o racismo de forma sincera também poderá prejudicar alguns. É que o racismo não produz só violência — também produz interesse e benefício, como já havia referido Lúcia Xavier, ativista e fundadora da organização brasileira Criola.

“No momento em que se mexe nisto por inteiro, mexe-se com privilégios em que as pessoas brancas têm interesses. É outra questão fundamental: não se fala no racismo em termos de relação de poderes e de interesses", comenta Silvia Maeso.

“Não se fornecem ferramentas para que as crianças percebam que isto é uma construção política”

O sistema educativo é um reflexo dos estados vigentes. Assim, e voltando à questão inicial, é também aqui que o racismo se produz, assim como em casa e até nas zonas da cidade onde se vive. Não é que os pais, os professores ou as ruas o fomentem. Mas é a forma como a sociedade se estrutura, é a forma como se veda o caminho à reflexão sobre a questão racial.

“Não se fornecem ferramentas para que as crianças percebam que isto é uma construção política", diz.

Fala-se de uma educação pautada pela meritocracia, de que as oportunidades são iguais para todos. Diz-se que com esforço há o reconhecimento do trabalho, diz-se que com esforço é possível ir onde se quer. Mas será isto igual para todos?

Não há discussões raciais nos manuais escolares”, diz. “Há uma dificuldade em abordar a escravatura como meio para o problema racial, que foi fulcral.”

“Passa-se a ideia de que o sistema educativo tem as mesmas expectativas perante todas as pessoas, mas não tem. Uma criança de etnia cigana que entra na escola tem logo sobre si muitos séculos de opressão. O sistema educativo não olha para essas crianças como olha para as pessoas que considera os cidadãos exemplares.”

O polémico artigo de opinião da historiadora Fátima Bonifácio, publicado no jornal "Público", poderá constituir um exemplo desta ideia — e, na realidade, de todas as outras formas de superioridade branca e europeia, incluídas neste artigo. Pessoas negras e de etnia cigana excluem-se porque são "inassimiláveis":

  • "É só ver a quantidade de meninas e meninos ciganos que abandonam os estudos, apesar dos subsídios estatais de que os pais continuam a gozar para financiar (ou premiar!) a ida dos filhos às aulas; é só ver o modo disfuncional como se comportam nos supermercados; é só ver como desrespeitam as mais elementares regras de civismo que presidem à habitação nos bairros sociais e no espaço público em geral."

Depois, tal como acontece nas estruturas maiores, também nas escolas não se conversa francamente sobre onde é que tudo isto começou. “Não há discussões raciais nos manuais escolares”, diz. “Há uma dificuldade em abordar a escravatura como meio para o problema racial, que foi fulcral.”

Era preciso incluir o debate racial na universidades, acabar com as disciplinas que narram os descobrimentos portugueses como período de glória, mesmo que se tenha oprimido e escravizado. É preciso questionar institutos que fomentam esta narrativa “portugalizada sobre a experiência da branquitude” e é também necessário reconhecer que, em pleno século XX, na época do ultramar do Estado Novo, que foi a realidade de há poucas dezenas de anos, continuávamos de forma flagrante a impôr-nos ao outro, fomentando a assimilação e não a integração.

“Tanto na ‘metrópole’ como no ‘ultramar’, os direitos eram concedidos àqueles que adoptassem os valores e costumes dos portugueses brancos (os ‘assimilados’); junto dos outros, precisamente, promovia-se a diferença, exotizando-a e inferiorizando-a”, escreve a investigadora Marta Araújo.

O racismo, a opressão, a discriminação e o enaltecimento do branco sobre o outro devem ser abordados do ponto de vista histórico e “do ponto de vista do poder e do privilégio”, porque só assim é possível usufruir de “uma educação que nos torne conscientes do lugar que ocupamos.“

Mas é difícil pensar fora disto. É difícil assumir que o “país dos brandos costumes” pode ser, como diz a jornalista e autora Joana Gorjão Henriques na capa do seu livro, o “país dos brancos costumes”. A objetividade é fundamental para se derrubar o mito.

É que só assim se poderá ver que Portugal, mais do que um país tolerante face ao outro é “um país com grande tolerância face ao racismo.”

E, a partir daí, tentar mudar.