Uma carcaça com fiambre embrulhada em celofane, um pacote de sumo de frutas e pouco mais. É este o conteúdo de muitas ceias distribuídas por alguns hospitais portugueses aos profissionais de saúde na linha da frente do combate à pandemia durante os turnos nocturnos (entre as 22h e as 8h30), período de tempo em que os profissionais não têm direito a subsídio de alimentação.

A situação foi divulgada na manhã desta quinta-feira, 21 de janeiro, numa partilha de António Raminhos nas redes sociais, rapidamente replicada por dezenas de utilizadores do Instagram. "É isto. É isto que os profissionais de saúde têm para comer durante um turno de quase 11h. Não anda a circular na net, foi uma amiga enfermeira que me enviou. Ah, e falta uma maçã que já tinha deitado fora porque estava podre! Quem anda a salvar vidas... é isto", escreveu o humorista, que incentivou grandes marcas e empresas a ajudar com doações, salientando que está na altura de ajudar, e não de apontar o dedo.

Quanto ganham afinal os médicos e enfermeiros em Portugal? Muito pior do que pensa
Quanto ganham afinal os médicos e enfermeiros em Portugal? Muito pior do que pensa
Ver artigo

"Logo vou ter direito a uma ceia igual, que é de facto muito pobrezinha para quem trabalha das 22h às 8h". "Maçã? Que sorte! A minha ceia no hospital é uma sandes e um sumo/iogurte. Não há fruta". "Essa ceia é de facto uma realidade de há muito tempo, já foi bem melhor. Mas depois de se sair de um serviço COVID, não é de todo o que nos satisfaz" foram algumas das reações à publicação original de Raminhos por parte de utilizadores que se identificam como profissionais de saúde, e que salientam verificar algo semelhante nos seus locais de trabalho.

"Já há alguns anos que as ceias diminuíram de qualidade"

A confirmação da realidade das ceias dos hospitais chegou da parte de quem lá trabalha dia e noite. Maria (nome fictício, dado que a profissional de saúde preferiu preservar a sua identidade), 31 anos, enfermeira do bloco operatório, descreve à MAGG que a pandemia veio mudar as refeições cedidas pelo hospital em que trabalha no turno da noite, onde os profissionais não têm direito a subsídio de alimentação, ao contrário do que acontece nos outros horários.

"Antes da pandemia, existia a hipótese de escolha entre ceia quente e fria. A quente era servida na copa entre as 23h30 e as 2h, com sopa, prato principal e sobremesa. A fria era composta por sumo ou leite, sandes, manteiga individual, um pacote de café em pó, açúcar e fruta", explica Maria, que salienta que, devido à necessidade de reduzir os contactos e exposição à COVID-19, passou a existir apenas ceia fria. "Deixámos de poder escolher o conduto do pão, ou se queremos sumo ou leite, e as ceias já estão preparadas, e têm de ser levantadas entre as 23h30 e as 2h".

Também a enfermeira Rita (nome fictício), 36 anos, confirma a existência destas ceias, embora explique que, no seu local de trabalho, a diminuição da qualidade da refeição não está ligada à pandemia. "Já há alguns anos que as ceias diminuíram de qualidade e mesmo de quantidade de alimentos", refere a profissional de saúde à MAGG, que descreve o conteúdo destas refeições.

"Uma peça de fruta, um pão mole com uma fatia de queijo ou fiambre, e um sumo ou iogurte. Antes, tínhamos a possibilidade de escolher o pão, às vezes, conforme disponibilidade, ainda existia um bolo, e tínhamos mais escolha de bebida — agora temos sumos fracos, carregados de açúcar", salienta Rita, que trabalha num hospital na periferia de Lisboa, uma unidade público-privada, e que nos últimos três meses já passou por três serviços diferentes. "Sou enfermeira de bloco operatório, mas o meu serviço reduziu a produção e cerca de 30 a 40 enfermeiros do bloco foram mobilizados para dar apoio aos intensivos ou outros serviços de internamento que precisem."

"Nunca nos foi dada a hipótese de escolher entre o subsídio de alimentação e a ceia"

A realidade destas duas enfermeiras é a de muitos profissionais de saúde portugueses. No entanto, é importante reforçar que não podemos generalizar a situação das ceias, dado que cada hospital tem propriedade de decisão para fazer a sua própria gestão, independentemente de pertencerem ao Serviço Nacional de Saúde. Contactada pela MAGG, fonte do ministério da Saúde reforça que "cada hospital pode subcontratar empresas fornecedoras" para serviços de refeições e limpezas, sendo assim uma gestão individual de cada unidade de saúde.

"Nos quatro anos que trabalho no hospital, nunca nos foi dada a hipótese de escolher entre o subsídio de alimentação e a ceia. No meu caso, preferia ter acesso ao subsídio", esclarece Maria, que avança que esta é uma opção logística e/ou económica da unidade de saúde onde trabalha. No entanto, e apesar de a enfermeira reconhecer que seria proveitoso voltar a ter mais hipótese de escolha e que a ceia devia ser mais rica em termos nutritivos, é a primeira a não querer desviar atenções do que é verdadeiramente importante no momento crítico que o País atravessa.

Cientistas alertam: COVID-19 vai matar 10 mil portugueses até meados de março
Cientistas alertam: COVID-19 vai matar 10 mil portugueses até meados de março
Ver artigo

"Acho que, neste momento, o ênfase deve ser dado à sensibilização da população, para que esta se proteja, nomeadamente através da redução de contactos", salienta a enfermeira. A opinião é partilhada por Rita, que apesar de também reconhecer que o hospital onde trabalha podia oferecer uma melhor ceia, enaltece os esforços da administração e da direção de enfermagem da sua unidade de saúde. "Estamos a passar por um momento extremamente difícil devido à pandemia, e ambos têm sido incansáveis e há uma tentativa para dar aos profissionais do hospital as melhores condições possíveis."

Em março, batiam-se palmas. Agora, pedem-se doações

Na publicação de António Raminhos, o humorista pediu ajuda a todos os que pudessem para contribuírem, incentivando a sua comunidade a identificar nos comentários marcas e empresas para estas disponibilizarem doações. A ideia é partilhada pelas duas enfermeiras com quem a MAGG falou, que reconhecem que estes gestos fazem a diferença.

"Acho que seria proveitoso motivar as grandes empresas, que devem ter um desperdício maior, a doar alimentos. Até porque tudo se aproveita nas copas dos hospitais", salienta a enfermeira Rita, que recorda que existiram imensas doações na primeira vaga da pandemia. "Agora, ainda não vi nenhuma oferta e estamos cinco vezes pior. As doações acabam por ser um mimo, um conforto e um pequeno alento neste momento tão difícil que estamos a passar."

Também Maria salienta as muitas doações feitas no início da pandemia, que não se estão a repetir agora. "Pelo Natal, uma cadeia de supermercados lembrou-se de nós e ofereceu a cada serviço um cabaz semelhante aos que deram aos clientes. E atenção que considero isso um gesto de gratidão e generosidade, e salvaguardo que há famílias que perderam os seus empregos, que também precisam de ajuda e até mais do que nós. As marcas e os supermercados não têm de fazer mais do que o seu trabalho. Mas claro que há gestos que sabem sempre bem."