Apanhamos Cátia Goarmon em dia de gravações. "Estou aqui entre um refogado e outro", avisa-nos. A nós, parece-nos o cenário ideal.
Ganhou o prefixo de tia para nos entrar televisão adentro, quando passou de concorrente do Masterchef para cara do 24 Kitchen. O programa "Os Segredos da Tia Cátia" já vai na sexta temporada e, agora, Cátia lança-se nos livros.
"Comida de Tacho" é lançado esta quarta-feira, 2 de outubro, pela Casa das Letras, e conta com duzentas páginas daquela comida capaz de nos deixar de estômago quente. Canjas, sopas de bacalhau, açordas, feijoadas de búzios, ovos escalfados, chili, guisados de borrego e aletria de abóbora. Tudo feito no tacho, como Cátia mais gosta de cozinhar.
Acredita que o forno faz o trabalho sozinho, mas a panela vive da imaginação de quem junta os ingredientes. E como não gosta de seguir regras nem fazer a mesma coisa duas vezes, deixa estas receitas para quem procura nela uma inspiração.
Lançou um livro de receitas. É das que as segue à risca?
Não, de todo. Eu sou aquela que, se me pedem para reproduzir uma das minhas receitas, tenho que ir ver ao meu livro. Mas acabo sempre por nunca fazer igual.
Mas tem alguma na qual nunca mexa?
Não mesmo. Ficam parecidas, mas nunca iguais.
É o seu lado criativo a falar?
Tenho uma grande necessidade de criar coisas novas e também porque não gosto de fazer coisas iguais. Já os filhos, fiz dois diferentes. Os dois rapazes, mas muito diferentes.
E depois tenho alguma falta de memória, o que faz com que me esqueça sempre de algum ingrediente ou o troque por outro.
E já que fala dos seus filhos, qual é a receita que a família mais lhe pede para repetir?
Lá em casa gostam muito dos caris e do chili. Ah, e gostam muito de sopa.
Se tivesse que se especializar em alguma cozinha, era em qual?
Era em comida de conforto, em comida de tacho, que é aquilo que eu mais gosto de fazer. Podemos sempre ir criando, ir inventando, e nunca fazer igual.
Mais do que outras formas de cozinhar?
Uma coisa de forno, por exemplo, uma pessoa não tem tanto o controlo sobre o que vai sair, nem tanta possibilidade de mudar. Pomos tudo no forno e o forno limita-se a fazer o seu trabalho. No tacho, temos uma ação mais intervencionista. Podemos acrescentar temperos, ingredientes, mudar a textura.
A comida de tacho parece que alimenta mais do que apenas o estômago.
É isso mesmo. Quando se cozinha no tacho vai-se construindo os sabores. Acrescento sal, ponho mais água, tempero com pimenta. É muito mais criativo.
Que memórias lhe traz a comida de tacho?
Em casa dos meus pais sempre se cozinhou de forma muito variada. E como éramos muitos, havia sempre o milagre da multiplicação. Com um frango fazia-se um jantar para uma data de gente. A necessidade aguça o engenho, puxa pela nossa criatividade. Cozinhar para muita gente é mais apetecível, muito mais do que grelhar um bife ou fazer um hambúrguer.
Qual é a vantagem de cozinhar tudo na mesma panela?
É o processo de construção. Gosto da analogia do construir uma casa versus ter uma casa pré-fabricada. É como na cozinha. Ao cozinhar num tacho começamos por uma base e vamos construindo em cima dela. No forno, é tudo mais pré-fabricado, pomos menos amor na comida.
Tem cuidado com o nível nutricional dos pratos, ou o mais importante é o sabor?
Tento associar as duas coisas, claro. Mas há determinados pratos que têm que ser feitos com determinados ingredientes, mas no dia a dia tento usar sempre gorduras mais saudáveis, menos açúcar, mais legumes até em pratos nos quais não era suposto. Habitualmente junto curgete, cenoura e aipo à lasanha, por exemplo. Mas se for assim um doce tipo as nozes de Cascais, que levam imenso açúcar e imenso ovos... Nesse caso, é preferível comer menos mas comer bem feito, do que fazer uma tentativa de uma coisa que depois já não é coisa nenhuma.
E fez questão de incluir várias receitas vegetarianas.
Eu gosto muito de tudo. Não sou de gostar mais de carne do que de peixe, ou mais de vegetariano. Sou de doces e sou de salgados. Gosto de tudo e acho que no equilíbrio é que está o ganho.
Faço receitas vegetarianas porque, não só gosto muito de provar que não é por ser vegetariano que deixa de ter sabor, mas também porque hoje em dia tento diminuir o consumo de carne.
Tem descoberto novos sabores?
Eu estou sempre a inventar e como sou destemida, ando sempre a descobrir coisas novas. O grande problema da maioria das pessoas que trabalha em cozinha é não arriscarem. Como geralmente não têm muito tempo, preferem jogar pelo seguro e fazer as coisas sempre da mesma forma.
Eu como sou um bocadinho para o louco, faço umas experiências um bocadinho inusitadas que até acabam por correr bem.
Algo de mais surpreendente?
Talvez a canja de atum, uma das receitas do livro. Estamos habituados à canja de galinha, mas eu já experimentei fazer com cação, com atum, com garoupa e fica fora de série. Outra coisa que tenho feito muito é o massoto, ou seja, pego na receita do risota e substituo o arroz por massa pequenina. E faço massoto de carapau. Está ali entre a massada de peixe e o risotto.
Ainda que com essas influências internacionais, a comida portuguesa continua a ser a sua preferida?
Comida preferida? Eu gosto de tudo que tenha sabor. A cozinha mediterrânea é fantástica e, por muito que recorramos a influências de outros países, há bases muito nossas. É o tudo começar com cebola e alho, o belo do refogadinho.
Concorreu ao Masterchef quando ficou desempregada. Hoje em dia, agradece esse despedimento?
Eu agradeço todos os dias aquilo que tenho. Acho que as coisas não nos acontecem por acaso e tudo tem uma razão de ser. Concorri ao Masterchef porque não sou de ficar em casa. Assim, em vez de ficar desempregada e deprimida, fiquei só desempregada [risos]. E também porque queria muito ganhar o curso profissional de cozinha. Na altura eu já cozinhava bem, mas o problema era que ninguém sabia. Precisava de ter um diploma que provasse que eu sabia cozinhar.
Mas teve que desistir.
Sim, parti o braço e não pude continuar. Na altura custou-me a perceber qual seria a razão para aquilo me estar a acontecer, mas pouco depois estava a fazer o teste de imagem para a FOX, que procurava pessoas que cozinhassem e que tivessem capacidade de comunicação. Fiz o teste, gravei o programa piloto, correu bem a primeira temporada, correu bem a segunda, correu bem a terceira e já está no ar a sexta.
Consegue justificar esse sucesso?
Não. [risos]
Mas já houve várias edições do Masterchef e a Cátia, que teve que desistir, chegou à televisão e agora também a este livro.
Eu francamente ponho-me a pensar e acho mesmo que as coisas já estão escritas e só é pena que não nos entreguem um guião logo no início. Parecia que eu tinha que ficar desempregada naquela altura, que tinha que descobrir que gostava mesmo de cozinhar. Eu, até ali, só cozinhava na ótica do utilizador, até porque temos a ideia de que aquilo que fazemos por gosto não e trabalho.
Quando é que percebeu que podia fazer da cozinha o seu trabalho?
Não tenho aquela história do “Um dia que seja crescida quero cozinhar, ter um programa de televisão, escrever livros”. Foi tudo acontecendo. Eu não me resigno, mas aceito e agradeço o que me acontece. Seja o que Deus quiser. Se calhar esse pensamento positivo fez com que as coisas acontecessem naturalmente.
A isso tudo junta-se uma equipa fora de série, que me deixa tão à vontade que eu nem sinto que estou num ambiente de trabalho. Eu venho brincar com amigos todos os dias que, por acaso, me pagam, o que dá bastante jeito [risos]. Mas aqui posso ser eu, até porque não sei ser mais ninguém.
As pessoas ainda replicam as receitas que faz ou estes programas são entretenimento puro e duro?
Há de tudo. Eu faço este paralelismo: as novelas estão para os atores como o programa de televisão está para mim, e o teatro está para os atores como os showcookings estão para mim. Os showcookings dão-me uma resposta imediata. Eu cozinho, eles provam, é muito mais interativo.
Pela televisão, as pessoas recebem-me, mas eu não sei quem elas são. Nos showcooking estamos frente a frente. Ainda no outro dia, uma rapariga brasileira e que estava há pouco tempo cá veio ter comigo e disse: “Eu não sabia estrelar nem um ovo”. E que aprendeu a cozinhar comigo. Achei amoroso. E tive um miúdo de oito anos que me disse: “Tia Cátia, eu vejo-a desde pequenino”. [risos] E depois há aquelas pessoas de oitenta e muitos anos, que já nem sequer cozinham, mas que gostam de ver pela companhia. Imaginam que eu podia ser uma filha, uma sobrinha.
Já era tia de alguém antes de ser a Tia Cátia da televisão?
Na vida real sou tia desde os nove anos. Mas o nome foi escolhido pela produção, por acharem que as pessoas viam em mim uma irmã, uma prima, uma tia. Como a minha faixa etária já não é propriamente a dos vinte, passei rapidamente de prima a tia. Se fosse um bocadinho mais tarde seria a Avó Cátia.