Herman José, 70 anos, completa 50 anos de carreira este ano. Para assinalar este marco, vai dar três espetáculos especiais no mês de outubro, “50 Anos Herman & Big Band”, a 4 e 5 de outubro no Campo Pequeno, em Lisboa, e a 19 na Super Bock Arena, no Porto. Os bilhetes estão à venda na Ticketline e os preços variam entre os 20€ e os 65€.
Em entrevista à MAGG, o humorista revela a retrospetiva que faz do seu percurso profissional e se se imagina a trabalhar durante uns bons anos ou se pensa em abrandar. Além disso, não esconde que se sente o ‘pai’ de muitos nomes da comédia em Portugal, apesar de existir quem não o valorize.
Herman José, com o “Cá Por Casa” atualmente na RTP1, adianta ainda que mudanças acha necessárias de acontecer na cultura no País e recordou uma época dura, quando estava na SIC, em que teve de se preocupar com as audiências dos seus programas.
Leia a entrevista.
No mês de outubro, vai celebrar os 50 anos de carreira com três espetáculos especiais, dois em Lisboa e um no Porto. O que é o público pode esperar?
Pode esperar uma espécie de best off de tudo aquilo que eu tenho feito na estrada ao longo destes 50 anos. O trabalho na estrada é diferente do da televisão, apesar de ter muitos momentos dedicados ao passado em televisão. São vários núcleos de ideias e de brincadeiras que, com o tempo, vão evoluindo. Portanto, o espetáculo acaba por ser um buffet de tudo do melhor que tenho desses anos posto emoldurado por uma orquestra gigantesca. Acho que vai ser um momento muito divertido. Para mim, com certeza, que vou adorar fazê-lo, mas sobretudo para as pessoas que vierem.
A propósito dos biopics que a SIC e a TVI têm feito, de Marco Paulo e de Tony Carreira, respetivamente, quem é que gostaria de ver a interpretá-lo, caso fizessem um sobre si?
Para já, tinham de arranjar alguém que fizesse de jovem Herman. Tínhamos de ter três partes diferentes: a minha parte infantil, e para isso tinha de se fazer um casting para arranjar um miúdo pequenino e louro que fizesse de mim.
Depois para a fase mais importante da minha vida, daquele arranque todo, tinha de ser um tipo dinâmico e esperto, tipo Zé Condessa. E depois tínhamos de arranjar um tipo mais maduro e vivaço que fizesse de mim na atualidade. Aí, se calhar, tinha de ser eu a fazer o papel (risos). Neste momento, não estou a ver ninguém que seja assim, que fisicamente esteja perto.
No dia em que completou 70 anos, em março deste ano, foi condecorado pelo Governo com a Medalha de Mérito Cultural, quase 30 anos depois de receber o grau de Comendador da Ordem do Mérito por Mário Soares, então presidente da República. Que significado têm para si estes feitos?
É engraçado, porque foram dois significados diferentes. Quando aos 30 e tal anos se recebe uma condecoração, a perspetiva que se tem é de uma espécie de alegria, tipo fogo de artifício, é qualquer coisa muito engraçada que nos acontece, mas à qual não damos o valor devido porque estamos muito ocupados a tratar da nossa vida.
Quando se é condecorado aos 70, é um bocadinho mais sério, no sentido em que já se viveu muito e quem nos está a homenagear está, com a sua atitude, um bocado a sancionar o nosso percurso de vida. E isso é muito emocionante e muito bonito, porque amadurecer bem artisticamente tem que se lhe diga. É um desporto de alta competição. E isso eu tenho feito com alguma qualidade, e orgulho-me disso.
O Herman tinha uma relação relativamente próxima com Mário Soares. Como é a sua relação com o atual presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa?
É de grande respeito mútuo, mas muito cerimoniosa. Ele, de resto, também me condecorou há pouco tempo com o grau de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, a propósito dos 40 anos d’ “O Tal Canal”, numa cerimónia onde leu um texto muito, muito giro, muito bem escrito e que me tocou imenso.
Acho que temos uma admiração mútua e um grande respeito mútuo, mas socialmente temo-nos encontrado muito pouco. A última vez que nos encontrámos, tirando a condecoração, foi no espetáculo de Tom Jones, em Cascais. Estava ele na primeira fila e fui lá cumprimentá-lo. De resto, ele nunca se deixou entrevistar por mim, o que é giro. Nem ele nem o Mário Soares. Estas coisas são assim, só fazem sentido quando a outra parte está interessada.
Há cerca de 27 anos, foi alvo de críticas por parte de Marcelo Rebelo de Sousa, enquanto este era líder do PSD, devido ao sketch da recriação da Última Ceia de Cristo, integrado na rubrica “Herman Zap” do programa “Parabéns”. Isso toldou a vossa relação?
Não, de maneira nenhuma. É importante voltar àquela época e perceber que aquele Portugal não é este Portugal. Na altura, o País, naquela altura especificamente, dividiu-se um bocado em direita e esquerda. Portanto, a luta deixou de ser minha e passou a ser política.
Como o Marcelo era líder da oposição, teve um bocadinho de fazer aquele papel, que fez com alguma elegância e nenhuma má vontade, não foi nenhuma força ativa para bloquear coisa nenhuma. Ele foi até bastante elegante e, no fundo, o que ele disse fazia sentido naquela altura, porque a sociedade não estava tão sedimentada e a nossa democracia não estava tão segura e tão sedimentada como está agora, ainda se discutiam várias coisas e ainda estava muita coisa no ar. Portanto, é importante ter essa capacidade de, historicamente, provocar alguma distância e perceber que as coisas não são tão importantes nem tão graves como pareceram.
Este ano completa 50 anos de carreira. Que retrospetiva faz?
Acho que passaram tão depressa que eu parto do princípio de que devem ter sido excelentes, porque lembro-me que o meu pai odiava a profissão que tinha, estava ansioso por se reformar e quando se reformou foi o dia mais feliz da vida dele. E eu não sinto nada isso. Quando uma pessoa tem uma profissão que adora, como é o meu caso, o tempo quase que não conta. Espanta-me, sim, ter chegado aos 50 anos de carreira em tão boa forma, e isso é uma sorte.
Então imagina-se a continuar a trabalhar durante uns bons anos ou já pensa em abrandar?
Imagino continuar a trabalhar até me dar prazer, mas quando não estou a trabalhar tenho uma vida tão gira e sou de tal maneira feliz, que assim que sentir essa necessidade vai ser automático e sem nenhuma tristeza. Deixo de ser um jovem trabalhador para ser um ilustre reformado e bem-disposto a aproveitar cada minuto da vida.
"Há colegas por quem eu lutei e trabalhei muito e que hoje em dia nem se lembram que eu existi"
Mesmo passados todos estes anos, continua a ser um dos nomes mais importantes do humor e da televisão portuguesa. O que é que acha que tem/faz que continua a prender o público ao ecrã? Como é que se tem reinventado?
Eu acho que o segredo de qualquer profissão artística é pegar nos 10% de inspiração que se possa ter e nunca deixar de juntar aos 90% de transpiração. O segredo para a longevidade é sempre o trabalho. Trabalho, rigor, exigência e, se esses se mantiverem, a carreira e o artista mantêm-se. Se a pessoa começar a confundir popularidade com preguiça, e começar a ir sistematicamente pelas vias mais fáceis, aí começa a decadência. É muito rápida, dava uma longa lista de nomes que desapareceram, cuja importância foi esvaziada em poucos meses.
Com 50 anos de carreira, o que é que lhe falta fazer? Ainda há algum projeto/formato que gostasse de fazer na TV e não só?
Em todos os órgãos de comunicação, é a única resposta que é sempre igual. A única coisa que me falta fazer é sair o Euromilhões (risos), que é para eu ter a experiência de poder gozar alguns luxos sem ter de trabalhar, porque trabalhar dá muito trabalho.
Em 2018, revelou numa entrevista que tinha sido convidado para fazer uma novela, mas recusou. Surgiram mais convites desde então? Continua a não querer enveredar por essa área?
O drama da novela é que ocupa espaço demais. Para quem faz espetáculos como eu, que já tenho mais de dez espetáculos marcados para 2025, como é que eu podia? A novela dura meses, é um trabalho diário, portanto seria impossível. Já surgiram mais convites, muitas vezes, mas não é nada que eu fizesse com prazer, até porque eu odeio rotinas.
De tudo o que já fez, tanto na TV, como na rádio, na música ou na comédia, houve algum projeto que o tenha marcado mais?
Eu acho que vai ser este [os espetáculos] que vamos fazer agora. Da maneira como as coisas estão preparadas, o tipo de palco que vamos ter, o tipo de alinhamento, o tipo de conteúdo, o tipo de repertório, acho que vou ter muitas, muitas saudades destes dias, muitas mesmo.
Não tendo filhos, é o ‘pai’ de quase todos os nomes da comédia em Portugal. Sente-se responsável pelo sucesso profissional deles?
Sinto. Há muitos atores que eu ajudei a formar e muita gente que se inspirou um bocado naquilo que eu fiz. E tenho muito orgulho nisso. Mas ainda tenho mais orgulho quando são os próprios a reconhecer, porque há colegas por quem eu lutei e trabalhei muito e que hoje em dia nem se lembram que eu existi, também existe. Isso às vezes entristece-me um bocadinho, mas há muitas pessoas gratas que passaram pelas minhas mãos e acho comovente ver os caminhos tão interessantes que eles tomaram e a influência tão positiva que eu tive na vida deles.
A Gabriela Barros, que faz parte do “Cá Por Casa”, é um dos exemplos mais recentes.
É fantástica. A Gabriela parece uma espécie de um barro em estado puro que podemos trabalhar. Tem muitos recursos, fala línguas, tem muitos sotaques, é muito bem disposta, muito descomplicada. Mas sem desprimor aos outros atores que são geniais, como a Maria Rueff, a Joana [Pais de Brito], que é genial, e o Manuel Marques, que é um bloco de granito. A Gabriela foi uma extraordinária surpresa, acho.
Na condecoração pelo Governo este ano, o Herman alertou para o facto de o Estado ter “a obrigação de derramar mais dinheiro e mais interesse para manter vivas certas artes que sem subsídio não subsistem”. Que mudanças acha que são necessárias de acontecer na cultura em Portugal?
Neste momento, teria de haver, por parte de quem distribuísse os dinheiros, alguém muito apaixonado pela cultura para conseguir convencer um País que tem tanto por onde gastar dinheiro, nas empresas, nos aumentos, nas polícias e nas funções públicas. Eu percebo que a cultura é sempre o parente pobre, mas pode ser que um dia apareça uma daquelas figuras que milita na cultura e que são viciadas em cultura e que consiga essa coisa revolucionária que é mobilizar verbas interessantes para animar o mundo cultural português. Mas com grande fiscalização para que o dinheiro não seja derramado naquelas coisas às vezes umbiguísticas que não interessam a ninguém, só interessam aos próprios que vão lá ganhar dinheiro, e que põem em causa os apoios. Portanto, a generosidade tem de ser acompanhada com grande profissionalismo e muita fiscalização.
Além de pioneiro em Portugal no tipo de humor que faz, abriu caminho para a liberdade de expressão. Contudo, tantos anos depois, esta está a ser beliscada novamente e, se fizesse certas coisas agora, como pintar a cara de preto para fazer um indígena, não seria bem visto. Como é que vê esta mudança?
Há coisas que ficaram melhores. Há uns exemplos da cultura woke que são um bocadinho irritantes, não se pode isto, não se pode aquilo porque é ofensivo. Essas evoluções são comboios rápidos que nós não conseguimos travar e há aquele provérbio que diz que se não consegues combatê-los, junta-te a eles. Há muitas dessas regras que depois as pessoas acabam por seguir e não combater para não haver problema. Mas também é verdade que há coisas que ficaram muito mais soltas e leves.
Nessa história da Última Ceia, por exemplo, nos anos 90, agora não teria acontecido nada. Agora o próprio papa Francisco convida comediantes para explicar que rir e fazer rir não é nenhum pecado. Mesmo assim, eu acho que a evolução positiva ultrapassa largamente as coisas negativas de certa cultura woke dos nossos dias.
Numa entrevista ao “CM”, garantiu que, na sua arte, tem “poucos concorrentes no mundo”. Ao longo dos anos, nunca teve receio de que algum humorista ou personalidade de TV o substituísse?
Não, porque em arte ninguém substitui ninguém. O que acontece é que o mercado português é muito pequenino e não raras vezes se ressente de certas novidades. Lembro-me que, na fase das “Chuvas das Estrelas”, há muitos anos, o mercado foi inundado de jovens cantores, houve imensa gente que teve menos espetáculos e trabalhou menos. Em países como o Brasil e os Estados Unidos, que são gigantescos, há espaço para toda a gente. Tal como na alta competição, ninguém acaba em primeiro sempre. As coisas têm um tempo, duram um certo tempo.
Temos de estar humildemente preparados para a chegada de outras pessoas, com outras ideias, outras energias, outras convicções, e que ganham os seus espaços, que têm depois a sua importância. Temos de ter a humildade e a inteligência de manter o nosso espaço vivo o melhor que pudermos para as pessoas que nos seguem e não perder a cabeça a achar que vamos competir só porque há um suposto primeiro lugar que não se deve perder. Eu nunca funcionei assim e, antes pelo contrário, sempre que chega alguém com muito talento, fico muito mais a aplaudir do que preocupado com o que pode acontecer com a minha pole position (“primeira posição”, em português).
Há algum humorista atual que destaca?
Há vários dos quais eu gosto muito e não vou dizer nenhum nome em específico, porque eu sei que os outros vão ficar muito tristes, mas há muita gente muito útil e muito gira da qual eu sou espectador e que acho que são belos artistas.
Também mencionou que gosta da televisão que está a fazer agora, em que não precisa “de pensar nas audiências”. O que é que, no passado, fez por audiências que se tenha arrependido?
A única vez em que eu me preocupei com audiências foi quando fui para a SIC. Aí foi muito duro, porque o nosso programa durava imenso tempo, duas horas e meia aos domingos, e nós levávamos em cima com programas como o “Big Brother” e coisas do género. Portanto, foi uma fase muito dura e da qual não tenho nenhuma saudade. Eu não nasci para andar a correr atrás dos números. Claro que se me disserem que os 4.400 lugares do Porto esgotaram num instante, fico feliz, mas como acontecimento isolado. A ideia de estar a comparar-me com outros espetáculos, outras vendas, outros artistas, outras vitórias... não nasci para esse tipo de corridas.
Sou muito mais feliz a fazer aquilo que eu acho muito bom e que está certo e que não está formatado para no dia seguinte ir a correr ver as audiências e ver se ganhamos mais um ponto ou menos um ponto. Essa luta cansa-me imenso. Não lhe tiro a importância, porque verdadeiramente as coisas precisam de público, trabalhar para o boneco também não é bom. Hoje em dia temos o equilíbrio certo de espectadores fiéis que nos vão seguindo no nosso horário, o que dá imenso sentido à coisa.
Acha que, atualmente, a TV pensa mais nas audiências do que na qualidade dos programas?
A televisão é um negócio, portanto, tirando a RTP que não precisa de estar tão preocupada, os outros canais privados têm de pagar ordenados, ao banco, estúdios. Vivem numa luta diária, frenética e constante pelas audiências, porque é a publicidade depois que os mantém, sendo que a publicidade, ela própria, está a fugir para os outros meios, não é? É uma luta terrível, não tenho nenhuma inveja dos que estão à frente dessa luta, odiava ser diretor de Programas.