Quase 64% das mulheres portuguesas já foram vítimas de "body shaming", expressão que significa vergonha do corpo, numa tradução literal, mas uma vergonha imposta por terceiros, por via de insultos e agressões verbais. Os dados são de um estudo realizado pela marca Dove — que aponta que, desta amostra, 74% dos comentários negativos foram dirigidos por amigos ou conhecidos e 56% por familiares —, mas a tendência não afeta só anónimos: a cantora Camila Cabello é constantemente vítima de "body shaming", principalmente nas redes sociais. 

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A artista de 25 anos é alvo de comentários, críticas e insultos por não corresponder a um suposto padrão de uma beleza idealizada para o corpo de uma mulher: sem celulite, estrias, sem gordura e com determinadas medidas. 

Camila Cabello fez parte das Fifth Harmony, girlsband formada em 2012, tendo iniciado uma carreira a solo quatro anos depois. De uma figura esguia e magra, Camilla Cabello passou a exibir formas mais curvilíneas, transformação essa captada pelos tabloides em fotografias de papparazzi. As imagens têm gerado comentários negativos ao seu corpo, o tal "body shaming", que prolifera em caixas de comentários de sites e nas redes sociais. 

No início deste mês a jovem publicou uma fotografia no passeio de iate em Positano, Itália. Logo depois da publicação no Instagram, o “The Daily Mail” publicou 16 fotografias papparazzi, que mostram a artista em ângulos diferentes, e que acabam por desfavorecer o seu corpo, em comparação com o perfil de Instagram. 

 Os comentários negativos e insultos não tardaram em aparecer. O artigo sobre a artista foi inundado com comentários do corpo “nojento”, “obeso”, "flácido" e “cheio de celulite”.

Comentários no artigo do
Isso não é um "corpo normal", é um corpo gordo e toda a gente sabe isso. Parem com as mentiras
Comentários no artigo do
Curvas sensacionais? Agora tenho a certeza, que quem tem publicado estes artigos é cego. Pele laranja, gordura por todo o lado...

Esta não é a primeira vez que que aparecem comentários ao corpo de Camila Cabello. Em março, a cantora decidiu fazer uma publicação onde falou sobre o tema e reforçou a importância da aceitação do corpo e o valor da autoestima. 

“Sempre usei biquínis pequenos e nunca liguei a como estava, mas quando vi fotos minhas e comentários na internet sobre elas, fiquei muito chateada. E quando isso afetou a minha autoestima, lembrei-me que estava a deixar-me afetar pelo pensamento de uma cultura, e não por mim própria. Uma cultura que está habituada à imagem de um corpo de uma ‘mulher saudável’ que é completamente irreal para muitas mulheres”, explicou Camilla. 

Os artigos, os comentários, o ódio e as críticas ao corpo da artista são recorrentes. Assim que escrevemos “Camila Cabello” no Google, uma das primeiras sugestões que surge no motor de pesquisa é “Does Camila Cabello have cellulite?” (A Camila Cabello tem celulite?). 

A cantora não é a única celebridade a ser afetada por este tipo de comentários. Recentemente, o alvo foi Cuca Roseta. A fadista publicou uma fotografia num restaurante açoriano com umas calças e top justo, acabando por ser tornar um meme por todas as redes sociais.  

Depois de se aperceber de toda a confusão e piadas à volta do assunto fez uma nova publicação: “Olá, eu sou a Cuca Roseta e estas são as minhas nádegas, traseiro, glúteo, rabo ou o que lhe quiserem chamar”.

A fadista explicou aos seguidores a “felicidade e inocência” quando partilhou a tal fotografia no restaurante em Ponta Delgada. Ao longo da publicação, Cuca Roseta afirma sentir-se bem com o seu corpo e a sua vida e que tem o direito de vestir o que quiser. "Até quando tanto ódio, tanta maldade, tanto preconceito e julgamento?”

O impacto que o "body shaming" tem na vida das vítimas

Há muitas "Cucas Rosetas" e "Camilas Cabellos" no mundo e por toda a internet. A psicóloga clínica, coach e consultora do desenvolvimento humano, Júlia Machado, explica à MAGG que o "body shaming" sempre existiu, mas agravou-se com o crescimento das redes sociais, motivado pelo uso de filtros, com os quais as imagens acabam por ser alteradas e “não correspondem à realidade”. 

A psicóloga salienta que os "comentários insultuosos e humilhantes têm um impacto gigante e até podem provocar traumas, porque se a pessoa já tem baixa autoestima, tem vergonha do próprio corpo, esse tipo de comentários criam maiores problemas de autoestima e vergonha, e chegam a criar traumas a nível emocional ”.

Júlia Machado
DR

O "body shaming" cria vários problemas na vida das vítimas, seja em relacionamentos emocionais, sexuais e ainda no local de trabalho e ambiente escolar. 

Júlia Machado partilha que, normalmente, as pessoas não procuram ajuda psicológica apenas por causa deste fenómento. Mas “nas consultas de autoconhecimento começam a perceber que é necessário cuidar mais de si próprias” e que os comentários que já ouviram alteraram a postura e reações em situações posteriores. Mais: o inquérito da Dove refere que 67% das vítimas de "body shaming" escolhem usar roupa larga ou escura para esconderem o seu corpo.

O fenómeno e a tentativa de resolução do problema por esse meio não acontece apenas em adultos. A psicóloga explica que "as crianças começam a usar roupas mais largas, muitas vezes para esconder o corpo, porque têm vergonha, porque alguém disse que estavam muito magras ou gordas". "Começam a ter comportamentos visíveis até na escolha da roupa. Todos estes aspetos têm de ser muito bem estudados, vistos e avaliados", completa a especialista.

Caso o acompanhamento não seja feito passo a passo, de forma a minimizar o impacto do "body shaming", poderão surgir outros problemas. A psicóloga dá o exemplo das cirurgias estéticas para resolver questões de obesidade, a busca de resultados muito rápidos, o que acaba por provocar uma “descompensação”.

"Existem pessoas capazes de dizer e fazer tudo"

Catarina Corujo tem 34 anos e já sofreu uma depressão, tratou mal o corpo, e desde nova que é vítima de "body shaming". Agora, tem uma atitude diferente com a vida e promove a filosofia do "body positive" (algo como aceitação do corpo de uma forma positiva).

Os insultos diretos ao corpo de Catarina Corujo só começaram quando já era adulta e com a maior exposição no mundo do digital. “Durante a infância, houve sempre uma titularidade sobre o meu corpo pelas outras pessoas, principalmente no que toda ao seio familiar e dentro do grupo de amigos. Havia uma certa pressão para eu ter um determinado tipo de corpo e o 'body shaming', para mim, refletiu-se nos comentários constantes de que eu era grande, alta”, partilha a jovem à MAGG. 

A criadora de conteúdo explica que era uma rapariga muito alta para a idade e “entroncada” e que as comparações para ter um corpo igual ao da sua mãe eram constantes. Desta forma, sublinha que o "body shaming" é associado apenas “aos insultos diretos para ofender, mas muitas vezes começa com conselhos não solicitados e deixam a pessoa desconfortável e com vontade de se isolar”.

Passados tantos anos, a jovem tem consciência que as pessoas à sua volta nunca a quiseram ofender, mas cresceu com o “objetivo de ficar mais pequena, de emagrecer porque achava que assim era o certo”. Além disso, começou a associar que o sucesso, a ambição e o amor só chegariam à sua vida quando fosse mais magra. Por isso, em adolescente, a prioridade sempre foi emagrecer para se encaixar no padrão da sociedade.

Esta não é uma realidade exclusiva da ativista: o estudo da Dove revela que cerca 76% dos comentários são realizados por conhecidos, amigos ou família. Júlia Machado realça que muitos desses comentários não surgem com a intenção de maldade, nem para prejudicar, mas podem ser mais impactantes por surgirem de uma pessoa importante. 

Até conseguir aceitar o seu corpo e compreender tudo à sua volta o processo foi longo. Catarina Corujo foi uma das vítimas de "body shaming" que tentou várias maneiras para reverter o seu corpo, e assume que o meio mais grave a levou a um distúrbio alimentar.

“Durante muito tempo, vivi e ainda vivo com compulsão alimentar, mas durante muito tempo na minha adolescência vivi com os períodos constantes de restrição e compulsão para além de ter uma fase bulímica”, partilha a ativista. Estes comportamentos acabaram por resultar numa depressão, apenas diagnosticada aos 33 anos. Entre os muitos episódios, relata as “constantes dietas, a rejeição própria, os pensamentos suicidas, os murros na barriga e a relação completamente destrutiva com o espelho”.

Após as dietas agressivas, a busca constante de aprovação, a frustração e a angústia diária e a possibilidade de se submeter ao processo de bariátrica, Catarina diz que se sentiu “totalmente saturada” e decidiu conectar-se consigo. "Saber quem eu sou, o que eu quero da minha vida”. A partir desse momento, por volta dos 30 anos, a jovem entrou numa “espiral de autoconhecimento e desenvolvimento pessoal”.

Começou a pesquisar e a investigar no Google e descobriu os movimentos de libertação do corpo, "body positive" e percebeu que se identificava com os princípios. “Acho que existindo um movimento body neutrality eu sempre fui apoiante do movimento, simplesmente não sabia que ele existia”, conclui Catarina Corujo. Quando começou este percurso, não tinha noção da magnitude de transformação que ia viver.

Com o começo desta nova vida, Catarina Corujo começou o seu percurso no digital. Inicialmente como um diário para ter a oportunidade de expressar o que sentia, mas agora conta com uma comunidade de quase 40 mil seguidores. Com o aumento de exposição através do digital, de visibilidade pública, entrevistas e participação num concurso de beleza plus size, o "body shaming" aumentou. "Existem pessoas que são capazes de fazer tudo”, recordando que o pior comentário que já recebeu foi acusarem-na de fazer uma promoção à morte.

Ainda na sua plataforma, passou por duas fases. Primeiro, achava que “não podia apagar comentários, bloquear as pessoas, tinha de educar”. Agora, a posição é diferente, e compara a sua página de Instagram à sua casa, onde não entra toda a gente. Por isso, bloqueia e apaga mensagens e comentários de algumas pessoas. O principal objetivo é manter um sítio seguro para os seus seguidores.

Ainda assim, há situações que não pode impedir que os comentários e insultos negativos apareçam, como quando são publicados artigos ou entrevistas sobre si, e partilha que “há pessoas que efetivamente acham que uma pessoa gorda viver a sua vida está a incentivar as outras a serem assim”.

Assume que foi muito mais prejudicial para a sua saúde as dietas intensivas que fez, do que o peso que tem agora. Entre os muitos comentários negativos, recorda as acusações de ter uma família disfuncional e as variadas ofensas sobre problemas mentais, também.

Além das redes sociais, amigos, família, os comentários sobre o corpo não terminam aqui: no mundo profissional também prosperam preconceitos sobre os gordos, bem como na sociedade. Catarina Corujo recorda que há empresas que não aceitam os seus trabalhos por causa do seu aspeto. “É muito triste que ainda prevaleça este estigma de que as pessoas gordas são preguiçosas, que são desleixadas e que não vão dar frutos e contribuir para os objetivos de uma empresa”, expõe a influenciadora.

Sublinha que o preconceito também está muito presente no mundo da moda e reforça a necessidade de as empresas compreenderem que “as pessoas gordas também têm dinheiro para comprar roupa”. Acrescenta que a indústria têxtil contribui para o círculo vicioso do preconceito, devido à importância da roupa para uma maior integração social e profissional.

Sobre as próximas gerações, a jovem diz que vão existir sempre os dois lados da moeda, mas defende que a educação sobre todas as temáticas relacionadas com o corpo devem ser introduzidas desde muito cedo nas crianças.

Ainda assim, pela realidade à sua volta, acha que as crianças estão mais consciente, por terem maior acesso a informação e consequentemente contacto com uma maior diversidade de pessoas. Catarina Corujo reforça que a educação deve começar em casa, “na forma como os pais falam do seu corpo, e o à-vontade que têm em aceitar os tios e tias a comentarem o corpo dos filhos". "É preciso haver e criar limites e deixar de comentar o corpo alheio”, conclui.