O Mattë, restaurante de fine dining japonês em Santos, Lisboa, desenvolveu, há três meses, uma nova experiência premium para os clientes: a barra Kaiseki. No fundo, é como se fosse o menu de degustação do chef, no qual ele cozinha para si e decide aquilo que vai comer, mas ao balcão.

Esta modalidade de refeição privilegia o contacto personalizado e direto com, no máximo, seis clientes de cada vez. Tem o custo de 125€ e inclui 12 momentos únicos, já que a ementa é constantemente alterada, tendo por base a sazonalidade e a frescura dos ingredientes.

Mattë Lisboa. Neste japonês com a estrela Michelin no radar, tem de comer os nigiris à mão (e usar pouca soja)
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Estes jantares surpreendentes do início ao fim, preparados pelo chef Habner Gomes, acontecem apenas de terça-feira a quinta-feira e requerem reserva. Durante esta viagem pela cozinha japonesa, pode optar, por um custo extra, por uma harmonização de vinho, champanhe ou saké.

A MAGG foi convidada a sentar-se ao balcão do Mattë (a tal barra, uma zona mais intimista, restrita e especial do restaurante) e a colocar-se nas mãos do chef brasileiro, que aqui trabalha desde o começo do projeto, em 2020. Os restantes 45 lugares da sala funcionam à carta.

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A barra — ou o palco — onde tudo acontece. créditos: DR

Habner Gomes começou por nos descodificar alguns termos japoneses. "Há dois menus japoneses mais comuns: o omakase e o kaiseki. O primeiro implica confiar no chef, como um menu de degustação ocidental. O kaiseki é quase o mesmo, mas tem como base as quatro estações do ano e a sazonalidade do produto."

O kaiseki implica confiar a 100% no chef. E foi isso que fizemos — sem nos arrependermos minimamente. A dúzia de pratos converteu-se em mais alguns, que, além de atribuírem o protagonismo a diferentes espécies marítimas, também revelavam técnicas distintas.

Do sashimi ao niguiri, passando pelo tataki e até pela tempura, Habner Gomes mostrou-nos grande parte das competências que aprendeu ao longo dos seus 17 anos de carreira na culinária nipónica. É minucioso do início ao fim, desde a forma como limpa a faca aos cortes que faz, ao modo como emprata e ao carinho e respeito com que trata cada alimento.

"O menu, com uma mudança quase diária, é 100% japonês com influência de todas as cozinhas que lá chegaram, principalmente a portuguesa", disse à MAGG. "É uma ementa rica em simbologia e cores, com uma cozinha que envolve todos os sentidos. No inverno usamos tons mais escuros, no verão mais flores", continuou.

O que nos serviram na barra Kaiseki do Mattë
Antes do começo, pudemos ver o peixe já arranjado. créditos: MAGG

Esta experiência mais premium tem influência Nanban. "'Nanban' significa 'bárbaros do Sul', o nome que os japoneses deram aos portugueses quando lá chegaram", nos séculos XVI e XVII, elucidou-nos o cozinheiro, reforçando que os lusitanos contribuíram bastante para aquilo que é hoje em dia a gastronomia nipónica.

"Os japoneses não usavam açúcar, ovo raramente. Os portugueses levaram a tempura, os escabeches", exemplificou. 80% do peixe utilizado no Mattë é proveniente dos Açores e os restantes 20% do Algarve. Aqui, o desperdício resume-se a cerca de 2%. "Portugal tem dos melhores peixes do Mundo. Para mim, depois do Japão, é o melhor", crê.

Na barra, que é nada mais nada menos que o palco do chef Habner, estão expostos os peixes que iremos degustar, já arranjados. A bancada está sempre limpa e o autor do jantar vai explicando e contextualizando cada prato que serve, com estrelas como atum, bonito dos Açores, carapau, dourada de mar, lírio, ouriço dos Açores, cavala e pargo.

O nosso kaiseki começou com carapau em tataki com gengibre, cebolinho e ponzu, um arranque excelente, bem cítrico, que elevou a fasquia. "Inicio sempre com um prato que ligue Portugal ao Japão", justifica. "Gosto de usar peixe que pouca gente usa, peixes raros", prossegue, apontando para uma vitrina onde "estão mais de mil euros em peixe".

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Nesta vitrine estão mais de mil euros em peixe, segundo o chef. créditos: MAGG

Seguimos para uma enguia grelhada com sancho, que quase soube a carne, e que estava tostada tanto quanto bastava. A sopa miso, com barriga de atum e caranguejo real dos Açores, era muito generosa. Vinha quente e com sabor a peixe, diferente de todas as que já provamos até então.

O sashimi surgiu em quase todas as variedades, como atum fumado com maçarico, lírio com ovas de salmão e chu-toro, mostrando-nos o quão diferente cada peixe pode ser. Uns mais robustos, outros que se desfazem à mínima dentada, uns mais gordurosos e outros com um sabor mais discreto.

"Cada peixe tem um corte com expressão", defende Habner Gomes, que considera que "também é um trabalho artístico". E que artista. "O nosso cliente sabe o que é um bom peixe, conhece a gastronomia japonesa", informa-nos, defendendo que "todos os clientes merecem a mesma atenção e qualidade".

Com a boca a saber a mar, Habner Gomes colocaria à nossa frente um pudim. "Já estamos na sobremesa?", pensámos, preparando o nosso paladar para o típico caramelo. Mas era, na verdade, um  pudim salgado, cozido a vapor, com camarão fresco e cogumelo chinês pequenino. Leva caldo de peixe e algas e é um dos pratos com mais influência portuguesa.

Depois, um bonito grelhado com sésamo, soja, gengibre e cebolinho. "É um dos meus peixes preferidos devido ao sabor e à textura", contou-nos o chef. Viria, de seguida, um goraz no topo de um risotto de ouriço do mar, com uma pele crocante. Parecia que tínhamos engolido um pirulito, devido ao sabor intenso a maresia.

Estava prestes a começar a dinastia dos niguiris. Esperávamos peixe colocado em cima de arroz branco, mas o que testemunhámos foi bem diferente. No Mattë, o arroz é intenso e escuro, em tons acastanhados, devido ao vinagre utilizado. Envelhecido, é importado do Japão (como muitos outros produtos) e estagia 10 anos em barricas de saké.

O que nos serviram na barra Kaiseki do Mattë
É este o aspeto do arroz do Mattë. créditos: MAGG

"O arroz é 60% do sushi. Não dá para disfarçar. Demorei muitos anos a acertar o tempero e o ponto do arroz", conta-nos o chef, que veio morar para Portugal com 14 anos. "A preparação de um kaiseki leva um dia inteiro", adiantou, ainda. Não é difícil perceber a atenção ao detalhe que existe no Mattë.

"Um niguiri parece simples, mas tem horas de trabalho por detrás", sublinha o chef de 31 anos. Não só é uma preferência sua como um favorito dos clientes. Antes de chegarem à mesa, surge uma toalha humedecida para que possamos lavar as mãos. "É para agarrar com as mãos e comer como se fosse um taco", aconselha. E assim o fizemos.

Viriam niguiris de encharéu e shiso, de dourada do mar com limão (que merece destaque), de goraz, de barriga de lírio dos Açores e de barriga de atum (outro dos melhores). O tataki de totoro e camarão foi um dos nossos pratos favoritos da noite. Simplesmente maravilhoso.

Provaríamos, ainda, duas tempuras: uma de lírio com hortelã japonesa e ovas de salmão selvagem e outra de ostra do Sado com maionese de yuzu fresca. A tempura surge bastante fina e morna, pelo que o chef aconselha a comê-la logo, assim como os niguiris. "Com a tempura, tem de se ver o que lá está dentro. Senão, é panado", acha.

Para terminar o kaiseki, comemos outro pudim, desta vez doce, mas ainda não com caramelo e sim com gengibre japonês — uma receita que mistura a da mãe do chef de Minas Gerais com a de outro cozinheiro com quem aprendeu. O jantar foi emparelhado com dois vinhos brancos com notas frutadas, um deles vindo da Moldávia.

Há vários pormenores que fazem do kaiseki o momento especial e elevado, desde ver o chef a tapar o peixe com um papel húmido próprio para o efeito para não o deixar secar, à recusa em usar peixe de viveiro ou à preferência por sojas japonesas, envelhecidas até 30 anos.

Até a própria loiça é escolhida a dedo. Um dos pratos tem como objetivo representar "um jardim japonês" e outros vêm mesmo de lá. No Mattë, não usam quaisquer ambientadores, para não desvirtuar o aroma do peixe. Também por isso, e para uma experiência melhor, convém não carregar muito no seu perfume.

Habner Gomes acredita que "a simplicidade é o princípio máximo da sofisticação". Embora os seus pratos não sejam visualmente espampanantes, não precisam de o ser. A extravagância está maioritariamente nos sabores, que proporcionam uma experiência personalizada, cuidada e, se tivermos de a resumir, inesquecível.

"Uma estrela é o reconhecimento pelo meu trabalho. Eu desejo-a", declara o chef, que não irá descansar até atingir o roteiro Michelin. "Portugal ainda não é uma referência fora do Japão. Eu quero mudar isso", reforça. E, com base naquilo que vivemos, podemos dizer que está (muito) bem encaminhado.

Morada: Calçada Marquês de Abrantes 22, Lisboa
Telefone: 914 682 234
Horário: 12h30-23h (fecha à 00h30 às sextas-feiras e abre apenas para jantar ao sábado, até à 00h30; encerra ao domingo e segunda-feira)