Quando pensamos na palavra "radical", imaginamos desportistas intrépidos a subir rochedos, a surfar ondas gigantes ou então a viver meses a fio na Amazónia. Pode um chef ser radical e, ao mesmo tempo, liderar a cozinha de um hotel de cinco estrelas em Lisboa? Pode. E Bruno Rocha é-o.
Visitámos o Bairro Alto Hotel, situado na praça Luís de Camões, no coração do centro histórico de Lisboa, com o objetivo de conhecer a nova carta do BAHR, o restaurante da unidade hoteleira. A experiência (palavra desgastada, cujo uso se banalizou) podia ter sido apenas alimentar, mas foi mais do que isso.
Bruno Rocha tem uma filosofia, uma teimosia e uma visão. Na sua cozinha, aberta para a sala do BAHR, de onde podemos avistar a sua equipa a trabalhar em silêncio (é uma ilusão auditiva, devido à forma como o espaço foi remodelado), não há "clichés hoteleiros", como as pizzas, os hambúrgueres, as tostas de abacate ou o salmão fumado, mas há ingredientes que foram criados ou cultivados, senão ali ao lado, quase.
“Eu digo, por brincadeira que, para mim, os hotéis em Lisboa são todos iguais. Todos têm o roupão na casa de banho, os amenities... são todos iguais! (risos)", diz. "Há uma falta de originalidade, por vezes”, lamenta Bruno Rocha. No Bairro Alto Hotel desde 2017, o chef de raízes beirãs conseguiu uma vitória rara, fruto da sua persistência (e, acrescentamos, teimosia).
“Não temos um único buffet, fazemos tudo à carta, inclusive o pequeno-almoço. No início, não imagina a resistência que o próprio departamento de vendas e marketing dentro do hotel... quase me queriam bater (risos)!", conta. "Eu não tenho buffet, não quero ouvir falar dessa palavra. Tenho uma cozinha linda, que serve requeijão da serra de Montejunto, [queijo da] ilha 24 meses, queijo de Azeitão, presunto Pata Negra, ovos biológicos... compro o melhor que há para cozinhar e dar a estas pessoas. Querem um buffet com o quê? Com produtos que não são portugueses?”, atira.
Perguntamos, em jeito de brincadeira, o quão é que o patrão gosta de Bruno Rocha. “Eu e a Marta estamos alinhados”, afirma, de forma contundente. O Bairro Alto Hotel é da família Tavares da Silva, e Marta Tavares da Silva é administradora da unidade hoteleira.
“No ano passado tirámos o abacate dos menus. Chegar a uma reunião e dizer 'não há mais abacate neste hotel' ? Dizer isto à proprietária é um bocadinho... Primeiro, ela disse 'sabe quantas tostas de abacate servimos ao pequeno-almoço?'. E eu disse que não queria saber.'Vou só apresentar um estudo que trago aqui. Eu vivo nesta região, sei o que estão a fazer a esta região. A Marta quer compactuar com isto? Eu, enquanto cozinheiro, não quero compactuar com isto’”, relembra Bruno Rocha.
O chef salienta, contudo, que a vontade do cliente está em primeiro lugar. "Se um cliente me pede abacate, ok, eu arranjo. Mas não tenho. Salmão fumado? Não tenho. Quer um peixe de tanque, cheio de antibióticos? Não tenho”. Bruno Rocha é um defensor acérrimo da sazonalidade dos produtos que serve. “Às vezes, há clientes que me pedem papaia. Não tenho. Se quiserem, posso mandar comprar. E não tenho porquê? Porque não tenho papaias em Portugal. Quer banana da Madeira? Tenho. Quer ananás dos Açores? Tenho."
Bruno Rocha, cuja carreira começou com um estágio no Pine Cliffs Resort, no Algarve, e já o levou a paragens tão distantes como Macau e Brasil, assume esta posição como a sua "missão, enquanto cozinheiro".
"A onda tem que crescer. Tem que se mostrar o que o País tem de melhor e dá-lo às pessoas. Se a pessoa quer ir ao mexicano, quer pizzas, vá lá fora. Esse não é o nosso registo. Trabalhamos com pequenos produtores, temos vinhos biológicos, vinhos vegan, temos uma tendência nos vinhos de acordo com o que fazemos na cozinha, uma forma de estar como nós gostamos de estar socialmente. E gostamos de passar essa mensagem às pessoas."
O combate ao desperdício “avassalador”, produto dos tais buffets que Bruno Rocha rejeita, aliado ao apoio aos pequenos produtores nacionais, são as batalhas que quer travar. E que, a avaliar pela singularidade dos pratos que apresenta, do pequeno-almoço ao jantar, está a ganhar.
"Isto é uma luta grande com os empresários. Isto mexe sempre com a vertente financeira. Toda a gente quer o mais barato e custos cá em baixo e o lucro lá em cima. Isso é difícil. Entrando no campo do pessoal, é a mesma coisa. É preciso ter pessoas bem pagas, a trabalhar confortavelmente. Sabemos que isso não é geral nos empresários em Portugal. Olham para os números e pensam ‘corta isto’”, lamenta.
Um outono com sabor a mar (e o porco do Ti António)
O privilégio do local e do sazonal está no discurso de Bruno Rocha. Mas, como pudemos comprovar, não é só conversa bonita para jornalista ouvir. A mão do chef está em tudo o que comemos, sentimos e vemos, desde toda a estrutura física da cozinha, um trabalho de remodelação que começou em 2019, às fardas da sua equipa, desenhadas pelo próprio chef. A carta reflete “uma cozinha portuguesa, com muita influência japonesa, sobretudo em termos técnicos”, produto das viagens que fez pela Ásia e também da busca por produtos únicos e autênticos. Bruno Rocha foi buscar inspiração a receitas portuguesas antigas, dando-lhes um toque de contemporaneidade.
Alinhado com Bruno Rocha está David Rosa, sommelier do BAHR & Terrace, que nos explica que a filosofia da carta de vinhos assenta numa vertente de “sustentabilidade”, em “vinhos biológicos e biodinâmicos”.
“A ideia é apresentar novos estilos de vinhos e fazer sempre essa sinergia com o chef Bruno Rocha, de maneira a que quem nos visita tenha a melhor experiência possível”, salienta o sommelier, que faz questão de acrescentar uma narrativa a cada vinho que traz para a mesa.
“Uma das minhas preocupações é ir buscar história. Eu compro vinho não só porque é bom mas o ponto diferencial que tento sempre por nas minhas cartas — e aqui principalmente — é a história. Quem fez, quantas gerações tem, porque é que surgiu? Porque é que esta pessoa se lembrou de ir para o mundo do vinho? Para eu poder passar isto a quem nos visita e para que a experiência seja completamente nova e esteja em constante movimento, desde que surge o primeiro snack até ao final da sobremesa."
Começámos pela tosta de percebes fumados (11€), acompanhada de Esculpido, um vinho branco, biológico e vegan. Os percebes, cuidadosamente retirados do seu casaco rígido, foram servidos numa tosta feita de pão de massa mãe, barrado com manteiga dos Açores.
Seguimos para um fricassé de cogumelos (17€), uma mistura de cogumelos de outono, salteados na perfeição, que repousavam sobre uma gema de ovo curada. Acompanhámos com Purista tinto, uma recém-nascida criação da viticultora Ana Cardoso Pinto.
Herdade do Cebolal, um vinho branco de 2016, acompanhou o pregado selvagem, caldo verde e chouriço (33€), uma combinação que nos confunde nos sabores mas que, quando casada, surpreende pela delicadeza e harmonia.
Um Pegos Claros Grande Escolha 2017 foi o vinho escolhido por David Rosa para acompanhar o mais extraordinário prato que Bruno Rocha escolheu para nós. Vindo diretamente dos terrenos do Ti António, criador de suínos da zona oeste, a presa de porco grelhada, beterrabas e fermento (28,50€) transportou-nos a outros tempos que já não vão voltar. Ao tempo da matança do porco, ao tempo em que se comia carne criada com carinho, com tempo, com atenção. A um tempo em que só o esforço e a dedicação coletiva conseguiam por carne (esse luxo) na mesa. Foi a melhor carne de porco que já comemos, sim, acompanhada dos vegetais, grelhados na perfeição.
Aqui entre nós que ninguém nos lê, não somos fãs de sobremesas. E é por isso mesmo que andamos sempre a experimentar, a experimentar, em busca do doce perfeito. E encontrámos. Não um, mais dois. A tatin de marmelos e creme bávaro de pimenta sansho (8€), uma homenagem a este fruto tão português (e tão pouco consumido, exceto na forma de marmelada).
E também as farófias, creme de folha de limoeiro e pele de leite (8€), uma nuvem, uma almofada de céu, onde do açúcar, quase inexistente, ninguém sente falta porque a delicadeza enche o palato. As sobremesas foram acompanhadas por uma dupla de vinhos fortificados: Villa Oeiras Superior 15 anos e Horácio Simões Moscatel Roxo.
Um café cinco estrelas com vista para o Tejo
Partimos para o pequeno-almoço com as expectativas muito altas, depois da conversa com o chef Bruno Rocha e do jantar. Apesar da manhã chuvosa, optámos por ficar no acolhedor terraço, prontos para provar as maravilhas outonais deste serviço à carta (que pode ser experienciado mesmo por quem não está hospedado no hotel, quer em horário de pequeno-almoço, quer de brunch, aos sábados, domingos e feriados, das 13 às 16 horas).
Primeira surpresa, o café, servido em prensa francesa, acabadinho de fazer. Num mundo ideal, o café num hotel de cinco estrelas será servido assim. Numa dose individual, especial, única.
Das opções de viennoiserie e seleção de pão, escolhemos a torrada em pão de espelta massa mãe (acompanhada por manteiga e compotas caseiras) e o bolo de abóbora assada, gengibre e flor de sal. Húmido, guloso, com o sabor da abóbora muito presente, éramos capazes de devorar mais duas ou três fatias deste bolo.
O prato de fruta fresca sazonal trazia diospiro, melão, mirtilo, laranja e morango (uma ligeira desilusão com este último, que bem podia ter sido substituído por romã, por exemplo). Para completar aquela que (pelo menos para nós) continua a ser a refeição mais importante do dia, devorámos uma omelete gratinada com bacon, queijo e cebola caramelizada, uma almofada perfeita de ovo, com um recheio decadente, ácido e apetitoso, de queijo derretido e bacon carnudo.
Uma noite para duas pessoas, num quarto Classic Chiado, custa a partir de 324€ (com pequeno-almoço à carta incluído). Este preço foi obtido através de uma simulação no site do hotel, para a noite de 17 para 18 de dezembro.
*Esta visita aconteceu a convite do Bairro Alto Hotel