Quando uma realizadora, mestre na arte de procurar a justiça, se junta com uma ativista magoada, sem medo de represálias, nasce "Phoenix Rising", o produto do trabalho de Amy Berg e Evan Rachel Wood, que nos leva questionar se estamos a assistir ao relato de uma relação amorosa ou a um filme de terror violento, sem qualquer aviso prévio.
Há feridas, sangue, tortura, fome, espancamentos, violação e chicotadas. E, ainda assim, os abusos psicológicos são capazes de nos deixar tão ou mais desconfortáveis do que as alegadas agressões físicas. Mais do que uma compilação de acusações, o primeiro episódio de "Phoenix Rising", que se estreou esta terça-feira, 15 de março, na HBO Max, dá-nos a conhecer a menina por detrás da mulher que caiu nos alegados esquemas de um músico, que em 2007 já se encontrava em modo de autodestruição: Marilyn Manson.
Evan Rachel Wood é uma entre mais de uma dezena de mulheres que já revelaram ter sido vítimas de violência sexual às mãos da estrela de rock em 2021. "Várias mulheres ouviram a minha história e sabiam exatamente de quem eu estava a falar. Percebi que não fui a única a quem isto aconteceu", afirma a atriz no trailer oficial do documentário, onde promete explicar (com recurso a provas físicas) as várias acusações de abusos sexuais feitas contra Marilyn Manson. Todas elas negadas pelo cantor, que garante não passarem de meras calúnias.
Durante anos e até 1 de fevereiro de 2021, Evan Rachel Wood recusou-se a proferir o verdadeiro nome do abusador, sob alegadas ameaças à própria vida. Agora, enfrenta a justiça americana depois de Manson ter avançado um processo em tribunal contra a atriz nas vésperas da estreia do documentário. O músico diz ser alvo de difamação, no entanto, as evidências falam por si.
A jovem fala em abusos físicos e psicológicos, o cantor "nega veementemente", mas o que é facto é que Manson é alvo de pelo menos quatro processos movidos pelas suas alegadas vítimas e até um ex-assistente do músico corrobora, de forma inédita, o testemunho de Evan Rachel Wood no novo documentário da HBO Max — cuja segunda parte se estreia já esta quinta-feira, 17.
O que começou com um beijo inocente acabou com Evan Rachel Wood a tentar tirar a própria vida
"Phoenix Rising" faz-nos sentir covardes. Minuto a minuto, a história piora, os alegados abusos sexuais, físicos e psicológicos são descritos de forma cada vez mais minuciosa e, às tantas, damos por nós a querer desligar e deixar o documentário a meio. Porquê? Porque não queremos assistir ao terror que nos é descrito, porque é mais fácil sair da plataforma de streaming do que ouvir cada detalhe do caso, contado com base no diário de uma rapariga de 17 anos. Com inocência nas entrelinhas.
Quando Evan Rachel Wood tinha 17 anos, Brian Warner, o homem por detrás do nome e da banda Marilyn Manson, tinha 37. Ela tinha namorado, ele era casado com a artista de burlesco Dita Von Teese — e, à partida, pouco ou nada tinham em comum. No entanto, bastou um encontro rápido numa festa para a atriz ser sugada para aquela que diz ter sido uma espiral de drogas e violência, que por pouco não terminou em suicídio.
O que começou com conversas inocentes em casa do músico (sempre regadas a absinto) rapidamente evoluiu para contornos físicos e o casal não tardou a assumir oficialmente uma relação amorosa, já depois de Evan Rachel Wood completar 18 anos e Manson avançar com o divórcio. Entre digressões, bebedeiras e consumo de drogas, a jovem recorda que sempre se sentiu confortável com a ideia de testar limites, até ao momento em que o músico terá ultrapassado os seus, em pleno set de gravações de um videoclipe.
No novo documentário da plataforma de streaming, Evan Rachel Wood acusa o músico de a ter violado durante uma cena do videoclipe de "Heart-Shaped Glasses", um êxito do cantor, lançado em 2007. "Tínhamos discutido uma cena de sexo simulada. Mas quando foram ligadas as câmaras, ele começou a penetrar-me a sério. Nunca concordei com isso", garante.
"Fui forçada a participar num ato sexual comercial sob falsos pretextos. Fui basicamente violada perante as câmaras", afirma a atriz, que frisa que este não terá sido um ato isolado e que foi sujeita a outros abusos sexuais por parte do cantor, durante o tempo em que ambos mantiveram uma relação amorosa.
E sim, há registos noticiosos que avançam declarações em que Evan Rachel Wood garante que não houve sexo e que até se sentiu desejada pelo namorado durante as gravações. Mas a atriz estava preparada para se justificar e não deixou qualquer ponta solta. Porque é que não disse logo a verdade assim que lhe foi dada uma oportunidade? 'Simples': por medo. Para quem conhece a história com base nos órgãos de comunicação social, pode parecer descabido. Para quem assiste ao documentário, faz todo o sentido.
De acordo com o documentário, Manson mais tarde pressionou Wood a dizer aos jornalistas que não houve sexo real durante a gravação do vídeo. No entanto, através de um comunicado enviado à France-Presse, divulgado pelo jornal "The Independent", o advogado de Manson, Howard King, negou a acusação.
"De todas as acusações falsas que Evan Rachel Wood fez sobre Brian Warner, o seu relato imaginário da gravação do videoclipe 'Heart-Shaped Glasses', há 15 anos, é a mais descarada e fácil de refutar, porque havia várias testemunhas."
Fala-se em relatos imaginários, mas há cicatrizes comuns a todas as mulheres que dizem ter sido vítimas de Manson
Marcas de agressões e um "M" gravado junto à vagina marca o padrão de algumas das mulheres com quem Manson já se envolveu sexualmente. Durante anos, todas se calaram. No dia seguinte à eleição de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos, decidiram agir: sem, com isso, prever o que estavam prestes a ouvir. À data, os alegados crimes já teriam prescrito, disse a justiça. O processo de recuperação de uma vítima não deve ter prazo de validade, defendeu atriz.
Pela força das circunstâncias, diz, tornou-se ativista e criou a organização Phoenix Act Coalition com a artista Illma Gore. Decidiu partilhar o seu testemunho com o mundo, admite ter demorado a perceber que tinha sido usada e manipulada por um abusador, mas mete as coisas nestes termos: "foi como descobrir que namorei com um assassino em série", conta, de olhos postos na câmara de Amy Berg.
O primeiro episódio está à prova de bala. Sempre que nos surgem questões pouco empáticas como "porque é que os pais não fizeram nada" "mas ninguém pôs um travão" ou "como assim não confrontaram o artista", somos rapidamente confrontados com a resposta, que nos deixa envergonhados e mostra como é fácil fazer julgamentos alheios. Os pais aparecem no documentário, o irmão dá a cara na produção: sem medos.
As provas estão em cima da mesa. Mais de uma dezena de vítimas contou a sua história, mas Manson continua em liberdade. A questão que se coloca é: porquê?
O conteúdo assusta, mas a concretização fascina
Bem sabemos que não nos podemos esquecer que se trata de uma peça artística e de que, por isso, é meticulosamente construída de forma a provocar reações no espectador. Mas toda a produção mostra-se assustadoramente fiel ao relato da vítima.
No primeiro encontro do casal, Manson convidou Evan Rachel Wood para o ajudar a escrever um guião sobre o conto "Alice no País das Maravilhas". Uma história que já a fascinava e o músico sabia. Foi o isco perfeito, diz. Agora, no documentário, fotografias e páginas do diário da atriz são intercaladas com ilustrações da história infantil.
Evan Rachel Wood surge como Alice, doce e indefesa, e Manson como uma espécie de monstro em transformação. E se olhar para os dois desenhos já nos deixa desconfortáveis, ouvir a história eleva tudo a um outro nível.
O primeiro episódio "Don't Fall" chegou à HBO Max a 15 de março e a segunda parte, "Stand Up", vai para o ar já esta quinta-feira, 17 de março.
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