Durante um mês e duas semanas, a rotina de César Mourão implicava estar sentado por três horas seguidas enquanto a equipa de caracterização o transformava na idosa de "Esperança", a nova série da OPTO SIC. O processo traduzia-se num quilo de caracterização, dividido por maquilhagem e próteses feitas de silicone, que davam ao ator o aspeto rugoso e envelhecido da personagem a que se tinha proposto dar corpo.
No final de um dia intenso de gravações, havia pelo menos mais uma hora pela frente, durante a qual se retirava a maquilhagem e as próteses usadas iam para o lixo. No dia seguinte, o processo repetia-se. Não é de estranhar, portanto, que o ator considere este o projeto mais duro em que já esteve envolvido e que, ao final de cada dia de gravações, o deixavam com a sensação de ter levado "um tareão". Em entrevista à MAGG, revela que, na fase final do projeto, lhe "parecia impensável ouvir falar numa segunda temporada, porque estava muito cansado".
No entanto, e depois da reação do público, a forma de pensar alterou-se. Ainda assim, garante que ainda não foi discutida com a SIC a possibilidade de "Esperança" — cujo terceiro episódio se estreia este sábado, 26 de dezembro, na OPTO SIC — regressar para uma nova temporada.
Estreada na SIC na noite de sábado, 19 de dezembro, "Esperança" acompanha a vida de uma idosa de 80 anos que resiste aos planos de quem, a todo o custo, lhe quer tirar a casa arrendada no coração de Lisboa. Debaixo da pele enrugada desta octogenária está o humorista César Mourão, que criou a personagem, juntamente com o argumentista Frederico Pombares ("Último a Sair"), para o teatro em 2016.
A adaptação para a televisão ficou a cargo de Pombares, Pedro Goulão ("Aqui Tão Longe") e Pedro Varela ("Os Filhos do Rock") — que assina o argumento e também realiza.
A estreia na SIC generalista foi o suficiente para bater a TVI que, nessa noite, apostou num estranho a atabalhoado "Noite de Cristina".
O ator diz que essa vitória se deveu à "qualidade da série" que, apesar de não ter um "humor fora da caixa", é "completamente transversal" e "transmite muita ternura" — elemento que, regra geral, tem estado fora da televisão portuguesa.
Do teatro para a televisão, a figura de Esperança ganhou nuances, grandeza e todo um contexto que antes não tinha. Sabia, juntamente com Pedro Varela [realizador e argumentista] exatamente para que caminho queriam levar a personagem?
Sim, sem dúvida. Obviamente que, no teatro, a personagem foi tratada de outra forma e isso não tem só que ver com a qualidade do texto ou da encenação, mas também a disponibilidade e o tempo com que é feita. De repente, foi-nos pedido para fazer uma coisa no Teatro da Trindade [onde a peça se estreou] em cima da hora... e, por isso, a abordagem acaba por ser sempre muito diferente. A isso tudo, junta-se também o facto de o teatro ser, naturalmente, muito diferente da televisão, porque aí temos uma câmara apontada para nós, em grande plano, que faz com que todos os pormenores contem e sejam aumentados.
Exigia outro cuidado?
Sim. Por isso soubemos de antemão para onde queríamos levar esta personagem, mas também o rigor com que isso teria de acontecer. Sabíamos, acima de tudo, que não podia ser uma comédia só por ser comédia. Tinha de haver um arco dramático e creio que, olhando para o produto final, isso foi conseguido.
Ver a Esperança é recordar-me da minha avó ou da senhora idosa que, diariamente, sai de casa para tomar o seu café na pastelaria do bairro. É seguro dizer que sem essa familiaridade, que permite um sentimento de identificação por parte do espectador, não haveria série?
É difícil porque quase tudo, ou até mesmo tudo, o que vemos em televisão permite essa identificação seja com o que for. Ou identificamos alguém, até. Nesse sentido, talvez não concorde e arrisco dizer que haveria sempre série, enquanto produto, porque haveria alguém a identificar-se com aquela história. Atenção, é evidente que a maior parte das pessoas se identifique — ou identifique alguém que conheça — na figura da Esperança, mas também haverá quem se identifique com o filho, com a nora ou com o neto. Claro que é uma vantagem para nós que a maioria das pessoas reconheça na Esperança uma ama, uma cuidadora, uma mãe ou uma avó, mas não foi esse o objetivo quando a criámos. Quando fiz esta personagem, baseei-me numa série de pessoas que conheço, que fui vendo ou com as quais fui lidando ao longo da vida. É normal que haja esse processo de fácil identificação.
Dessas pessoas de que fala, há trejeitos ou maneirismos específicos que tenha replicado para representar a personagem?
Confesso que não usei traços específicos. A personagem tem, de facto, muito das minhas duas avós no que toca a expressões e coisinhas pequeninas. Mas são pormenores que eu próprio só consegui identificar depois de ter visto a série, porque enquanto gravava não pensava muito nisso. Não havia um raciocínio de usar uma frase que a minha avó dizia muito ou um gesto habitual dela. Pelo contrário, aquilo que a personagem tem, e depois acabou por ter, saiu-me de forma muito natural. O resto foi sem querer. E vi o primeiro episódio com alguma surpresa porque dei por mim a fazer essas coisas que reconheço às minhas avós e que, durante as gravações, não dei por fazer.
Foi um exercício do subconsciente?
Há ali muito do subconsciente, sim. A partir do momento em que a compreensão da personagem, e a própria personagem já está em nós, é muito inconsciente tudo aquilo que acaba por sair em cena. Quando estive a gravar, não pensava no César a pensar de que forma é que a Esperança reagiria naquela situação.
Pensa, de forma imediata, na Esperança a reagir.
E a Esperança reage naturalmente.
No teatro, a personagem é uma mulher de classe média-baixa a viver num lar de terceira idade enquanto, na televisão, é ativa e autónoma. Essa alteração foi essencial para transportar a série a outros públicos?
Acaba por ajudar, mas também não foi uma decisão muito consciente, na medida em que talvez não tenha sido pensada ou planeada dessa forma. Por um lado, quisemos dar uma transversalidade à personagem e identificá-la apenas com base num estrato social.
A Esperança, enquanto pessoa, consegue chegar a todos as pessoas e essa era a grande preocupação. A do teatro talvez não fosse assim tão de classe média-baixa, mas no teatro só há uma forma de se fazer um cenário e não há essa amplitude da personagem que a televisão, ou o cinema, permitem. Mas houve uma grande preocupação em sermos transversais, sem dúvida.
A maquilhagem, as próteses e o risco de a pele ceder
Enquanto promovia a série, disse que este era o projeto mais duro em que se tinha envolvido. Muito devido ao processo de caracterização?
Tem só que ver com isso, até. Inicialmente, não tínhamos bem a noção de como iríamos fazer uma personagem em televisão que se parecesse, realmente, a uma senhora. Sabíamos que só com maquilhagem era impossível. Foi nessa altura que percebemos que teria de ser com este modelo de caracterização que é o mais desenvolvido no mundo e que foi usado, por exemplo, por Gary Oldman. Na altura de pesquisar por pessoas que estivessem perto de nós e com capacidade para aceitar este desafio, chegámos ao argentino Fito Dellibarda, que vive em Madrid há vários anos, e que tinha feito um trabalho incrível em transformar Javier Bardem em Pablo Escobar.
Decidimos convidá-lo para ver no que é que dava. Qual o nosso espanto quando ele disse que sim, até porque em Espanha, a situação sanitária estava muito mais grave do que em Portugal, mas também porque havia a vontade de ele vir trabalhar para cá. Uma vez aceite, rapidamente tratou de adaptar o orçamento dele à nossa realidade e assim se juntou o útil ao agradável.
Além da maquilhagem, usou próteses?
Sim, de silicone. E diariamente eram feitas próteses novas porque aquelas que usava iam para o lixo ao final do dia. Desde o pescoço falso a tudo o que estava na cara... era um quilo de caracterização em cima por dia, que demorava três horas a fazer. É um método com silicone que, pelo menos em Portugal, nunca tinha sido usado desta forma.
No meio de tanta maquilhagem e próteses, a pele cede?
Cede e cedeu. Essa era a grande preocupação de se fazer um projeto destas dimensões porque há certas regras que nós, devido a questões orçamentais, não conseguimos cumprir e que têm que ver com os dias de descanso. Esses dias só existem quando os orçamentos...
Os permitem.
Isso. Com a realidade de que dispomos, era impossível fazermos a série em mais tempo do que aquele que tivemos. As pessoas teriam de estar envolvidas no projeto durante muito mais tempo e isso, naturalmente, aumentaria os custos. Isso traduziu-se em apenas um dia de descanso a cada cinco ou seis dias de gravações. Lá fora, há mais dias de descanso e mesmo as horas de gravação por dia são menores. Explicava-me o Fito [Dellibarda, o caracterizador] que o Javier Bardem, por exemplo, filmava durante cinco dias seguidos e depois descansava dois. Mas nesses cinco dias só filmava duas cenas cada e, portanto, a carga era muito diferente da que sentimos aqui. A dada altura, a pele cedeu um bocadinho, mas tive muitos cuidados extra através da aplicação de cremes ou de aconselhamento por dermatologistas. Foi o que me fez aguentar até ao fim.
"Esperança" foi gravada em quanto tempo?
Todo o processo durou um mês e duas semanas.
Relativamente diferente daquela que é a realidade internacional.
Sim. Diria que, idealmente, e para se fazer tudo com calma, precisaríamos de dois meses e meio.
Esse quilo a mais de caracterização facilitou a captação dos movimentos presos, lentos e arrastados de uma pessoa idosa, na medida em que lhe permitia assumir ainda mais a personagem, ou já lhe era natural?
Era natural. Não notei que aquilo que tinha na cara me ajudasse, de alguma forma, a representar melhor ou pior. Notava, sim, que quando tirava todo aquele peso extra me sentia mais leve.
Mas certamente que terá ajudado ainda mais a entrar na interioridade da personagem. Ou não?
Claro. Todos esses pormenores ajudam, mas não creio que tenha sido o que mais ajudou. Com ou sem caracterização, acredito que esse andar lento e essa representação que se vê agora na série acabaria por acontecer de uma forma ou de outra.
Uma série que transmite ternura
O facto de o elenco, de grande qualidade, ser desconhecido ao grande público permite que comecemos a série sem ideias pré-concebidas. E mesmo o César a que estamos habituado, surge transfigurado. Isso tem um maior impacto na criação?
Em termos de criação, talvez não. Mas foi um grande desafio para nós porque tínhamos dúvidas sobre se um elenco completamente desconhecido do público seria capaz de causar impacto e fazer as pessoas verem a série. Mas como são todos excelentes atores, que escolhi a dedo com o Pedro Varela [realizador e argumentista], essa ideia rapidamente se desfez na nossa cabeça.
É a velha ideia de fazer valer o conteúdo por si só e não tanto pelo elenco ou pelas estrelas associadas ao projeto.
Exatamente. Quisemos valer pelo conteúdo e esta série é única e exclusivamente uma preocupação com o conteúdo, com o rigor, com o traço dramático e com a verdade. Quanto ao resto, foi ter confiança de que, cada vez mais, o público quer coisas boas.
À partida, temos a sensação de que o público português não percebe ou não se interessa por isso quando, na realidade, não é bem assim. Embora tenha a noção, e a certeza, de que o humor que se vê em "Esperança" não é um humor fora da caixa, porque é completamente transversal e acessível, foi a qualidade que fez com que as pessoas olhassem também para isto de outra forma e que nos permitisse, inclusive, bater a concorrência contra programas que normalmente são líderes de audiências.
Por ter surgido fisicamente tão diferente daquilo a que estamos habituados, quais foram as reações dos seus filhos ao vê-lo enquanto Esperança?
A minha filha adorou e, assim que viu, ligou-me a dizer: "Pai, estás a fazer um excelente trabalho." Achei piada à frase dela [risos], porque ela só tem 11 anos. Adorou a série e essa foi uma das grandes surpresas que tive: receber mensagens de muita gente a dizer que as suas crianças de oito ou dez anos, em vez de estarem agarradas à PlayStation, por exemplo, ficaram coladas ao ecrã. Talvez por ser uma série muito terna e há muito tempo que não se vê, em televisão, produtos ternos. Esta série transmite muita ternura e uma ideia de família. Só isso é uma grande vitória.
Especialmente por estrear-se agora, em que estamos todos necessitados de afeto?
Terá influência, certamente. Estamos mais predispostos a querer coisas ternas e que nos deem algum calor. Beneficiámos, obviamente, destes tempos, mas quando a fizemos já sabíamos disso e soubemos aproveitar porque podíamos ter feito outra coisa qualquer e não o fizemos. Escrevemos também para beneficiar deste contexto.
A pergunta é ingrata, até porque a série ainda só tem três episódios estreados. Mas há a possibilidade de uma segunda temporada?
Não pensámos nisso. Mais para o final das gravações dizia que era impossível ouvir falar numa segunda temporada, porque estava muito cansado e ainda estou. Fazer esta série foi um tareão, mas ver a reação do público e toda esta onda de amor que nos encharcou faz-nos pensar de outra maneira. Ainda não falámos disso com a estação e ainda não há uma segunda temporada pensada, mas quem sabe. Talvez. Neste momento, não faço ideia.