A lenta batida do coração contrasta com a figura explosiva e provocadora a que nos fomos habituando a ver na televisão. Mas é o compasso lento, ainda que consistentemente ritmado, do coração a bombear o sangue para o resto do corpo que dá, a Ljubomir Stanisic, a racionalidade e a frieza necessárias quando a vida vira madrasta e promete estragos. Ainda que, por fora, ameace explodir, internamente mantém a calma e a serenidade, mesmo que doa. E a dor não é um conceito meramente abstrato, já que a viveu em vários momentos do seu percurso. Inicialmente, fugindo da guerra na antiga Jugoslávia e integrando-se em Portugal e, mais tarde, obrigado a assumir derrota declarando a falência do seu primeiro restaurante.

A história de Ljubomir Stanisic vai ser contada na nova série documental "Coração Na Boca", da OPTO SIC, com estreia marcada para a próxima terça-feira, 26 de janeiro. E já que a dor lhe pautou a vida, o natural é que também ela faça parte do documentário, promessa de Ljubomir.  "Queriam conhecer esta história, não queriam? Então apertem o cinto e metam o capacete, porque isto vai doer", começa por dizer no primeiro episódio ao qual a MAGG já teve acesso.

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E porque promessa feita é, para Ljubomir, promessa cumprida, o primeiro episódio do documentário começa por traçar a origem daquele que viria a ser um dos chef de renome do País. Recém chegado a Portugal, conta que começou por "bater à porta de tudo o que era restaurante" para que lhe dessem trabalho.

A persistência valeu-lhe um primeiro emprego num restaurante localizado nas Janelas Verdes, em Lisboa, do qual acabou despedido. "Tratei mal o chef de cozinha que discutia comigo por causa de uma picanha grelhada. Houve uma discussão gigantesca na cozinha e perdi esse emprego", recorda.

Desse primeiro emprego, saltou para as obras, trabalho com o qual não se identificou, até ir para a um novo restaurante junto às Docas de Lisboa. "Não me deixaram trabalhar na cozinha porque, primeiro, tinha de aprender um bocadinho de português. Não sabia dizer nada, nem asneiras e [atualmente] digo tantas."

Os confrontos na cozinha e o drama da falência do primeiro 100 Maneiras

Foi nesse trabalho que acabou por criar amizade com um grupo de trabalhadores do restaurante, todos eles fumadores. "Lembro-me de que, no inverno, com toda a Lisboa a chover, passámos a fumar na copa sabendo que era proibido. Ensinaram-me, caso entrasse o gerente, a pedir desculpa. Houve um dia em que estavam sete pessoas a fumar e ele entra aos gritos. Eu, que estava sentado em cima de uma das bancadas, saltei imediatamente e disse-lhe: 'Se me deixar continuar a chuchar, nada se vai passar", recorda.

créditos: OPTO SIC

"Os sete que estavam ali começaram a rir-se, mas fui despedido na hora." Mas o chef nunca deixou que isso o impedisse de perseguir aquele que diz ter sido o seu sonho de sempre, cozinhar. É desse sonho, aliás, que nasce o primeiro 100 Maneiras, em Cascais, numa parceria entre Ljubomir Stanisic e José Avillez que durou apenas oito meses. Depois de Avillez seguir o seu caminho, Stanisic ficou sozinho à frente do restaurante.

"Observava as pessoas quando iam à pastelaria e pediam um pastel de nata acompanhado de um café. Chegava ao restaurante e desconstruía aquela porra toda, apresentando um café sólido e um pastel de nata líquido. O 100 Maneiras de Cascais foi uma catapulta na medida em que usava tudo como desculpa para cozinhar e cozinhava. Depois foi tudo à falência, em queda livre. Em poucos meses, foi tudo ao ar. Fodi-me todo", diz.

No primeiro episódio, de cerca de 24 minutos, o relato de Ljubomir Stanisic vai sendo complementado com declarações do cozinheiro e amigo Hugo Nascimento, do crítico gastronómico Edgardo Pacheco e de imagens da guerra na antiga Jugoslávia — que promete ser um dos momentos mais fortes do documentário, já que Ljubomir regressa ao país de origem para gravar.

O regresso "difícil" e "emotivo" à Bósnia

É esse momento, aliás, que identifica à MAGG como tendo sido o mais difícil e emotivo de gravar. "Relutância [em gravar] não tive em nenhuma parte. Mas a mais difícil foi o regresso à Bósnia. Foi muito emotivo, porque é um sítio onde vivi alguns dos melhores e dos piores momentos da minha vida, onde estão as minhas raízes. Hoje, sinto-me totalmente em paz com a minha história, tenho as pazes feitas com o meu passado e este documentário teve culpa nisso", explica Stanisic.

Pelo meio da produção, há imagens de Stanisic no seu atual restaurante, o 100 Maneiras do Bairro Alto, e de quando foi o consultor gastronómico do Six Senses Douro Valley. A ideia é traçar o percurso do chef através dos seus testemunhos, mas também daqueles que lidaram e trabalharam com ele quando o reconhecimento mediático ainda estava longe.

“Coração Na Boca”. O documentário sobre a vida de Ljubomir Stanisic que promete “doer”
créditos: OPTO SIC

Quando lhe perguntamos se, devido ao negócio, à presença em programas de televisão e à recém-conquista da estrela Michelin, sente a notoriedade característica de uma estrela de rock, é assertivo e defende não achar ter "trabalhado melhor do que os outros".

"Não me sinto uma estrela de rock nem acho que tenha trabalhado melhor do que os outros. Nenhum homem é uma ilha e trabalho muito, mas também tenho uma grande equipa à minha volta que permite que todos os projetos em que estou envolvido corram da melhor forma. Basta um segundo para passarmos de bestiais a bestas", garantido que não é a notoriedade que o deslumbra.

O reconhecimento mediático, no entanto, chegou e muito à boleia da sua presença na televisão e, em especial, com a condução do programa "Pesadelo na Cozinha", da TVI. Em setembro de 2018, altura em a segunda temporada do formato tinha acabado de arrancar, Ljubomir explicou à MAGG que a televisão não era o seu trabalho. Desde então, saiu da TVI para a SIC, estação na qual apresentará um formato semelhante ao do "Hell's Kitchen", preparou este documentário e estreou-se como ator na série "O Clube", também da OPTO SIC.

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À pergunta, "quando é que, afinal, a televisão passa a ser o seu trabalho?", Stanisic mantém o discurso e recusa a ideia de que "tenha de caber sempre na mesma caixinha".

"A minha profissão é cozinheiro. Não sou apresentador, não sou ator. Isto não significa que tenha de caber sempre na mesma caixinha ou vestir sempre o mesmo rótulo. Sou um eterno curioso, na medida em que gosto de me envolver em dezenas de projetos diferentes: faço vinhos, esculturas, pesco e cuido da minha horta", enumera.

E continua: "O convite para fazer uma pequena participação na série 'O Clube' foi completamente inesperado e nunca pensei que um dia fosse fazer uma coisa destas, mas diverti-me muito. O 'Hell’s Kitchen' está a ser uma experiência incrível, estou a trabalhar novamente com o Manuel Amaro da Costa, que já me conhece e sabe perfeitamente como fazer tudo funcionar, e temos todas as condições e liberdade para fazer o programa como o queremos. Estou muito satisfeito com o que temos feito."
"Coração Na Boca", o documentário da OPTO SIC, tem estreia oficial para 26 de janeiro a partir de uma ideia original de Mónica Franco, jornalista e mulher de Stanisic, que produz e realiza.