"Estou a pensar em acabar com isto", pensa a narradora do filme (Jessie Buckley) sobre o namorado Jake (Jesse Plemons) durante uma viagem com rumo a casa dele para lhe conhecer os pais. É um passo importante na relação, mas que não é capaz de apagar a ideia de que "algo de estranhamente errado se passa com ele". Estas palavras nunca são expressas, mas sim pensadas num debate interno ao qual os espectadores têm acesso. No entanto, sabe-se mais tarde, o dilema é bem mais complexo do que se espera.

Assim é "Tudo Acaba Agora" ou "I'm Thinking of Ending Things", no título original, o novo filme sensação da Netflix realizado e escrito por Charlie Kaufman, que se inspirou no livro com o mesmo nome lançado em 2016.

A história parece simples, mas depressa nos deparamos com personagens que vão mudando de aparência a cada momento, uma narradora que ganha vários nomes, e profissões, à medida que a história avança e um protagonista cada vez mais sombrio e aterrador que parece viver numa ilusão doentia construída com base em acontecimentos e pessoas que nunca existiram — mas que ele gostava que fossem reais.

Se já viu o filme, é possível que tenha ficado relativamente confuso. Por isso, a MAGG juntou algumas perguntas e respostas para tentar esclarecer alguns dos momentos mais icónicos da história que ajudam não só a compreender o contexto social daquelas personagens, mas também o que isso significa para o desfecho de cada uma delas.

Se ainda não viu, recomendamos que feche este artigo e volte mais tarde. A partir deste momento, haverá spoilers importantes sobre o desenvolvimento de "Tudo Acaba Agora". Como, por exemplo, a resposta à pergunta: "Afinal, Jake e Lucy eram ou não a mesma pessoa?". A resposta é sim. E não. Mais ou menos. Vamos tentar explicar.

Mostramos-lhe algumas perguntas e respostas às possíveis dúvidas após ter visto "Tudo Acaba Agora".

Como assim, Jake consegue ouvir os pensamentos de Lucy?

Acontece logo no início do filme. Durante a viagem de carro de Jake e Lucy, esta explica em voice-over que está há vários dias a pensar em deixá-lo. Não consegue explicar porquê, mas sente que algo de estranhamente errado se passa com ele. Durante a viagem, e com os olhos postos na estrada, Lucy repete uma e outra vez, ainda que internamente, a frase: "I'm thinking of ending things". Uma tradução possível poderia ser algo como "estou a pensar em acabar com isto", mas reconhecemos que se perde pujança nestes exercícios de contornar barreiras linguísticas.

De repente, a pergunta de Jake: "O que é que disseste?". E a dúvida. Afinal, Jake é capaz de ouvir os pensamentos de Lucy? A resposta é mais simples. Na verdade, Lucy e Jake são a mesma pessoa. Oi, como disse? É essa a conclusão do livro lançado em 2016 e que serve de inspiração para o filme escrito e realizado por Charlie Kaufman.

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Lucy também não é Lucy e ao longo do filme é apresentada por outros nomes, como Lucy, Louisa, Lucia ou Ames. E consoante a interação que, esta mulher misteriosa tem sempre profissões diferentes. Só que, no fundo, trata-se de uma projeção de Jake baseada nos livros que leu, nos filmes que viu e nas pessoas com quem se relacionou ao longo de uma vida disfuncional.

"[Ela] serve como um simples mecanismo da história, mas queria que se pudesse separar disso. Não queria que fosse uma reviravolta [como é no livro] porque senti que isso não poderia funcionar em cinema. Quando se faz um filme, tudo o que é ambíguo rapidamente se torna concreto. Especialmente quando há pessoas a dar vida àquelas coisas ou àquelas personagens. O espectador consegue vê-las", explica Charlie Kaufman à revista "Indiewire".

E continua: "Precisava que ela tivesse alguma agência para que pudesse funcionar enquanto peça dramática. Por isso, gostei muito da ideia de, mesmo dentro de uma fantasia sua [Jake], ele não ser capaz de ficar com o que quer. Ele não só imagina aquilo que quer, como idealiza também as razões por que não vai funcionar, como ela se vai aborrecer dele e de como vai achar que ele não é interessante o suficiente."

Porque é que, durante o jantar, os pais de Jake estão sempre a mudar de aparência?

A primeira parte do filme acontece durante o jantar em que Lucy conhece os pais de Jake. O momento é constrangedor (porque os pais sofrem de vários distúrbios mentais) e, acima de tudo, confuso. Porque, à medida que aquela interação vai deixando personagens e espectadores desconfortáveis, os pais de Jake vão mudando de aparência física.

Primeiro surgem relativamente novos, para mais tarde aparecerem mais velhos e completamente debilitados — ela, presa a uma cama e ele a sofrer de um avançado estado de demência. Os pais são reais, mas estão mortos. E as constantes mudanças visuais não são mais do que projeções de Jake, que tenta reviver as várias fases da sua vida com os pais naquela casa.

Quem é o funcionário da escola?

A resposta pode parecer confusa, mas é simples: trata-se de Jake na versão adulta. Quando o filme arranca, a voz de Lucy (que serve como o narrador da história) assume estar a pensar em acabar com a relação com Jake. Mas uma vez que ela e ele são a mesma pessoa, no final percebe-se que é Jake quem está a idealizar o fim — não o de uma relação, que nunca existiu, mas o da sua vida.

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Esta ideia é reforçada com várias cenas em que o funcionário da escola é visto a olhar para fora da janela de sua casa, recitando um estranho mantra que Lucy, o narrador, ouve quando recebe chamadas estranhas no seu telemóvel. A explicação para querer pôr termo à vida pode ter a ver com uma depressão e uma sensação de não pertencer a nada naquele mundo. 

A ideia é apresentada através de um porco animado, já na reta final do filme, que é descoberto pelo funcionário da escola (que é uma versão de Jake, reforçamos). Este porco é devorado por várias larvas e parece ser metáfora para a forma como Jake se sente há vários anos, consumido por dentro por uma depressão incapacitante. Nesse sentido, esta figura animada poderá ter como objetivo levar a personagem a aceitar o seu desfecho trágico.

Qual o significado da dança entre Lucy e Jake na escola?

Lucy é a projeção do par romântico de Jake. Esta e Jake, em adulto, dançam nos corredores da sua escola secundária naquela que parece ser uma projeção da vida que o protagonista sempre quis ter, repleta de amor, romance e perspetivas de uma vida a dois.

Só que no preciso momento em que Jake está a reviver um momento que nunca existiu na sua vida, o funcionário da escola (que também é Jake, mas adulto e no tempo presente) surge por entre as sombras e mata a sua versão jovem e idealizada.

O funcionário da escola vive, com a consciência de que foi ele o responsável por destruir a vida idealizada que criou na sua mente. É isso que o leva ao desfecho final e que sem retorno.