"Spencer" arranca com um final anunciado. E ainda que leve quase duas horas a chegar até à conclusão dessa "tragédia real", como se descreve no ecrã, o que vemos é um casamento tumultuoso que cambaleia a longo custo no caminho até à rutura inevitável. Realizado por Pablo Larraín, o filme aborda apenas três dias da vida da princesa Diana (aqui interpretada por Kristen Stewart) e o momento em que decide pôr fim ao matrimónio com príncipe Carlos (Jack Farthing).
O filme chega esta quinta-feira, 4 de novembro, às salas de cinema portuguesas, e propõe um retrato intimista de uma mulher que, a certa altura da sua vida, decidiu "não querer ser rainha". É assim que o realizador descreve a princesa Diana, "uma mulher que, no decorrer desta narrativa, apercebe-se de que quer ser a mulher que era antes de conhecer Carlos", em entrevista à revista "Deadline".
A história de "Spencer", baseada em factos reais, passa-se em dezembro de 1991, altura em que Diana e Carlos celebram o Natal junto da rainha Isabel II na sua casa de campo em Sandringham, no Reino Unido.
O ambiente intimista e de festa em plena época natalícia contrasta com a frieza e a claustrofobia que pauta a união entre os dois. O casamento, marcado por mentiras, conflitos e relações extraconjugais, terminaria nesse Natal, mas só viria a ser oficializado cinco anos depois, em agosto de 1996.
Ainda que a realidade ultrapasse a ficção, o cinema dá-se à tragédia com relativa facilidade porque são essas as histórias que nos aproximam uns dos outros.Também se dá à ironia.
Afinal, o que pode Pablo Larraín dizer sobre o assunto que já não tenha sido explorado noutros formatos? E porquê ele, um realizador chileno, que, nas suas palavras, é "estranho" aos assuntos da família real britânica?
O retrato de uma princesa presa num "conto de fadas"
A resposta sai-lhe sem dificuldade. "Acho que não sou estranho à figura de Diana, que era um ícone mundial, uma mulher fantástica, misteriosa e presa aos mecanismos da História e da tradição", explica em entrevista ao jornal "The Independent".
Sobre esta história "de uma princesa que foi quebrada", o realizador teve como objetivo desvendar o mistério cabal que, ainda hoje, faz parte da imagem identitária de Diana.
"Ainda que tenha nascido para o privilégio, e eventualmente se tenha tornado na princesa Diana, ela era alguém que nos parecia muito vulgar. Alguém com quem nos podíamos identificar. Esse é um dos mistérios. Como é que alguém conseguiu gerar toda aquela quantidade de empatia?", diz.
Uma empatia que, fora de portas, nasce da ideia de "um conto de fadas tornado realidade", mas que, "assim que acaba, e a própria decide que não quer mais fazer parte daquela família, lhe vira a vida do avesso".
"O filme apresenta uma representação adequada daquela que terá sido a angústia interna de Diana. E era isso que me importava mostrar. Um distúrbio alimentar nunca é só um distúrbio alimentar. É a consequência de um problema de saúde mental, de uma crise interna pela qual ela está a passar. Era importante para mim que, já que íamos mostrar alguém que se está a magoar a si próprio, tentássemos perceber porquê. A controvérsia que possa existir [após a estreia do filme] é completamente irrelevante", refere na mesma entrevista.
Mas a controvérsia chegará. Nem que seja pelo facto de, no papel principal, estar uma atriz americana, Kristen Stewart, que se espera que venha a ser considerada para o Óscar de Melhor Atriz.
Sobre a sua participação no filme, Stewart descreve, nas várias entrevistas que foi concedendo, um nervosismo constante. Não só pela magnitude do filme, que talvez seja o mais importante em que participou até à data, mas porque está a dar corpo a uma figura intocável.
"Quando comecei a gravar, deixei de conseguir expressar-me. Fiquei completamente bloqueada de nervos", explicou em entrevista à BBC.
"Para que lhe fizesse justiça, tinha de a permitir ser impulsiva. Sempre que a via, numa entrevista ou numa fotografia, sempre a senti imprevisível, como se não pudesse prever o que ela ia fazer a seguir. É devido a essa personalidade que ela tem esta vulnerabilidade e esta emoção tão crua que não a deixa esconder o que quer que seja. Não havia forma de, enquanto atriz, imitar isso. Tinha de o sentir. E para que isso acontecesse, era importante que eu própria conseguisse relaxar", continua Stewart.
O que é transposto para o ecrã, diz a atriz, é esta ideia do que "terá sido viver as consequências da sua decisão de deixar a família real britânica".
"É uma interpretação poética de todas as coisas que são públicas e que hoje conhecemos", conclui.
O que diz a crítica internacional?
Na véspera da estreia de "Spencer" em Portugal, o filme é já um dos mais elogiados deste ano e espera-se que venha a ser considerado para vários prémios nos Óscares.
"Para o bem ou para o mal, se há coisa que 'Spencer' retrata de forma bastante poderosa é a sensação de se viver num mundo indiferente que não parece valorizar mulheres independentes ou pessoas, na verdade", escreve o "The Washington Post".
Mas há também quem acredite que o propósito de "Spencer", ao contrário daquilo que foi o desejo do seu realizador, passa apenas por mostrar uma Diana diferente — nem mais, nem menos verdadeira. Apenas diferente daquilo que temos visto no cinema ou na televisão.
"O ponto de 'Spencer' parece ser não o de revelar a pessoa verdadeira que era Diana, mas sim mostrá-la de forma diferente em termos cinematográficos. Apresentá-la de uma forma que ainda não tenhamos visto", diz o NPR.
Os elogios a Kristen Stewart, no entanto, são consensuais. "Ainda que o filme não faça o espectador sentir coisas, é uma abordagem arrojada, apaixonada e poética ao que tem vindo a ser padrão nos biopics [filmes biográficos]. Além disso, confirma que a Kristen Stewart é uma das atrizes mais talentosas a trabalhar atualmente", lê-se na crítica da revista "Empire".
Do elenco de "Spencer" fazem parte nomes como Jack Nielen (como príncipe William) e Freddie Spry (como príncipe Harry). Além disso, estão também confirmadas as participações de atores como Timothy Spall, Sean Harris, Sally Hawkins e Richard Sammel.
O argumento do filme é da autoria de Steven Knight, o mesmo que escreveu produções como "See" ou "Peaky Blinders".