Comer com as mãos. Se alguma vez ouviu falar de Baby Led Weaning (BLW), é provável que tenha sido assim que esta abordagem à alimentação complementar das crianças lhe foi apresentada. Mas o BLW é muito mais do que isso, e é exatamente para desmistificar e dar a conhecer este conceito que Marília Pereira escreveu "O Bebé Sabe Comer", um livro editado em julho, que se foca nesta filosofia de vida.

Mãe de duas meninas, Inês, com 7 anos, e Sara, 4, Marília Pereira, 41 anos, tem uma forte presença nas redes sociais, com a página "O Bebé Sabe", onde fala das várias abordagens da parentalidade. Para além do BLW, a enfermeira especialista em saúde materna e obstetrícia, consultora internacional de lactação e de babywearing, entre outras valências, Marília aborda nas suas plataformas digitais os diferentes conceitos neste mundo vasto da educação e cuidados aos bebés, sem extremos ou fundamentalismos, justamente como se apresentou nesta entrevista à MAGG.

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A propósito do lançamento de "O Bebé Sabe Comer", falámos com a autora sobre as principais diferenças entre a abordagem BLW e a alimentação complementar dita tradicional, os obstáculos da sociedade a este conceito e o bloqueio da comunidade médica, que continua a agarrar-se aos anos de prática no que diz respeito à introdução dos alimentos na rotina das crianças, sem que existam estudos que justifiquem esses modelos.

Mas houve tempo para muito mais: Marília Pereira aborda também a falta de paciência dos pais para oferecerem ferramentas aos filhos para que estes consigam comer sozinhos no futuro mas, mais importante ainda, que potenciem uma boa relação com a comida, evitando patologias como a obesidade infantil.

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A autora é mãe de duas meninas: Inês, 7 anos, e Sara, 4 créditos: Hugo Nogueira / MAGG

Entre paciência, maneira correta de oferecer comida aos bebés e preconceitos com aquilo que é diferente, descubra, nesta entrevista, mais sobre a abordagem do BLW, que "é muito mais que oferecer comida aos pedaços", diz Marília Pereira. "É um meio para atingir um fim (...) , que é uma criança que come sozinha, que está bem e que tem uma boa relação com a comida."

Em traços gerais, o que é o Baby Led Weaning (BLW)?
É uma abordagem à introdução da alimentação complementar, um bocadinho diferente da abordagem mais tradicional. Passamos das fases das papas, purés e sopas, em que a comida é dada ao bebé, para uma fase em que este é mais autónomo e participativo.

Para além das diferentes abordagens, o BLW também difere em relação à comida que é oferecida às crianças?
Sim. Na abordagem tradicional, normalmente, os pais fazem comida diferente para o bebé, específica, com determinadas combinações que o profissional de saúde dá, que também é diferente de acordo com cada médico. No Baby Led Weaning, para além de as crianças comerem a comida da família (com a devida exceção para o sal, o açúcar e o mel), não seguimos aquela ideia de introduzir diferentes alimentos de uma forma faseada — isto falando de uma criança com 6 meses ou mais.

Na realidade, as recomendações internacionais da Sociedade Europeia de Gastrenterologia, Hepatologia e Nutrição Pediátrica (ESPGHAN), que são independentes da abordagem que cada país ou cada família escolhe, dizem-nos já desde 2008 que, a partir dos 6 meses, não há qualquer prejuízo para o bebé quando varia os alimentos, nomeadamente os alimentos alergénicos. Eles especificam mesmo o ovo, o leite, a soja, até o leite da vaca, embora antes dos 12 meses só possa ser incluído em preparações. Aliás, nem é preciso isolar o BLW. Mesmo na introdução tradicional, as recomendações da ESPGHAN são as mesmas, independentemente da abordagem. Mas é verdade que em Portugal, embora não aconteça com todos os profissionais de saúde, ainda há alguma dificuldade em alterar as recomendações, as receitas, atualizando-as.

E o mais engraçado — e digo isso no livro — é que não há estudos que suportem as recomendações de muitos pediatras de inserir alimentos de forma faseada. Mas se falamos em BLW, as pessoas perguntam logo pelos estudos. E que estudos é que temos da abordagem tradicional? Também não temos. Não há nenhuma investigação que diga que temos de começar por estes legumes, mas não por outros, ou que temos de pôr meia banana, meia maçã e sei lá mais o quê.

Esta questão vem da prática dos pediatras, das opiniões. Tudo começou quando as licenças das mães começaram a ser mais curtas, e os bebés tinham de ser alimentados de alguma maneira. E se as crianças ainda não conseguiam fazer a alimentação da família, teve de se arranjar aqui a alternativa das sopas e purés. Mas, hoje em dia, temos mães desempregadas, a fazer licenças alargadas, a trabalhar a partir de casa, e continuam a ser incentivadas a começar a alimentação complementar aos 4 meses.

"Quando ouvimos falar em algo que não sabemos o que é, temos logo uma reação inicial de defesa"

Então não é necessário seguir uma linha de introdução dos alimentos, começar com sopas de legumes, depois a fruta, as papas?
De acordo com estas recomendações internacionais, não há maior risco de alergia se não fasearmos os alimentos, nem benefícios em estarmos a adiar a introdução dos mesmos. Aliás, estas mesmas recomendações vão mais longe, e questionam-se se, com o atraso da introdução, não podemos até estar a potenciar as alergias. No BLW, por exemplo, as sopas não são o início da alimentação complementar. Entram na rotina mais tarde, com pedaços, quando as crianças já conseguem segurar na colher.

O BLW é uma moda ou é apenas a designação desta abordagem que é recente?
O que acaba por causar mais estranheza e resistência é muito o nome. Quase como olhar para isto e pensar: “BLW? Isso é o quê?”. Nós, enquanto seres humanos, quando ouvimos falar em algo que não sabemos o que é, temos logo uma reação inicial de defesa, de desvalorizar, e nem tentamos saber o que é, o porquê de aquela família estar a tentar fazer isto. Mesmo com as creches ou com os avós, digo muito às famílias que acompanho para tentarem desconstruir o conceito e evitar chamar-lhe BLW. Isto porque só o nome pode causar resistência. Por isso, em vez de usar o nome, expliquem como é que estão a fazer as coisas, acaba por ser mais simples.

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Quais são as principais barreiras na implementação desta abordagem?
“Será que não se vai engasgar?”. Esta é uma das grandes dúvidas e barreiras dos profissionais de saúde e das próprias famílias, bem como a questão sobre se estará a comer o suficiente. O perigo de engasgamento é muito importante, mas é importante a partir do momento em que a criança nasce. Um bebé, uma criança, um adulto, um idoso, todos se podem engasgar, em qualquer fase da vida. E podem engasgar-se com qualquer tipo de consistência.

O engasgamento acontece num bebé que é amamentado, com líquidos, com purés, com bocados de comida. Agora, como é que eu vou evitar esta situação num bebé que se alimenta da comida da família? Há princípios básicos de segurança que devem ser seguidos. Para começar, os bebés têm de estar 100% no controlo — e para começar a alimentação, as crianças têm de ter coordenação mão-boca, conseguir sentar-se com apoio e segurar a cabeça. Não vou pôr comida na boca do bebé, por mais que eles não consigam pegar bem nos alimentos, como é mais do que normal numa criança de 6 meses. E sim, isto aumenta muito a tentação de os tentarmos ajudar, mas não o podemos fazer.

Outra medida de segurança é saber como vou oferecer os alimentos, em termos de formato e consistência. E temos de perceber que dar tudo muito pequenino não é boa ideia, dado que os bebés de 6 meses ainda não conseguem fazer a pinça, vão esmagar tudo na mesa e partir tudo em mil bocadinhos. E se eu lhe puser estes bocadinhos todos na boca, aumento o risco de engasgamento.

Então, qual é a forma ideal de oferecer a comida?
Tem de se adaptar o corte dos alimentos ao nível do desenvolvimento motor que o bebé tem. Por isso, aos 6 meses, devo cortar a comida — cozinhada, claro está —, no formato de palitos grossos, quase como o nosso dedo indicador. O importante é perceber que a comida das crianças deve ser cozinhada como se fosse para os adultos. Dou-lhe um exemplo: imagine que a família está a comer esparguete à bolonhesa e eu quero oferecer ao meu bebé. Não vou colocar sal — ponho depois no meu prato—, e vou substituir o espaguete, que é muito fininho, por outra massa, como espirais ou macarrão.

Mesmo sem as crianças terem dentes para morder?
Mesmo sem dentes. Não têm os dentes cá fora, mas têm gengivas já muito fortes. E as crianças aprendem a mastigar, mastigando. Não há que ter medo de eles porem muita coisa na boca, até porque os bebés têm mecanismos de defesa para não se engasgarem. Pode ser assustador, mas nós temos de confiar. Lá está, BLW é confiança, respeito e autonomia. E os pais não se vão embora, ficam a olhar para os bebés a comer e até podem dizer para deitarem fora parte da comida se sentir que têm muito na boca. Mas não entramos logo em pânico, já que os podemos assustar.

Outra barreira pode ser a ideia que vão comer pouco se não os ajudarmos.
Importa dizer que acaba por ser mais fácil desempenhar esta abordagem nas famílias em que o bebé é amamentado, dado que estes pais já estão habituados a não conseguir controlar o que o filho come — mas, mesmo assim, é difícil. Agora, nos pais que estão habituados a que o bebé faça não sei quantos mililitros de leite de X em X horas, de repente, há uma perda de controlo. Mas a verdade é que sermos pais quer dizer que não vamos conseguir controlar a vida toda dos nossos filhos.

E há outra questão: nos primeiros dias, semanas, até no primeiro mês do BLW, há muita curiosidade em brincar com os alimentos, manipular, provar. É provável que nesta fase os bebés não comam muito, mas podemos sempre dar o leite a seguir e não há problema nenhum — até porque o leite deve ser o principal alimento no primeiro ano de vida das crianças —, nem atrasa a introdução alimentar, ou lhes retira a curiosidade de experimentar.

Outra coisa importante é perceber que não se deve levar um bebé cheio de fome para a mesa connosco, a fazer o BLW. Chega a hora de almoço e o meu filho está com muita fome? Dou-lhe leite, para o saciar, e depois deixo-o explorar os alimentos que tenho no meu prato, e que dê para partilhar com o bebé.

E há dificuldades em implementar esta abordagem nas escolas ou junto de outros cuidadores, como os avós?
Em relação aos avós, é engraçado, porque muitos, quando percebem do que se trata esta abordagem, percebem que faziam isto com os filhos, numa era em que não existiam bimbys nem processadores de comida. Era tudo mais amassado e esmagado. Já falando das creches especificamente, uma das coisas que gosto muito de dizer é que as escolas são motores de autonomia dos nossos filhos. Por isso, vamos encará-los como uma equipa, que trata do nosso bebé como nós. Não podemos achar logo aí um obstáculo, e pensar que não podemos fazer BLW porque a escola não vai aceitar.

Sim, mas também é verdade que muitas escolas podem alegar não ter recursos para oferecer comida diferente ou estar a controlar uma criança que come sozinha.
Temos de levar a comida. Quanto à questão dos recursos para vigiar as crianças, são falsas justificações. Mas vamos por partes. É verdade que a ida dos bebés, seja para a escola ou para casa dos avós no fim da licença dos pais, pode impossibilitar a família de fazer BLW a 100 por cento. Se existirem realmente entraves, posso levar o leite para a escola, e fazer BLW em casa. Mas lá está, pode impossibilitar o BLW. E também pode ser necessário, nessa fase, fazer uma alimentação dita tradicional na escola, para além do leite, e quando  a criança está com os pais e nos fins de semana, optar então pelo BLW. Mas é preciso ir falando com a escola, partilhando vídeos ou informação sobre a abordagem, e ir aqui devagarinho gerando curiosidade. Acho que mais do que irmos com uma postura de “quero fazer” e “ tem de acontecer”, é gerar curiosidade.

marilia pereira
"O Bebé Sabe Comer" é editado pelas Edições Chá das Cinco e tem um preço recomendado de 16,60€ créditos: Hugo Nogueira / MAGG

Em relação à questão da vigilância, e da possibilidade de alegarem falta de recursos, lanço aqui a questão: o que é que dá mais trabalho? É preparar a sopa do primeiro bebé e alimentá-lo, fazer o mesmo com dois, três, quatro bebés, ou ter três ou quatro crianças à minha volta, a comerem, e eu, idealmente, a olhar para eles e fazer a minha refeição ao mesmo tempo? Acho que, num mundo ideal, as escolas funcionariam assim.

"A  ingestão de alimentos é o bónus"

A alimentação complementar é vista como uma fase muito importante, de mudança, em que o bebé começa a largar o leite e a alimentar-se com comida dita “normal”. Na abordagem do BLW, este momento é encarado mais como uma exploração e como um complemento, não lhe dando tanta importância?
Eu costumo dizer que a ingestão de alimentos é o bónus. A alimentação complementar, como próprio nome indica, é o complemento, não o principal. Temos de mudar a nossa maneira de pensar. Se as refeições são vistas, pelos adultos, como um momento para socializar, vamos manter isso, e vamos deixar o bebé explorar a comida, ao seu ritmo, assegurando as necessidades nutricionais com o leite. É claro que é importante ir apresentando texturas, sabores, mas ir deixando explorar.

Focar muito nas quantidades cria um problema. Se o bebé não come a dose de sopa que “devia”, a dose de proteína que “devia”, começamos a forçar esse momento, seja com estímulos como aviõezinhos, tablets e televisão. E isto, a médio e longo prazo, pode até contribuir para que as crianças comam mais do que deviam — estão a comer de forma automática, a olhar para um ecrã — e ser um fator nas taxas de obesidade infantil. No BLW, o bebé come aquilo que precisa, e isso vai ter um papel fulcral na sua própria regulação. Estes estímulos, como os tablets, são coisas que os pais usam para forçar os bebés a comer a quantidade que os adultos querem.

O BLW assenta muito na ideia de os bebés fazerem parte das refeições em família, sentados à mesa, e sem serem despachados antes. Porque é que isto é tão importante?
Porque as refeições são momentos de partilha, e estes momentos contribuem para que o bebé se sinta parte desta família. Mesmo estas questões da confiança e do respeito, que abordamos tanto no BLW, são questões que ultrapassam muito a alimentação.

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Mas os pais podem ceder à tentação de dar comida à criança primeiro para estarem mais descansados, num final de um dia mais exaustivo.
Mas esse argumento é altamente falacioso. Repare, mesmo que os pais façam isso, vai ser tudo menos um momento tranquilo. Eu ter que estar a forçar o meu bebé a comer a quantidade de sopa que eu lhe preparei não vai ser um momento que me vai dar estabilidade a seguir; pelo contrário, vai ser um momento de muita ansiedade para a família e para a criança.

E aquilo que a Catarina acabou de dizer é o reflexo da sociedade em que vivemos hoje em dia. Nós achamos que é mais fácil agora, com um bebé de 6 ou 7 meses, alimentá-lo primeiro para depois estarmos mais descansados. Mas o que é que encontramos no futuro? Crianças de 3, 4 e até 5 anos que continuam a não fazer as refeições em família e a não comerem sozinhas. E aí os pais perdem a paciência e questionam-se porque é que os filhos não comem sozinhos. Mas que ferramentas é que deram aos miúdos?

O que é que os pais precisam de ter para implementar esta abordagem?
Paciência. Muita paciência. Costumo sempre dizer que nem sempre é fácil, não é rápido, mas vale a pena. Ouço muitas vezes as pessoas referirem-se ao BLW como aquela abordagem de dar comida em pedaços, mas digo sempre que isso é apenas um meio para atingir um fim. Um fim que é uma criança que come sozinha, que está bem e que tem uma boa relação com a comida.