Dois casos arrepiantes, que me dão a volta ao estômago, mais dos quais precisamos falar.

O caso provocou no Brasil reações opostas: os defensores da integridade física e mental daquela criança protestaram contra a demora da decisão judicial.

Os supostos "defensores da vida", a ala da direita mais conservadora, naquele país constituída por uma amálgama de evangélicos ultra-radicais, bolsonaristas e outros seres saídos da era medieval criticaram a interrupção da gravidez. Outros (incluindo um padre) insinuaram que a criança terá facilitado os abusos e que (prepare-se para não vomitar) "estava gostando".

O caso gerou uma onda de protestos em Israel, reclamando medidas mais severas no que toca a crimes de violência sexual, bem como acções de sensibilização e proteção para com as vítimas.

Estamos em 2020 e as coisas são assim. O útero e a vagina de uma mulher ainda é considerado coisa pública. Tema debatível por quem lhe aprouver. Legisladores consideram que podem restringir o direito de uma mulher dispor do seu próprio corpo. Cidadãos consideram que uma gravidez, mesmo que seja fruto de um ato monstruoso, vale mais do que a vida de uma menina (que, sejamos honestos, dificilmente recuperará deste trauma).

Estamos em 2020 e a masculinidade tóxica, impregnada pelo visionamento de pornografia violenta desde a infância, resulta na ideia da legitimidade de usufruto do corpo de uma mulher. Quer ela esteja consciente, quer esteja desmaiada. Quer ela seja adulta, quer tenha 16 anos. É a pornografia, onde a mulher ainda é pouco mais do que um depósito de esperma sem direito ao prazer, que educou e educa sexualmente a maioria dos homens adultos e dos jovens.

Mas a culpa não é da pornografia, nem sequer do acesso à pornografia. A culpa é desta educação paupérrima que todos recebemos - eu incluída. Os rapazes podem enfiar em qualquer lado, as meninas não podem dar, senão são fáceis. E, quando dão, já estão usadas. Mas, se não dão, ficam para trás. Não são fixes. São umas chatas. E quem é que vai querer andar com uma chata?

Acredito, cara leitora (e caro leitor) que as minhas palavras sejam chocantes. Mas se for lá atrás, ao seu sistema de valores mais arcaicos, verificará que tenho razão. Depois há quem lute contra isso e quem se deixe estar.

O facto é só um: a sexualidade feminina, o direito à decisão, o direito a dizer 'não' e, já agora, o direito ao prazer, ainda são temas nos quais temos medo de tocar (literal e figurativamente).

Vejamos ainda outra polémica que, à primeira vista, dá para rir mas, depois, nem tanto. As rappers norte-americanas Cardi B e Megan Thee Stallion lançaram recentemente a música "WAP". Sendo "WAP" sigla para "wet ass pussy". Em português, podemos traduzir de forma politicamente correta para algo como "vagina muito lubrificada".

A música (existe uma versão com letra explícita e outra mais clean) fala sobre empoderamento sexual da mulher. O direito a decidir como quer ter relações sexuais, de que forma. É uma música sobre decidir como ter prazer. Prazer feminino, claro está.

Dezenas de figuras ligadas à ala mais conservadora e, em particular, o célebre comentador político Ben Shapiro, insurgiram-se contra "WAP", dizendo que a música desonra os movimentos feministas e que Cardi B e Megan Thee Stallion deviam procurar um médico, porque talvez padecessem de doenças do foro genital. O político republicano James P. Bradley vai mais longe e lamenta: "Cardi B e Megan Thee Stallion são o que acontece quando as crianças são criadas sem Deus e sem a presença de uma figura paterna forte".

Em suma, e como escreve a jornalista do "The Guardian" Arwa Mahdawi, "a polémica em torno de 'WAP' mostra como os conservadores lidam bem com a sexualidade feminina - desde que sejam os homens a controlá-la". 

"Cardi B e Megan Thee Stallion são o que acontece quando as crianças são criadas sem Deus e sem a presença de uma figura paterna forte"

Porque, na verdade, um abusador (seja um tio que viola uma menor, sejam 30 homens que se juntam para abusar de uma adolescente de 16 anos, seja um marido que abusa sexualmente e bate na mulher com quem está casado há 30 anos, seja o namorado que proíbe a namorada de falar com os amigos ou de usar decotes) não é alguém que procura prazer: é alguém que procura controlo. É que, se olharmos para a coisa num sentido mais lato, até de sobrevivência da nossa espécie, quem controla a vagina controla o Mundo.