Estava num jantar com amigos quando uma professora de Português me mostrou um texto que tinha dado aos seus alunos para interpretar. Era uma crónica lindíssima de Miguel Esteves Cardoso para o "Expresso", uma espécie de dedicatória ao "amor puro" e crítica àqueles que parecem já não se apaixonar de verdade. Não consegui encontrar o original, mas este blogue mostra a versão completa do texto.
Miguel Esteves Cardoso escreve de uma forma maravilhosa, e não há dúvidas de que tem razão em praticamente todas as suas palavras — amar é difícil, é imperfeito e é, sem sombra de dúvida alguma, "mais bonito do que a vida". No entanto, assusta-me a quantidade de pessoas que ainda acredita que este "amor puro" de que fala Miguel Esteves Cardoso tem alguma coisa que ver com a dor constante.
"Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há". É esta parte que me aflige. Não foi certamente esse o intuito do interlocutor, mas é assustadora a quantidade de pessoas que se agarra a esta ideia para viver um amor estúpido e louco. É um excelente título para um filme, sem dúvida. É uma péssima premissa para quem quer ser feliz.
Vamos ver se nos entendemos: o amor é estúpido e louco, claro. Mas não pode ser estúpido e louco se for doentio e se a estupidez e a loucura forem constantes. O facto de amarmos alguém não pode ser desculpa para vivermos uma relação tóxica e infeliz, que nos traz mais mágoas e tristezas do que felicidade. A frase "Mas eu amo-o" não é o penso que cura todas as feridas, como se o facto de o coração bater mais forte por aquela pessoa desculpasse todas as vezes em que ela nos destrói e nos deixa desfeita em cacos.
Admito que talvez seja uma cínica do amor dos filmes e das novelas, dos contos de fadas e dos príncipes e das princesas. Não acredito que existam almas gémeas, nem tão pouco que o amor possa durar para sempre só porque é a pessoa "certa". Não acredito sequer na ideia de pessoa "certa", não se entendermos isto como o tiro certeiro, a agulha descoberta neste palheiro com quase 8 mil milhões de pessoas.
Acredito que a pessoa certa é a pessoa com quem escolhemos ficar. Calma, calma: é claro que tem que haver borboletas no estômago, ânsia no fundo do peito, secura na boca e desejo, que o nosso cérebro tem de disparar químicos que nem um louco e que temos de perder um bocadinho a razão. Mas não existe apenas uma pessoa numa vida inteira capaz de nos deixar assim. Sobretudo se no final essa pessoa "certa" nos fizer verter mais lágrimas do que esboçar sorrisos.
O amor não é uma novela. Não é um filme romântico, não é um livro de Nicholas Sparks. Amor não é dúvida constante, não é agressão, não é violência sob qualquer forma. "Mas eu amo-o". Não. Amor não é ser amado aos bocadinhos, de vez em quando, se o outro tiver disponibilidade para tal naquele momento. Amar não é questionar quando é que o outro vai finalmente mudar para sermos felizes. Amar não é renegarmo-nos para segundo plano porque ter o outro é mais importante do que qualquer coisa.
O amor tem que ser puro, mas não pode ser cego. Não quando essa cegueira, que nunca é verdadeiramente uma ausência de visão, nos faz perder o rasto de quem fomos, do que somos e do que queremos ser. O amor começa por nos amarmos a nós próprios e por sabermos o que queremos para nós. O outro nunca será o encaixe perfeito, mas tem que estar perto disso.
Já terminei relações porque eu não amava o suficiente o outro e porque o outro não me amava o suficiente. Já terminei relações também porque o amor, por si só, já não era suficiente. E fui criticada por isso — o amor não deveria ser puro ao ponto de um "Mas eu amo-o" ser suficiente? Troquem essa frase por um "Mas eu sou feliz". Qual é a vossa perspetiva agora do vosso amor?
Não quero um amor comodista. Não quero amar e ser amada só porque dá jeito, só porque, como escreve Miguel Esteves Cardoso, é barato ou compensa dividir as contas e as tarefas domésticas. Não quero amar e ser amada só porque tenho 30 anos e a sociedade diz-me que está na altura de ser mãe — ou porque o meu próprio instinto maternal começa a surgir —, nem tão pouco porque todos à minha volta têm relações.
Não quero um amor à base do medo do desconhecido, do "tu não és incrível mas estás aqui e até és boa pessoa". Não quero um amor que é mais amizade do que amor, e não quero um amor cobarde e entediante. Mas também não quero um amor que me destrua por dentro, que me consuma e que me enfraqueça. Que me faça duvidar de mim, que me critique e que me julgue com tanta frequência que já nem sei bem quem sou.
Não quero um amor onde todas as falhas sejam desculpadas com um "Mas eu amo-o". Não quero um amor que me faça sentir que perdi o "poder" de ser feliz, ou que tenho de ser constantemente quem não sou para tê-lo ao meu lado. Não quero adrenalina todos os dias, não quero viver todos os dias um episódio de "Morangos com Açúcar", não quero discussões violentas seguidas de sexo ainda mais violento. Não quero o meu coração ferido, o meu corpo trespassado, a minha alma violada.
Quero amar e ser feliz. E claro que há discussões, feridas e tristezas, lágrimas e ausência de sorrisos. Mas esses são escassos e pouco duradouros, e no final é a isso a que eu chamo felicidade.
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