À porta do cinema, fala-se de tudo menos de filmes. Na espera para entrar, fumam-se cigarros e olha-se para o relógio enquanto o pé, sempre irrequieto, vai batendo com maior ou menor intensidade consoante a ansiedade. À medida que a fila aumenta, também o burburinho sobe de tom. Exprime-se a saudade provocada pelos três meses em que as portas, sempre fechadas, nos obrigaram a mergulhar para novos mundos e histórias através do streaming num ecrã quase sempre mais pequeno — seja o da televisão ou, mais trágico ainda, o do telemóvel.
À porta do cinema, fala-se de tudo. Menos de filmes. Mas assim que o ponteiro se aproxima das 20 horas, as portas abrem-se e seguimos, numa marcha lenta, mas ordeira, para dentro da sala. Tudo por um filme.
No caminho, conversas banais. A senhora da frente lamenta a máquina de roupa que ficou por despejar. O marido, depois de ouvi-la, recorda-lhe que amanhã também é dia e que a ajudará no que for necessário. O jovem ao lado não tira os olhos do telemóvel e as duas mulheres imediatamente atrás resolvem, à distância, problemas de última hora que surgiram no trabalho. Eram quase 20 horas e, para elas, o dia ainda não tinha terminado. Mas estava quase.
A fila vai transitando da rua para o cinema. Entre o esfregar de álcool gel nas mãos e a mostra dos bilhetes à entrada, o burburinho, em volume crescente, já não é abafado pelo ruído da cidade. As conversas continuam banais e mundanas, porque a vida teve de continuar — mesmo que confinada.
A sala de cinema está o mais composta possível no contexto atual. Uma cadeira vazia separa uma pessoa da outra, mesmo que venham juntas. Conversa-se com uma relativa distância e aguarda-se o momento em que o ecrã, para já completamente negro, ganhe vida, cor e mundos novos. Por entre as pessoas que vão entrando e encontrando o seu lugar, os responsáveis do cinema vão recebendo abraços longos e sentidos. A pandemia obriga à distância, mas os braços pedem aconchego numa celebração de vitória sobre três meses negros em que voltar a abrir ao público era uma miragem.
O ponteiro indica doze minutos para lá das 20 horas. Os presentes, já sentados, protagonizam conversas paralelas que se cruzam com outras apanhadas do ar vindas de pessoas que não conhecem. O diálogo torna-se ensurdecedor. Não só pelo volume, mas porque as máscaras, que nos roubaram a expressão, abafam todo e qualquer som.
Há comoção, gritos e a energia frenética de uma sala cheia e viva. Mas não se teme pela segurança. A cultura, sabemos bem, é segura. De repente, o ecrã acende, a sala é mergulhada numa escuridão imensa e o frenetismo cessa à velocidade de um sopro, quase como a transmissão de uma televisão interrompida de rompante.
Nunca um silêncio, que durou perto de duas horas, disse tanto como naquele instante. Naquele cinema, falou-se de tudo menos de filmes. Mas foi por eles que voltámos e todos os que ali estavam sentados (e que assim permaneceram muito depois dos créditos finais) fizeram por não interferir com o momento, embora não lhes fosse pedido nada de semelhante. Camuflaram espirros ou tosses, abafando-lhes o som, e evitaram espreitar o telemóvel cuja luz do ecrã, mesmo que escondida, se anuncia para uma sala inteira.
O filme, esse, foi o "Nomaland — Sobreviver na América". Belíssimo e, muito provavelmente, o candidato mais forte ao Óscar de Melhor Filme. Podia ter sido outro, mas o que importava era estar de volta a um espaço onde, mesmo que nem sempre se fale de filmes, nos permitamos vivê-los de uma forma ou de outra.
Agora, espero, com mais vontade e apreço. Como se fosse a última vez.