À hora a que escrevo este texto, Donald Trump já atingiu os 270 votos eleitorais necessários para ser presidente dos Estados Unidos. De acordo com a Fox News, o republicano soma 277 votos eleitorais e Kamala Harris 226. O republicano vence não só o colégio eleitoral mas também o voto popular, o que nem sempre acontece nas eleições norte-americanas.
Com maioria no Senado, na Câmara dos Representantes e no Supremo Tribunal, o Partido Republicano circulará à velocidade que quiser nas auto-estradas do poder legislativo e judicial. O que é que isso, na prática, significará? Não sabemos.
Ainda não foi desta que os norte-americanos elegeram uma mulher para liderar o país. E, ao contrário de previsões mais ingénuas, paternalistas, woke, elitistas, o que quer que lhes queiramos chamar, as questões do género e raça não pesaram nesta eleições. O que para nós, europeus, tradicionalmente mais moderados, é incompreensível, para mais de 70 milhões de norte-americanos é evidente: Donald Trump é uma escolha melhor do que Kamala Harris.
E não é produtivo nem sequer intelectualmente honesto apelidar mais de 70 milhões de pessoas (até às 11h da manhã desta quarta-feira, 6 de novembro, hora de Lisboa, já estavam contabilizados 70 952 259 votos em Trump) de "burras", "incultas" ou "fascistas", como já li por aí em indignações várias nas redes sociais. Isto é a América, nós não somos a América.
E também é muito pouco produtivo que publicações como a "Vanity Fair" ou o "Huffington Post" estejam a denotar o óbvio. Donald Trump já foi acusado de vários crimes, entre os quais assédio sexual, já foi condenado pela justiça norte-americana, terá estado diretamente envolvido na invasão ao Capitólio de 6 de janeiro de 2021. A partir da sua tomada de posse, terá imunidade. É a vontade do povo.
A partir do momento em que alguém como Donald Trump é considerado mais apto para liderar o país mais poderoso do mundo ao invés de uma advogada, senadora e ex-procuradora-geral, está na altura de toda a gente fazer uma reflexão séria. E o toda a gente começa pelo Partido Democrata, passa pelos meios de comunicação social e vai até aos chamados moderados, progressistas, o que quer que lhes queiramos chamar. Os que votaram em Kamala Harris.
Donald Trump é, um pouco à semelhança de André Ventura, um oportunista. É um comunicador exímio, que soube usar a televisão para construir um 'boneco' público, e é capaz de dizer que a terra é plana se isso lhe granjear popularidade. Se ele acredita nisso? Não. Se ele sabe que a terra não é plana? Sabe. Trump fará, dirá e agirá como bem lhe apetecer consoante a forma como acordar naquele dia. É um homem de 78 anos extremamente volátil ao elogio e à adulação, e os que o rodeiam, em especial os que querem implementar ideologias conservadoras e retrógradas, sabem bem disso. Ao contrário de 2017-2021, em que a presidência de Trump foi recebida com choque e espanto, e em que todas as manobras, declarações e ações eram novidade, agora já se sabe (mais ou menos) o que se pode esperar.
Nos últimos quatro anos, Trump prometeu que, se regressasse à Casa Branca, viria cheio de vontade de vingança. Mas Trump tem a memória de um peixe-palhaço e, à semelhança do que aconteceu anteriormente, terá um estilo de liderança de navegação à vista, na base do improviso e desvalorizando conselhos de quem percebe mais dos temas em causa, seja economia, seja táctica militar, sejam decorações natalícias.
O que muda agora? Os que encheram os bolsos de Trump durante esta campanha, os que acorreram a apoiá-lo na recta final e o seu vice-presidente. Estamos a falar, em primeiro lugar, de Elon Musk. O homem mais rico do mundo, uma pessoa profundamente sozinha e com graves lacunas de socialização, como se vê no seu comportamento infantil em situações públicas, encontrou em Donald Trump uma figura paterna. Chega a ser confrangedora a admiração quase pueril que o dono da rede social X, Tesla, SpaceX, Starlink, etc, tem por este pater famílias de cara alaranjada. Emoções freudianas à parte, o que Musk investiu em Trump terá de ter, em termos financeiros, legais ou até políticos, algum retorno. E Elon Musk há muito que atravessou a linha ténue que separa a genialidade da loucura, sendo totalmente imprevisível que planos quererá por em prática com o apoio de Donald Trump.
Em segundo lugar, os novos media, os novos pundits e influencers que, no TikTok, no X, em podcasts, ajudaram a criar nos últimos quatro anos a narrativa anti-woke, o fantasma de uma repressão imposta por uma maioria, que quer ou calar os homens, ou impor a agenda LGBT, ou outra coisa qualquer que cause medo, incentive ao ódio e ao ressentimento em relação a minorias (e às mulheres). O rosto mais visível desta legião digital da pós-verdade e do relativismo é o todo-poderoso podcaster Joe Rogan, formatador de consciências de 80% dos homens brancos, heterossexuais de classe média do mundo civilizado, que manifestou o seu apoio público a Trump dois dias antes das eleições.
Por último. J.D. Vance, possivelmente a pessoa com os ideais mais abjetos (e sem qualquer coluna vertebral) a chegar à Casa Branca e que faz de Trump um gajo bacano com umas ideias fixes, com quem até iríamos beber uma cerveja. O próximo vice-presidente dos Estados Unidos é, além de um fantoche do ultraconservador e multimilionário Peter Thiel, uma amálgama asquerosa de populismo de extrema-direita. Defende um certo conceito de família tradicional, odeia mulheres, tem um estranho fascínio por "homossexuais normais", como disse recentemente em entrevista a Joe Rogan. Tal como Donald Trump, despreza imigrantes, embora seja casado com uma mulher não branca, filha de imigrantes. É capaz de mentir com quantos dentes tem na boca, de admitir que mentiu, só para se manter relevante. E tem um olhar sinistro, assustador, um sorriso tenso, de quem está a ferver de ressentimento por dentro mas parece muito calmo. Até Donald Trump o despreza, como se percebeu no primeiro discurso que fez, já esta quarta-feira, 6. Mas Vance representa, mais do que Trump, o que é atualmente o partido republicano, e Trump vai ter de saber lidar com isso.
São só mais 4 anos, uma vez que, de acordo com a 22ª emenda da Constitução norte-americana, o exercício do cargo está limitado a dois mandatos, mas nada será como era depois destes quatro anos. Como diz a minha mãe: "só Deus sabe quem lá chegará".