Tenho um alter ego chamado Vanda. A Vanda é uma tipa que põe a mão na cintura, que fala uns bons décibeis acima do normal, com uma voz aguda, monocórdica e absolutamente irritante. Tem os olhos esbugalhados de raiva e sofre de prognatismo — sim, fica subitamente com o maxilar de baixo bastante mais proeminente.
A Vanda nasce de um conflito permanente da adolescência: numa casa com três filhos — duas raparigas e um rapaz —, cabia sempre ao mulheredo ajudar a matriarca nas tarefas domésticas. Não é que fossemos umas coitadas sobrecarregadas. Bem pelo contrário: eram-nos exigidos os mínimos olímpicos. Mas uma coisa não tem que ver com a outra. Por menores que fossem as obrigações, porque é que ele nunca levantava o rabo do sofá? Aquilo deixava-me tão frustrada que, tal como o Dr. Jekyll se transformava em Mr. Hyde, eu ia de Ana a Vanda.
Frustração é o ingrediente chave para trazer ao de cima esta identidade oculta. Tanto que é esta mesma Vanda que irrompe quando hoje, numa casa que já não é a de seus pais, se ouve: "Precisas de ajuda?".
De acordo com o dicionário Priberam, este substantivo feminino significa "acto de ajudar, auxílio, favor." Ora, quando a casa é de duas pessoas, não faz sentido que uma auxilie a outra, como se de um favor se tratasse. Por mais que se reivindiquem os mesmos direitos no espaço público, por mais que se discutam os mesmos salários, oportunidades, direitos e dignidade, os efeitos conseguidos ficam absolutamente comprometidos se em casa nada mudar. É que isto propaga-se: as gerações seguintes replicam exatamente aquilo que viram acontecer no seu próprio lar.
Quando a loiça está suja, precisa de ser limpa, quando o cesto da roupa está cheio, é porque há trapos para lavar, quando a cama não está feita, é preciso que alguém a faça. E, guess what? O cumprimento destas tarefas não pode nem deve depender do pedido de "ajuda" de alguém. Quando o espaço é partilhado a dois, é do interesse de ambas as partes que ele permaneça limpo e bem tratado.
Soa a óbvio, não é? Até parece uma não-questão. Mas não se iludam. Isto é tudo difícil, é muito difícil. É que há a tal questão da imitação. Por mais que se grite pelo feminismo, continuamos presos a modelos antigos e replicamos os padrões com que crescemos em casa. Eu tenho resquícios de síndrome de gata borralheira, porque durante anos e anos esta era a norma para o sexo feminino. Do outro lado, temos um refém do machismo, encurralado pela regras sociais invisíveis inerentes a este estatuto — também ele muito pouco livre, não nos enganemos.
Assim, respondemos os dois aos vícios do padrão: eu chego a casa estafada do trabalho e sigo para a cozinha para fazer o jantar (consciente daquilo que estou a replicar e, consequentemente, irritada, prestes a soltar Vanda), ele senta-se no sofá a ler, porque sabe que invariavelmente a comida aparece feita. Estamos os dois a imitar o que vimos acontecer nos sítios onde crescemos. E não é que os nossos pais tivessem esta intenção: era assim que acontecia. E ninguém discutia isso.
Só que a janela da discussão abriu-se — e não a usar em prol da mudança é cometer uma asneira monumental. Por isso, precisamos de discutir, precisamos de conversas que durem horas, precisamos de nos soltar destas normas retrógradas que, dentro de casa, nos atribuíram papéis que já nem fazem sentido — as mulheres trabalham, têm carreiras e ganham dinheiro, o que invalida a tese de fada do lar. Nem que para isso se faça um jantar individual, se deixe a loiça suja a repousar no lavatório ou a roupa por lavar. É que assim percebe-se: as coisas não aparecem feitas sozinhas. É preciso dividir tarefas domésticas, de forma absolutamente justa.
E a todas as Marias que dizem: "Ai, o Miguel é um querido, ajuda-me imenso", é preciso explicar: fofa, o Miguel pode ser um tipo porreiríssimo, o Miguel pode ser um gajo cheio de graça, mas o Miguel não tem de te ajudar. O Miguel, tal como tu, tem de fazer.