Cunhas para salvar a vida de crianças? Totalmente a favor. Eu e qualquer ser humano decente. Mas não é a nossa decência, nem a de Marcelo Rebelo de Sousa, nem a do seu filho, o "dr. Nuno Rebelo de Sousa", que está aqui em causa. O que está em causa, no caso das gémeas luso-brasileiras, tratadas de forma prioritária no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, com um medicamento que custou milhões ao erário público, é o nepotismo deste caso.
Porque desengane-se quem acha que isto não se trata de nepotismo. Porque é que Nuno Rebelo de Sousa enviou um email para o pai, o presidente da República? Porque acha que pode. E porque pode, efetivamente. A partir do momento em que o filho do chefe de Estado, o mais alto magistrado da Nação, considera absolutamente normal contactar o pai por via oficial, expondo o caso e pedindo ao pai para saber se era possível uma resposta, está tudo dito sobre o à vontade com que se exercem este tipo de... pedidos.
Em Portugal, casos como o de Constança Braddell, a jovem que, através da exposição mediática da sua doença, conseguiu acesso a um medicamento que não estava disponível em Portugal e que a poderia salvar (tristemente, Constança acabaria por morrer) são dramaticamente diferentes dos das gémeas Maitê e Lorena. Constança usou as redes sociais, mobilizou pessoas com influência, sensibilizou o País. Tornou pública a sua situação e, com isso, conseguiu ter acesso ao tal medicamento que lhe poderia salvar a vida.
O caso das gémeas luso-brasileiras é exatamente o oposto. Tudo foi feito no silêncio de redes de contactos, pergunta aqui, pergunta ali, vou dizer a este, vou pedir àquele. O que é mais chocante é que nem a família das gémeas nem Nuno Rebelo de Sousa são uns desgraçadinhos ou uns pobretanas, sem recursos e, acima de tudo, sem uma rede de contactos que lhes permitisse, de alguma forma, exercer influência ou pressão públicas para encontrar uma solução para as crianças. Podiam ter exposto o caso na comunicação social. Podiam ter criado uma angariação de fundos. Podiam ter falado publicamente. Mas não. O filho do presidente da República preferiu esta via. E o presidente da República, placidamente, após ser confrontado com a exposição pública deste claro favorecimento (por quem e de que forma ainda está por ser revelado), demora um mês - UM MÊS! - a esclarecer (mais ou menos, vá) a história.
Fê-lo esta segunda-feira, 4 de dezembro, um mês depois de a TVI ter exposto pela primeira vez o caso, numa bizarra conferência de imprensa no palácio de Belém. Entregou o filho, entregou uma das suas assessoras, a ex-jornalista Maria João Ruela, entregou o chefe da Casa Civil. O caso remonta a 2019. Marcelo é conhecido pela sua memória prodigiosa. Inicialmente disse que não sabia de nada. Agora, afinal, já havia emails. O presidente da República afirma que a sua intervenção terminou a partir do momento em que o chefe da casa Civil envia um email aos pais das crianças.
Não estou e não vou duvidar da palavra do presidente da República. Mas, a partir do momento em que o elemento mais acima na cadeia de comando dá um sinal, quem está abaixo obedece. Vamos ser ingénuos e pensar que, quando o administrador / CEO / patrão /chefe diz algo como "podem ver se x já está y?", a hierarquia toda não encara a pergunta como prioridade? Marcelo diz que não voltou a falar com o filho sobre o caso. Acho altamente improvável. Não acredito que, ao longo de quatro anos, em Natais, reuniões de família, videochamadas para saber dos netos, pai e filho não tenham, por um segundo, abordado a questão.
Sobre este caso, resta saber tudo. Resta saber quem deu o 'ok' para que as crianças recebessem o tratamento. Por que mãos passou este caso até que, no Hospital Santa Maria, em Lisboa, onde chegam casos de todo o País, se tivessem aberto as portas para que duas crianças, com a sua recém-adquirida dupla nacionalidade, pudessem usufruir de um tratamento que custou milhões aos cofres do Estado.
É preciso, no entanto, fugir a tentações de xenofobia. Isto não é uma questão de nacionalidade. É uma questão de justiça. Uma coisa é a cunha ser uma instituição deste País e estar enraizada em toda e qualquer circunstância da nossa vida, desde alguém que conhece alguém no posto da GNR e pede um 'favorzinho 'por causa de uma multa, ao amigo do amigo do presidente da câmara que pede uma 'atençãozinha' para o filho que se candidatou a um emprego, passando pelo primo que tem um tio que trabalha no hospital e pode ver 'como estão as coisas' (toda a gente já o fez e quem disser que não está a mentir). Outra coisa é isto. Isto é saber que se pode, achar que se pode. É achar que se está acima de todo e qualquer escrutínio (talvez porque se cresceu nessa ilusão e não se tenha, em qualquer momento, levado um banho de realidade. Uma wake up call, para usarmos termos chiques).
Na passada sexta-feira, uma criança foi assistida à porta do Hospital S. Sebastião, em Santa Maria da Feira. A urgência pediátrica encerrada fez com que esta situação - que seria apenas caricata se não fosse angustiante - acontecesse: uma mãe em desespero, em frente a um hospital, tem de ligar para a linha Saúde 24, que depois entra em contacto com o INEM, cujo veículo se encontrava ali, a 30 metros. Felizmente, a criança foi socorrida a tempo e transportada para Gaia. Se isto não nos faz tremer de medo, só de nos imaginarmos na mesma situação (sobretudo nós, os comuns mortais, que não temos um Nuno Rebelo de Sousa nas nossas redes de contactos), não sei o que faz. A mim, que sou utente assídua do Hospital S. Sebastião, causou-me um medo imenso.
E agora, uma reflexão para os que não vão ler isto porque já desistiram do jornalismo. Para os que apelidam o trabalho dos jornalistas de "jornalixo", para os que dizem que os jornalistas são "uns vendidos", para os que dizem que "as notícias são só mentiras". Para os que não veem notícias porque "são só coisas negativas" (como se tivesse havido um tempo em que as notícias eram só "coisas positivas", ou como se enterrar a cabeça na areia e estar alheado do mundo fosse uma alternativa melhor. Bom, será certamente mais confortável, assim como é toda a ignorância).
Para os que dizem que não pagam, mas depois leem revistas e jornais pirateados, que lhes chegam confortavelmente através de grupos de WhatsApp e Telegram. Para os que dizem que fazem as suas "próprias pesquisas" no Facebook ou no TikTok: se não fosse o jornalismo, este caso nunca veria a luz do dia. E todos continuaríamos alegremente na ignorância, e não haveria escrutínio. Enfim, a democracia, já de si frágil, dobrar-se-ia ainda mais, refém dos nepotismos, das amizades, dos favorecimentos, das famílias, dos eleitos.
Era só isto.