Convivemos mal com a chuva e com o mau tempo. Fechamo-nos em casa, enchemos centros comerciais aos fins de semana, onde circulamos como ratinhos dentro de gaiolas, maldizemos quando temos de andar na rua, de carregar um guarda-chuva. Ficamos com neuras descomunais e irritamos quem nos rodeia quando apanhamos uma molha, parecemos gatinhos abandonados quando a água que cai do céu nos ensopa a roupa e os pés.
Mas não é preciso ir muito longe para perceber como outros congéneres europeus fazem a sua vida normal, faça chuva ou faça sol, não se amedrontando por causa de umas gotinhas de água. Veja-se o caso dos alemães. Quando visitei Berlim, no penúltimo dia abateu-se uma bátega de água sobre a cidade. Lá andávamos nós, acabrunhados debaixo do guarda-chuva comprado à pressa, tentando percorrer o mais rapidamente possível a distância entre um ponto e outro, olhando melancólicos para o exterior, refugiados em cafés ou restaurantes, esperando que a borrasca passasse.
Mas aquela gente, qual quê? Toca de ir para rua, mesmo sem chapéu nem nada, só com gabardines e botas, fazer a vidinha. Era malta que ia e vinha para o trabalho, eram pais com crianças pela mão, eram mães a empurrar carrinhos de bebé. Em nenhum semblante se via a expressão de terror - tão sul da Europa - "ai que o menino vai ficar constipado!". Nada. Tudo tranquilo, a circular como se nada fosse.
Por cá, sobretudo nos bairros mais gentrificados de Lisboa, são sobretudo os franceses e os americanos que nos ensinam a enfrentar com orgulho a borrasca. Na zona onde vivo, confesso que até fico envergonhada de andar sempre de guarda-chuva na mão, quando vejo pais e mães, alguns com dois filhos pequenos pela mão, alegremente encharcados, entre a escola e casa. Sempre a pé, que isto é malta que ou não tem carro ou não está para se chatear no trânsito, preferindo caminhar um ou dois quilómetros à chuva do que enfrentar o caos de carros, motas, bicicletas, trotinetas, TVDE, táxis, autocarros, estacionamentos em segunda fila e a falta básica de civismo ao volante que continua a ser regra nas ruas desta cidade.
A pobreza está-nos no sangue, mesmo para quem ascendeu socialmente. O medo da doença, da sujidade, do frio, da fome, marca, ainda que inconscientemente, os nossos comportamentos. E a nossa aversão à chuva, à exposição à chuva, está muito relacionada com esse fantasma, herdado coletivamente do tempo em que éramos efetivamente pobrezinhos (mas honrados). Não ajuda que ainda sejamos um País em que a pobreza energética é uma realidade, que as casas sejam húmidas, quentes no verão e frias no inverno, que o isolamento e o aquecimento central sejam luxos só ao alcance de alguns e que a ideia de ter roupa molhada dentro de casa cause arrepios a qualquer pessoa que ou não tenha máquina de secar ou tenha, mas a guarda apenas para ocasiões especiais (porque o preço da eletricidade é o que é).
Outro dia, em conversa com um guia de montanha, este dizia que nunca tinha trabalhado com gente mais porca do que os franceses. Pessoas com muito dinheiro, que viajavam pelo mundo inteiro para fazer caminhadas e ficar em hotéis de luxo, mas que optavam por não tomar banho. Não era um banhinho rápido ou só um banho checo (obrigada, Georgina, por colocares essa expressão no mapa). Era mesmo não tomar banho durante dias a fio, mesmo com exigentes caminhadas pelo meio. Imaginem o que é ser tão rico ao ponto de se poder dar ao luxo de viver como um pobre. Just for fun. É preciso chegar a um patamar de liberdade financeira coletiva, a uma mentalidade de desprendimento, suprimidas todas as necessidades básicas, para poder andar alegremente cinco dias seguidos com as mesmas cuecas e o cabelo por lavar.
Isso, para um português de classe média, é o horror máximo. Saber que o outro sente o nosso odor corporal, o nosso cheiro a Humanidade. Porque associamos sujidade (seja do corpo, seja da casa) a pobreza. Assim como associamos andar à chuva com falta de recursos, e continuamos a considerar o carro como um sinónimo de status (coisa completamente impensável quanto mais rico é o país).
Se calhar, devíamos começar a andar mais à chuva.