Descrever o Tremor é como tirar uma fotografia a uma paisagem. Por mais bonito que possa ser o resultado, nunca será absolutamente justo, porque tudo o que mexe com sentimentos é inexplicável, é insondável. Mas vamos pôr as coisas assim: apesar da chuva que caiu em São Miguel, entre 9 e 13 de abril, altura em que decorreu o festival, foram dias muito quentes. Aquilo que dizia uma miúda à saída da casa de banho do Arquipélago, sala de espetáculos da Ribeira Grande em que decorreram os concertos no dia 12, também resume bem aquilo que por ali se passou. Sim, “Tremor é amor”.
Considerar o Tremor um festival não é rigoroso. Por falta de melhor, é este o termo que utilizamos para designar o evento — mas, por favor, invente-se uma palavra nova para isto. É que, apesar de haver concertos, o Tremor está longe de ser apenas um alinhamento de bandas a tocarem e de uma enchente de gente a mover-se de um palco para outro. Trata-se, sim, de uma verdadeira experiência multidisciplinar, onde a expressão artística — em que o público participa e que nos surge das mais variadas formas e dos mais diversos locais do mundo — não se pode separar do sítio e daquilo que ele tem para nos dar.
O Tremor é uma ode à arte, mas também é uma profunda homenagem àquele arquipélago, sem o qual não seria o que é, sem o qual não funcionaria, sem o qual não existiria. Nem o nome faria sentido: como explicou à MAGG Luís Banrezes, o transmontano mentor da ideia — que desafiou a editora Lovers & Lollipops, a Yuzin e António Pedro Lopes para se juntarem na aventura —, o epíteto surge numa alusão à atividade vulcânica que faz mover aquelas terras. Perfeito.
E o que é que torna o Tremor num festival único, diferente dos grandalhões patrocinados pelas grandes operadoras? Tudo. Mas, vá, tentámos resumir.
A ilha é o recinto
A chegada ao Parque Natural da Ribeira dos Caldeirões, um dos locais do Tremor na Estufa — concertos surpresa, em sítios secretos, desvendados pouco anos de terem início — foi absolutamente arrebatadora. A chuva tinha dado tréguas e à nossa frente tínhamos aquele que podia ser o berço da natureza, o sítio onde tudo começou, onde as árvores nasceram — mas, bem, mais tarde percebemos que todos os cantos da ilha são suscetíveis de nos dar essa sensação. Estávamos arrefecidos pela água, mas a injeção de energia proporcionada pelo sítio, em conjunto com a atuação de David Bruno — que nos animou com temas recheados de humor, em alusões a estereótipos muito portugueses, do trabalho “O Último Tango em Mafamude” — deram cabo desse contratempo.
Este é só um exemplo de como o Tremor não acontece num recinto fechado e limitado por vedações, exceto se considerarmos que o mar que banha a ilha é o seu limite (ainda que houvesse uma viagem planeada para a ilha de Santa Maria, cancelada pelo mau tempo). Houve ainda o espetáculo inesquecível e arrepiante em Rabo de Peixe — já lá vamos, porque este merece um ponto exclusivo — a noite na Ribeira Grande e a entrada em diferentes sítios de Ponta Delgada, desde o teatro Micaelense, ao Coliseu ou Igreja do Colégio que quem passou pelo festival teve a oportunidade de conhecer, ao som de diferentes artistas.
Tremor Todo-o-Terreno: uma performance que começa a andar de auscultadores nos ouvidos
Era o que estávamos a dizer: a passagem por este festival, intrinsecamente ligado e dependente da ilha, desvenda-nos os seus segredos — dos trilhos à gastronomia — através da passagem por locais que, de outra forma, não nos lembraríamos de visitar. No dia anterior, a 11 de abril, desbravámos o trilho do Agrião, na freguesia da Ribeira Quente, para assistir a uma enigmática performance, no contexto do Tremor Todo-o-Terreno. Acreditem, quem passou por isto não esquece.
Durante 35 minutos, caminhámos entre a vegetação, em caminhos estreitos, banhados pelo mar, rumo a um local desconhecido. Connosco ia um MP3, cedido pela organização, que todos ligámos ao mesmo tempo. O trilho fez-se acompanhado desta espécie de instalação sonora, criado, propositadamente para esta ocasião, pela britânica Natalie Sharp, em conjunto com Tida Bradshaw. Num cenário absolutamente enigmático — para o qual a neblina contribuiu muito — tudo culminou numa casa, em que a dupla aguardava para dar continuação à performance. De roupas vermelhas, maquilhagens carregadas, tínhamos chegado ao jardim do diabo — “Hell’s Garden” —, percebendo mais tarde que aquela atuação era inspirada na obra Jardim das Delícias Terrenas (The Garden of Earthly Delights), de Hieronymus Bosch, representando, portanto, a história do mundo, desde o paraíso até ao inferno. Daí o nome da performance: "Natalie Sharp's Earthly Delights".
Um festival onde o cartaz importa mas não conhecer o cartaz não importa
O anúncio das diferentes bandas que atuam no festival de São Miguel não geram milhares de partilhas, likes e aquele êxtase típico de mais uma vinda de Eddie Vedder a Portugal, mesmo que o homem já tenha passado por cá uma catrefada de vezes. Não conhecer os nomes que preenchem o line up é o contrário de uma desvantagem, porque a disponibilidade para apreciar e conhecer é outra. À exceção dos Pop Dell’Arte, que quase todos os portugueses conhecem — que encheram o Ateneu Comercial de Ponta Delgada — o Tremor é um festival para descobrir: é um evento que dá oportunidade para bandas e artistas emergentes se mostrarem, é o sítio perfeito para conhecer o trabalho de bandas alternativas, que mais facilmente são conhecidos pelos entusiastas da música.
Numa altura em que a luta contra o racismo e desigualdades é absolutamente premente, é bom ver que há festivais que são inclusivos. Foram várias as nacionalidades que preencheram este cartaz, onde há espaço para artistas masculinos e femininos — tanto que o tema do ano foi “Future is Female”. Numa programação de cinco dias, preenchida por cerca de 50 atividades, desde concertos, a performances, exposições ou conversas — algumas das quais se repetiam para que todos tivessem a oportunidade de assistir — podemos destacar uns quantos que refletem isto.
No segundo dia de festival, a 10 de abril, depois do concerto de Fumaça Preta, o trio energético e exótico de rock (com sonoridades vindas de África e do Brasil) que abriu a noite no Arco 8 — o armazém que nos dá as boas-vindas com obras do street artist português Vhills, onde quase todas as noites terminaram — foi a vez do DJ set da portuguesa trans Odete, que começou com misturas que deixaram a plateia em êxtase, porque é isso que acontece quando se ouve “Bitch Better Have my Money”, de Rihanna, ou “Beautifull Liar” de Shakira e Beyoncé. Houve ainda espaço para a portuguesa Lula Pena, para a etíope Lafawndah, para o experimentalismo do belga Lieven Martens ou ainda para a americana Haley Heynderickx, fortemente aplaudida na Igreja do Colégio, onde decorreu a sua atuação.
Um dos últimos e mais esperados concertos foi do grupo de Cabo Verde Bulimundo. As expectativas foram mais do que superadas, não tivesse a plateia do Coliseu Micaelense dançado em conjunto, como um só, e implorado por mais um tema no final do concerto. De instrumentos às costas, ao sair do edifício onde atuaram, entre abraços e apertos de mão, a banda foi acarinhada por quem ali ainda se encontrava. Foi bonito.
As barreiras diluem-se. E é comovente
Porra. É a primeira palavra que nos vem à cabeça quando recordamos o Tremor na Estufa do penúltimo dia de festival, que decorreu em Rabo de Peixe, uma das zonas mais problemáticas e estigmatizadas da ilha. A surpresa começou com uma atuação das Despesas de Rabo de Peixe, que, a subir a rua, convidavam aqueles que assistiam a dançar ao som da música regional que ali se produz.
A festa seguiu para o interior da Casa do Espírito Santo — Irmandade da Beneficência (onde, na sala ao lado, estava uma exposição de Rubén Monfort, que documentou, em fotografia, as Festas do Espírito Santo). Aqui aconteceu o inesperado: a dupla catalã ZA! (que mais tarde voltou a dar um verdadeiro show, onde se misturou o rock, jazz, eletrónica ou afrobeat), vinha camuflada entre os elementos das Despesas e mostrou-nos como os dois mundos se podem unir e formar uma harmonia perfeita. As baterias e os sintetizadores condizem, afinal, com o canto, guitarras, acordeões e castanholas de Rabo de Peixe. Os açorianos tocaram ao som do drum & bass e os espanhóis ao som do folclore. As barreiras diluiram-se. A plateia passou-se. E foi in-crí-vel.
Aqui o público é uma peça fundamental da arte
O segredo foi bem guardado porque ninguém queria estragar a surpresa. Há dias que andávamos a ouvir falar no Instytut B61 – Interstellar SUGAR Center, uma experiência que decorreu várias vezes, em diversos dias do Tremor. Bem, que viagem.
Mais uma vez, as palavras nunca poderão substituir a experiência. É mesmo impossível. Mas vamos tentar resumir. É uma espécie de peça de teatro emersiva, em que vários atores, que aqui interpretam cientistas espaciais, nos recebem à porta de uma escola. Encaminham-nos para um autocarro todo tapado, dando-nos a impressão de estarmos a fazer uma viagem numa nave. Chegados ao destino, que não conseguimos perceber onde fica, somos levados diretamente para dentro daquilo que parece ser uma fábrica. Em cada divisão, e já todos vestidos com fatos macaco brancos, começam a falar-nos sobre as diferentes fases das estrelas, surpreendendo-nos, em quase todas, com momentos musicais, que decorrem em diferentes salas e que oscilam entre festas, raves, atuações com guitarra acústica, sem esquecer uma nova versão — cómica — do tema "Psycho Killer", dos Talking Heads.
O final desta experiência lembrou-nos o último episódio da série “Os Sopranos”: dizendo-nos que faltava mais uma etapa, os cientistas polacos abrem o portão para, logo de seguida, o fecharem. Deixam-nos na rua. Sem mais, nem menos. Sem sabermos onde é que estamos. Sem, sequer, sabermos que horas são ou quanto tempo passou — no início, antes de pedirem para desligarmos os telemóveis, fizeram-nos mudar a hora.
Um festival íntimo e de partilha, sem ativações de marca e flores na cabeça
Ficámos absolutamente espantados quando soubemos que o Tremor não vende mais de 1.500 bilhetes. Este número é indicativo daquilo que o evento pretende ser: um festival intimista, onde mais do que o lucro, importa criar um espaço onde as pessoas se possam ligar, onde haja condições para que todos possam, confortavelmente, frequentar a ilha, sem incomodar aqueles que lá vivem ou causar danos nos espaços por onde o festival passa.
Na verdade, além do uso de copos reutilizáveis, as preocupações ambientais foram uma preocupação da organização, que alertava quem frequenta o festival para que se mantivessem os locais limpos. As pessoas que assistiam, acediam — e foi tão bom ver que o sítio continuava limpo depois de um concerto, contrariando aquele cenário desolador dos milhares de copos de plástico no chão.
Aqui as coisas fluem ao ritmo certo, o que não quer dizer que não haja filas. No Tremor elas existem, mas é preciso considerar que muitos dos espaços têm uma lotação pequena, mesmo que o aglomerado de gente seja de, no máximo 1.500 pessoas. Mas nada que se compare aos mares de pessoas que se reúnem para entrar no Passeio Marítimo de Algés, a cada mês de julho.
Mais: aqui não há a esquizofrenia de marcas, nem aquelas que se promovem oferecendo pinturas faciais. Não há flores na cabeça, porque o look Coachella não condiz com este festival — parem com isso, a sério. Aqui não existe um dress code invisível, exceto se considerarmos os casacos para a chuva e o calçado confortável. Portanto, uma verdadeira lufada de ar fresco, que deixa para plano nenhum o folclore das aparências, do merchandising e dos telemóveis no ar, deixando dar atenção ao que realmente importa: a ilha, a música, as pessoas que aqui se apresentam na sua melhor versão, porque, como não?
“Tremor é amor”
Podendo soar ao chavão óbvio das palavras que rimam, quem passou pela sexta edição do Tremor, em São Miguel sabe bem o quão fiel é a expressão àquilo que pela ilha se viveu no decorrer de cinco dias. O Tremor é mesmo amor. E, mais do que elogiado, o Tremor deve ser agradecido. Obrigada, Tremor. Para o ano há mais — faça chuva ou faça sol.