Foi uma semana de milagres. Ainda recuperava eu do choque de termos sido elogiados pela nossa capacidade de organização nas Jornadas — repito: capacidade de organização — quando sou confrontada com a existência de mais um fenómeno sobrenatural oposto às leis da natureza a acontecer neste nosso querido Portugal.

Vamos ser precisos: passou-se tudo em Fátima, terra onde há umas décadas três crianças causaram um rebuliço e hoje vendem-se velas a cinco euros e ar dentro de frascos de vidro a dez. Depois de rezar e comungar no santuário, uma espanhola com apenas 5% de visão abriu de repente os olhos e percebeu que via na perfeição. É isso mesmo, na perfeição! É provável que nem precise de usar óculos, algo que eu confesso invejar um pouco — também adorava curar o meu maldito estigmatismo que, não sendo péssimo, atenção, ainda me leva o coro e o cabelo sempre que é altura de mudar de lentes. É que elas são mesmo muito caras e o Estado não quer saber disso, talvez Deus pudesse ter um bocadinho mais de compaixão. Fica a dica.

Voltemos às coisas boas: dois milagres num par de dias? Venham de lá essas listas da Condé Nast! Quero ver Fátima no Top das cidades onde acontecem mais milagres, para depois me poder gabar no Instagram e Tik Tok de mais um prémio atribuído a este país que já não me pertence graças ao excesso de turismo. Toma, Lourdes!

Bem, vamos com calma, estamos a deixar a emoção tomar conta de nós: ainda temos um longo caminho a percorrer antes de nos tornarmos num oásis milagreiro, a Condé Nast vai ter de esperar um pouco. Para começar, o Patriarcado de Lisboa ainda diz desconhecer o caso. O fax ainda não chegou, dizem as más-línguas que anda algures perdido nos correios. Mas mesmo quando chegar, não nos podemos esquecer que, historicamente, costuma levar uns anitos até a Igreja decidir-se a aprovar um milagre — em termos de timings, está ali taco a taco com as atuais listas de espera para ter um médico de família, a conclusão dos processos judiciais mais mediáticos da atualidade ou a porrada que uma mulher tem de levar até alguém a levar a sério e aceitar que é um caso de violência doméstica.

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Mas vá, são boas notícias. E vocês sabem que eu cá gosto sempre de ver o copo meio cheio — dois milagres em tão pouco tempo não é nada mau, nada mau mesmo. E foi por isso que pensei: já que vamos lançados, porque não pedir mais uns quantos milagres?

Começo eu!

Habitação.

Quem casa quer casa, lá diz o ditado, mas olhem que quem não casa também. A ver vamos: todos queremos uma casa, sejamos novos ou velhos, com fiador ou sem, com contrato sem termo ou com termo, com a possibilidade de pagar mil euros mensais ou nem por isso. Queremos? Queremos, pois, mas não há. Os senhorios ou os bancos, neste caso é igual, querem malta nova (mas não demasiado nova), com três fiadores (se forem cinco ainda melhor), com contrato sem termo (ai Jesus aos freelancers), com a possibilidade de pagar três mil euros mensais (porque atenção à taxa de esforço), e que vai na volta ainda têm 43 casas para dar de garantia e jeitinho para as palavras para escrever uma carta bonita de motivação para ficarem com a casa. A não ser que sejam estrangeiros. Se forem estrangeiros, já está tudo bem.

Mas nós também compreendemos, só mesmo os estrangeiros é que têm condições para isto: até lá, nós mantemo-nos em casa dos nossos pais, enquanto somos acusados de ser a geração que de lá não sai ou que, depois de divorciados, para lá voltamos. Com os nossos salários e os preços das casas, que outra solução temos? Só mesmo dar graças a Deus pelos nossos pais ainda terem uma casa. Caso contrário, talvez encontremos escape num quarto a cair de podre numa cave sem janelas, numa tenda num parque de campismo ou simplesmente na rua. É o que está a acontecer a muitos de nós, mas vamos fingir que isto não é um problema. O Estado vai salvar-nos a todos com a meia dúzia de casas disponíveis no programa de arrendamento acessível. OK, não vai, estava a ser irónica. Aí em cima, estão a ouvir-me? Cá em baixo precisamos mesmo de um milagre, porque de outra forma, parece-nos, isto só tem tendência para piorar.

SNS.

Esta coisa magnífica a que dão o nome de Sistema Nacional de Saúde não é, na verdade, mais do que uma falácia: hoje em dia, quem quer cuidados médicos em Portugal é bom que tenha um seguro de saúde para ir ao privado, caso contrário bem pode contar com consultas urgentes disponíveis dali a seis meses a um ano, ou urgências com oito horas de tempo médio de espera — isto se não forem engolidos entretanto pela burocracia, porque os meninos que organizaram a JNJ ainda não foram chamados para tratar deste assunto. Mas está tudo bem, temos saúde para todos, pelo menos é isso que nos dizem no momento de pagar impostos.

O problema é que o todos é muito, e muitos médicos é coisa que não há por cá porque esses também precisam de ganhar o suficiente para pagar uma renda. Milagres precisam-se, e é já. Se ninguém salvar o SNS, só nos resta mesmo partir todos para Fátima na esperança de que a vela de cinco euros nos cure as maleitas. Bem, uma vela por pessoa, está bem? Deus escreve direito por linhas tortas, mas ao final do dia é preciso respeitar o capitalismo.

Juízo

Já me estou a esticar nos milagres, eu sei. Vou só pedir mais um: que ganhemos juízo. Não, as polémicas em torno da JMJ não foram “absurdas”, Costa. Não quando Paulo Portas é administrador da Mota-Engil e foi precisamente a Mota-Engil a responsável por erguer um altar-palco de cinco milhões. Se uma coisa pode não ter nada que ver com a outra? Pode. Mas todos sabemos que não faltam exemplos de favorecimentos na nossa história política, por isso ninguém nos pode levar a mal a desconfiança. Mas eu continuo, que tenho mais para dizer: não, quem ousou criticar o evento não foi “absurdo”, não quando vimos mesmo aqui ao lado, na vizinha Espanha, que é possível financiar uma iniciativa destas só com dinheiro privado. E não, não foram “absurdas” as polémicas que levantámos quando temos Oeiras a retirar um cartaz sobre os abusos sexuais na Igreja e depois recolocá-lo quando já é certo e sabido que o Papa não volta a passar por ali.

Estamos todos de facto um bocadinho fartos de sermos tomados por estúpidos, infantilizados como se fossemos crianças de cinco anos que não sabem o que querem, e que precisam que os pais os guiem para não acabarem com a mão queimada na chama do fogão. Eu sei bem o que quero: quero que assumam que os cofres estão cheios e já não há razão para pagarmos este descalabro de impostos, que temos uma crise de habitação gravíssima, que o nosso SNS precisa de ajuda, que os nossos médicos e enfermeiros precisam de condições dignas para trabalhar, que os professores precisam de ser ouvidos porque não aguentam mais, e com razão, que há um plano sério para salvar a segurança social, para ajudar os nossos idosos que vivem com 200 euros mensais, para garantir que os sem-abrigo da Almirante Reis são realojados a sério, ao invés de enxotados para outro canto para o Papa passar na rua.

Estou a pedir muita coisa? Talvez. Mas em terra de milagres, ninguém me pode julgar por pedir mais um. É que já me cansei de tentar ser ouvida pelos que andam cá na terra.

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