Nancy Stokes é uma mulher reformada, viúva e insatisfeita. Não com tudo na vida, dado que o marido proporcionou-lhe um lar e uma família, mas só após a morte do companheiro é que esta antiga professora, na casa dos 60 anos, percebeu que nunca teve sexo de qualidade — nem um orgasmo. É nesse momento, e cheia de curiosidade de experimentar, que Nancy contrata um trabalhador sexual chamado Leo Grande para a guiar por novas aventuras no campo sexual, mas acima de tudo numa viagem de autodescoberta.

É este o ponto de partida de "Boa Sorte, Leo Grande", o filme protagonizado por Emma Thompson que chega esta quinta-feira, 29 de setembro, às salas de cinema nacionais. Mas a história de Nancy, embora ficcional, não diverge muito de várias situações que Marta Crawford, sexóloga, já teve à sua frente na prática clínica.

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"Esta mulher quer ter direito a uma série de experiências sexuais que nunca teve, dado que viveu uma vida conjugal sem prazer — e o prazer é tão importante. Mas já vi 'esta' mulher muitas vezes, é muito comum que só apenas numa idade mais avançada e quando perde o parceiro de tantos anos aconteça uma transformação e uma libertação", diz à MAGG a especialista, que foi uma das pessoas escolhidas em Portugal para ter acesso a uma pré -visualização do filme, do qual assume ter gostado muito pela importante mensagem que transmite.

"Fiquei muito agradada por abordar a sexualidade numa idade que, na nossa sociedade, já não é associada ao sexo, que já não há muito a dar ou a receber neste campo, e em que se liga a outros interesses que não os sexuais", refere a terapeuta, que revê no filme e na personagem de Nancy algo de muito realista.

Boa Sorte, Leo Grande
Emma Thompson e Daryl McCormack são os protagonistas deste novo filme. créditos: nick wall

"Vejo estes acontecimentos com muita frequência no contexto da minha prática clínica. Há muitas mulheres que chegam a estas idades e querem perseguir experiências sexuais que nunca tiveram e descobrir o que perderam. Não quero ser spoiler, mas há uma cena no filme que achei particularmente deliciosa, onde a protagonista descreve através da mímica como é que era o sexo com o marido de uma forma tão eficaz, e percebemos que era algo muito mecânico de ele deitar-se por cima dela, ela lá fingia um orgasmo e pronto. E tanto no filme, onde a personagem de Emma Thompson representa uma mulher à procura de prazer depois de o marido morrer, como na realidade, acontece muito ceder aos desejos que ficaram escondidos na vida familiar e despertar para a sexualidade mais tarde quando deixam de ter aquele parceiro. Já vi acontecer muitas vezes", diz Marta Crawford.

A perda do parceiro pode significar libertação?

No caso da história de Nancy, retratada em "Boa Sorte, Leo Grande", só após a morte do marido é que a professora reformada se libertou no campo da sexualidade. Mas é preciso que o companheiro de muitos anos saia de cena e aconteça uma morte ou separação para esta descoberta da própria mulher acontecer?

"Há várias situações", esclarece Marta Crawford, que explica que, principalmente falando de mulheres que começaram uma relação muito jovens e numa idade em que não estavam tão à vontade com o corpo ou não conheciam a sexualidade, "a morte do parceiro ou um divórcio pode ser realmente o mote".

"Há muitas mulheres que acreditam que a sexualidade é um dever. E depois da perda do parceiro, as que têm coragem de procurar ou uma vontade de experimentar, conseguem estar mais libertas porque já não têm os pressupostos da relação passada, para além de terem outra maturidade", enumera a especialista.

Marta Crawford
Marta Crawford é sexóloga e terapeuta créditos: Instagram

Para além disso, Marta Crawford salienta que, numa relação conjugal duradoura, podem existir uma série de equívocos — e alerta que tal não é um exclusivo de pessoas mais velhas, e também casais mais jovens podem sofrer com estes mesmos equívocos.

"É muito difícil falar de algo que não está bem na intimidade, e há relações que nunca foram bem trabalhadas nesse aspeto desde o início. Porque se começou a relação vindo de uma experiência traumática, porque aconteceu algo que não é satisfatório mas depois não se falou disso e agora, passado muito tempo, é ainda mais complicado. E no meio de tudo isso, é muito difícil acontecer uma desvinculação dos pressupostos da relação íntima , os equívocos perduram e levam a que muitas mulheres não lutem pelo prazer."

No entanto, a sexóloga salienta que há relações que podem ser recuperadas. "Tenho vários casais que começaram dessa forma, com muitos equívocos a nível da intimidade, procuraram ajuda terapêutica, resolveram os problemas e alcançaram resultados satisfatórios."

A menopausa já não representa o fim da sexualidade da mulher — muito pelo contrário

Durante décadas, o prazer feminino foi tabu, e falar de sexualidade na meia-idade, um ainda maior. Mas a nossa sociedade já deu passos importantes nos últimos tempos. "Felizmente, já estamos mais à frente", salienta Marta Crawford, que consegue ver uma mudança na forma como se olha para as mulheres e para o sexo depois da menopausa.

"A menopausa era um marco. Um sinal de que aquela mulher já não podia engravidar, por isso perdia interesse em tudo o que tinha que ver com sexualidade. Porque, e durante muito tempo, a sexualidade na mulher era muito associada à reprodução, logo existia uma lógica de 'já não pode engravidar, já não é interessante', o que era das piores coisas de sempre para uma mulher", recorda a terapeuta.

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A especialista consegue ver uma mudança de mentalidades grande nos últimos anos, e assume que atualmente "temos toda uma geração de mulheres acima dos 40 anos maravilhosas, lindas, que falam do seu prazer precisamente para destruir a ideia de que já não são tão interessantes depois da menopausa".

Marta Crawford acrescenta ainda que, após esta mudança no corpo das mulheres, estas até podem estar mais libertas e à vontade dado que já "não têm de se preocupar com menstruações, tampões, perigo de uma gravidez não desejada".

"A sexualidade é um bem muito necessário e o sexo, em situações agradáveis, faz bem a tudo, seja a nível de saúde mental, bem-estar, tudo. E ainda bem que falamos de sexo e de menopausa de uma forma cada vez mais positiva, e realçamos a ideia de que estas mulheres continuam a ter muito poder de despertar interesse a nível sexual", salienta a sexóloga.

"Ainda há muita ignorância na forma como as pessoas interiorizam o que é o sexo"

Apesar das mudanças positivas dos últimos anos, Marta Crawford não tem dúvidas que continuam a existir arestas por limar. "Ainda há muita ignorância na forma como as pessoas interiorizam o que é o sexo. Muita gente liga a relação sexual à penetração e à ereção. É comum para homens mais velhos e que já não conseguem ter uma ereção pensarem coisas como 'já não um homem como deve de ser' e desistirem da intimidade", refere a especialista.

Na sua prática clínica, a especialista já encontrou vários casais que passam por problemas na intimidade, muitos motivados pela ignorância em relação à sexualidade. "Há muita falta de informação em várias fases da vida e uma grande dificuldade em pedir ajuda, seja por vergonha ou por achar que já não há nada a fazer, e existem mesmo pessoas que deixam de ter intimidade devido a estes equívocos. Recolhem-se, acham que já não têm direito."

Boa Sorte, Leo Grande
Emma Thompson dá vida a Nancy, uma viúva que parte em descoberta do seu prazer sexual

É também nessa ótica que a mensagem de "Boa Sorte, Leo Grande" ganha ainda mais importância. "No filme, assistimos a uma personagem contida, mas determinada, que vai à procura do que lhe falta e embarca lentamente numa transformação que a torna numa mulher menos tensa, mais interessante e empática, em que até consegue ganhar uma capacidade crítica em relação a muita coisa do passado. E eu já vi isto acontecer muitas vezes: assim que conseguem resolver problemáticas a nível da sexualidade, as pessoas libertam-se. A muitos níveis", conclui Marta Crawford.

"Boa Sorte, Leo Grande" chega às salas de cinema portuguesas esta quinta-feira, 29 de setembro. Protagonizado por Emma Thompson e Daryl McCormack, estreou-se no Festival de Cinema de Sundance, nos Estados Unidos, em janeiro, onde foi muito bem recebido pela crítica e público.