Entre janeiro e março de 2020 foram vendidas 2.664.414 embalagens de tipo ansiolóticos, sedativos e hipnóticos e 2.262.530 embalagens de antidepressivos. Somando os dois números, o resultado é de 5.277.155. O valor representa mais 433.214 embalagens (quase meio milhão) do que no período homólogo de 2019, ano em que foram vendidos um total de 20 milhões de embalagens deste tipo de medicamentos.

Os números foram avançados pelo Instituto Nacional da Farmácia e Medicamento (INFARMED) ao jornal "Diário de Notícias". O alargado consumo deste tipo de medicamento colocou, no ano anterior, Portugal no quinto lugar dos 29 países que integram a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). Em 2017, um relatório elaborado pelo INFARMED já vinha dizer o mesmo: "[Portugal] é o país da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico] com maior consumo reportado de ansiolíticos, hipnóticos e sedativos", utilizando proporcionalmente mais ansiolíticos que hipnóticos e sedativos". 

As benzodiazepinas, medicamentos tranquilizantes ansióliticos (clonazepam, flunitrazepam, bromazepam, diazepam, flunitrazepam, os dois últimos mais conhecidos como Vallium ou Xanax), configuram o maior problema, tendo mesmo sido consideradas um "risco para a saúde pública", uma vez que, apesar de serem eficazes no tratamento contra a ansiedade e insónias, a sua toma prolongada acarreta um "risco de dependência e habituação num número expressivo de utilizadores, o que dificulta a interrupção do tratamento", diz o INFARMED. A longo prazo, a dependência e consumo abusivo podem deixar marcas a nível cognitivo, podendo provocar confusão mental ou problemas de memória. A suspensão repentina também é perigosa, como acontece com todas as substâncias que criam dependência física.

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"Um dos problemas é o consumo abusivo sem orientação médica que poderá conduzir a tolerância, dependência e sobredosagem que se traduz em sonolência, prostração e lentificação psico-motora. Com o correto acompanhamento médico, esta situação não se verifica", diz a médica psiquiatra Ana Peixinho à MAGG

Por tudo isto, "o consumo destes fármacos deverá ser acompanhado por um médico", explica. "Se assim for, o profissional saberá como prescrever os fármacos em questão, quando iniciar a sua redução e suspensão."

Para Ana Peixinho, há uma razão que explica o aumento na venda destes medicamentos em 2020: "O aumento deve-se à elevada prevalência de depressão e ansiedade na sociedade atual."

E este crescimento não terá necessariamente que ver com a crise de saúde pública que todo o mundo atravessa, uma vez que são números referentes ao primeiro trimestre de 2020, altura em que ainda não tinha sido declarado estado de emergência em Portugal e em que a COVID-19 ainda não tinha sido declarada pandemia pela Organização Mundial de Saúde.

O consumo deste tipo de fármaco só poderá ser feito mediante receita médica e nunca durante um período de tempo longo. Só que há quem consiga contornar esta regra. Tanto Ana Peixinho, como o psicoterapeuta Pedro Brás querem acreditar que as farmácias não disponibilizam aos clientes embalagens de medicamentos desta natureza sem qualquer tipo de aval médico. Mas a automedicação poderá ser um dos grandes problemas.

"Quero acreditar que a venda de psicofármacos sem receita médica não acontece e consequentemente não havendo acesso a estes fármacos a automedicação será difícil", diz a psiquiatra. "No entanto, um paciente que seja acompanhado por várias especialidades pode ir pedindo prescrições terapêuticas a vários médicos acabando por ter um stock considerável de psicofármacos, que vai gerindo mediante a sua necessidade subjetiva."

Pedro Brás aponta uma certa desvalorização nos perigos do consumo destes medicamentos entre a população. “A grande maioria da medicação psiquiátrica é vendida apenas com receita médica, o que existe é uma automedicação excessiva nas doses tomadas e a oferta de medicamentos a familiares e amigos que solicitam porque acham que têm o mesmo problema que os outros."

O psicoterapeuta fala também numa cultura enraizada num País que tende a mascarar sintomas com recurso a medicação, ao invés de se tratar diretamente a raiz do problema, neste caso da ansiedade ou depressão, através de acompanhamento psicoterapêutico.

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"Não há uma cultura de se analisarem os problemas psicológicos e as causas. As pessoas estão habituadas a dormir com medicação em vez de resolverem os problemas que lhes tiram o sono. A ansiedade é um estado de quem tem medo. Todos temos medo, e todos temos de reagir em relação aos medos que temos", diz Pedro Brás. 

Por outro lado, aponta para "uma excessiva facilidade em prescrever medicamentos psiquiátricos", por parte da comunidade médica.

Ana Peixinho discorda. “A psiquiatria é uma especialidade médica que envolve uma capacidade de escuta e empatia que não poderá nunca ser negligenciada", diz. A prescrição de medicação depende da gravidade do estado do paciente: "Numa situação grave de depressão ou ansiedade é fundamental aliviar inicialmente sintomas, o que habitualmente envolve a necessidade de iniciar terapêutica farmacológica, para posteriormente se iniciar um processo psicoterapêutico. O que não significa, de todo, que se facilite o consumo de psicofármacos."

Segundo a psiquiatra, as duas abordagens são importantes e podem, a certo momento, coexistir: "O tratamento da doença mental envolve uma abordagem integrada fármaco e psicoterapêutica." O que, em todo o caso, está sempre sujeito a acompanhamento médico.