Este domingo, 29 de maio, Catarina Gouveia recorreu às redes sociais para anunciar o nascimento da primeira filha. No mesmo dia, o nome da influenciadora integrou os assuntos mais comentados da rede social Twitter, foi mencionado em centenas de publicações e oxigenou um debate entre vários internautas, que se estende até esta terça-feira, 31.

Foto perfeita de Catarina Gouveia após o parto leva a ataques fortes nas redes sociais
Foto perfeita de Catarina Gouveia após o parto leva a ataques fortes nas redes sociais
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No centro da discussão? A suposta imagem de "realidade paralela", segundo alguns utilizadores digitais, em que a influenciadora (alegadamente maquilhada e com o cabelo arranjado) surge com a bebé ao colo, ao lado do marido, Pedro de Melo Guerra, com quem casou a 10 de outubro de 2020. "Talvez ela [Catarina Gouveia] não saiba a quantidade da mulheres que se vão sentir na merda quando estiverem na maternidade", lê-se numa das publicações.

No entanto, a questão não é assim tão linear. Pelo menos, de acordo com Teresa Feijão e Filipa Jardim da Silva, psicólogas clínicas, e Ana Sanches, criadora de conteúdos digitais focados na temática da maternidade.

Uma fotografia é "só" uma fotografia

Ana Sanches, criadora da página Dido & Co, no Instagram, garante que é importante perceber que "as vidas não são 2D", salienta à MAGG.

"Estamos a falar de uma partilha de alguém, que tem toda a legitimidade para mostrar uma imagem que, para ela, representa um momento feliz. Foi isso que vi na fotografia. Extrapolar para 'se este momento feliz representa todos os momentos felizes das mulheres em Portugal' é estarmos a pôr uma pressão e uma responsabilidade sobre esta fotografia que ela não tem", começa por explicar.

"O que vemos numa fotografia não relata como é que as pessoas se estão a sentir ou pelo que estão a passar. Portanto, aquela fotografia pode ter lá dentro muitos sentimentos e muitas realidades para aquela pessoa", frisa.

Filipa Jardim da Silva, psicóloga clínica, completa este ponto de vista e reforça a ideia de que "quando julgamos uma parte e julgamos que essa parte é um todo estamos claramente num raciocínio muito enviesado". Para a especialista, "uma foto, seja ela de uma amiga ou de uma influenciadora, só representa isso mesmo: o momento em que aquela foto foi tirada. Só isso."

"Não está a dizer que a realidade universal é esta, é só a realidade individual dela"

Já a especialista Teresa Feijão explica que uma publicação, por si só, não deve ser "encarada como um problema, porque, se assim fosse, todas a partilhas em geral, da Catarina Gouveia ou de outras pessoas, também o seriam". "Se pensarmos dessa forma, tudo pode ser sujeito a crítica", diz.

"Se partilhasse, sendo mãe, algo mais feio, mais escuro, mais chocante ou mais 'realista', como alguém lhe quer chamar, não era coerente com a imagem que passa. Porque não aquela ser a realidade dela? Vai negar a própria realidade?", questiona.

Neste sentido, também para Filipa Jardim da Silva, o caso tornar-se-ia perigoso, sim, se estivesse implícito, por exemplo na legenda da imagem, que aquela é a única realidade legítima.

"Uma coisa era se eu tivesse uma influenciadora a dizer 'um parto bom é um parto natural' ou 'mãe que é mãe sai do hospital passado dois dias'. Se eu tiver esse tipo de legendas deterministas e absolutas, que vão ditar uma determinada realidade como sendo 'a' realidade que é adequada, positiva e melhor do que as outras, aí tenho uma mensagem que é perigosa. Porque vou estar a fazer com que muita gente se sinta desadequada e inferior", salienta.

"Agora, se tenho uma partilha neutra, independentemente das imagens, que é uma partilha da minha realidade, sem legendas a dizer que 'assim é que é um pós-parto' ou 'assim é que é uma experiência de gravidez', estou apenas a dizer que esta é a minha realidade aqui e agora, e que comigo aconteceu desta maneira. Seja isso no sentido percentualmente mais 'sortudo' e se calhar menos prevalente, ou no sentido em que mais pessoas se identificam", acrescentou, com a ressalva de que nestes casos, podemo-nos identificar menos ou mais enquanto utilizadores do online, mas é importante perceber que "essa pessoa não está a dizer que a realidade universal é esta, é só a realidade individual dela".

"Não existem duas experiências iguais"

De acordo com Filipa Jardim da Silva, quando estamos a criticar realidades individuais – "seja a influenciadora que partilha demasiado do seu parto ou que doura de tudo perfeito" – estamos precisamente a acentuar julgamento e a "dizer que só há uma determinada maneira de ter um bebé e que só há uma determinada realidade aceitável durante a gravidez e no pós-parto". "E isso não é verdade", completa.

"Há espaço para tudo: para uma mulher grávida que pratica exercício horas antes até de ter o bebé; para a mulher que não pode praticar exercício durante a gravidez toda e que está até de repouso absoluto; para a mulher que tem um parto natural fácil, sem dor e sem grandes sequelas, ou para a que teve uma cesariana complicada (...) Até porque, de repente, até posso ter um bebé fácil, engravidar à primeira, ter um parto natural e ao fim de dois dias ir para casa, e ficar muito abalada e a sentir-me muito culpada porque tenho demasiada 'sorte'. E isso também não é saudável nem positivo", frisa.

filipa jardim da silva
filipa jardim da silva Filipa Jardim da Silva é Psicóloga Clínica

A especialista defende que "a comparação é sempre nefasta". E não tem necessariamente de envolver terceiros. A comparação individual, interna e intrínseca, entre experiências passadas ou até mesmo expectativas futuras, consegue revelar-se igualmente prejudicial.

"Porquê? Porque: 1) vai-me desligar da realidade tal como ela é; e 2) porque vai-me criar internamente uma expectativa, que vai estar sempre a toldar o meu raciocínio. E isso coloca-me sempre numa posição de invalidação e de ausência de legitimidade. Isso é penoso, muito penoso", explica.

"Uma mulher que tenha dois filhos não tem que necessariamente ter duas experiências de gravidez, parto e pós-parto iguais. E se essa mulher estiver sistematicamente em comparação de uma segunda gravidez para com a primeira, e no fundo a criticar-se por não estar a viver as coisas como na primeira ou como idealizou viver na segunda, vai estar constantemente em tensão, a acumular ansiedade e um humor que não vai ser o desejável. E isso vai ter uma fatura em termos de bem-estar global", acrescenta.

Também há "filtros" na vida real

Filipa Jardim da Silva admite que vivemos um período pautado por movimentos polarizados. E depois da tendência de utilização de Photoshop, "às vezes em exagero", surgiu uma outra tendência complementar, que, entretanto, também se polarizou, em que se assiste a uma procura pela imperfeição e alegada "ausência de filtros".

Às vezes sem a perceção de que também são vários os filtros que existem no mundo real e presencial. "Quando uma pessoa está maquilhada, quando estamos com uma pessoa que está a projetar um humor que é diferente da forma como se sente ou até quando estamos com alguém que se veste de determinada maneira para ocultar determinadas partes do corpo", explica, acrescentando que "não podemos exigir daquilo que é um mundo virtual aquilo que temos na realidade".

"Quando alguém critica a influenciadora X a dizer 'eu não me vejo representada nesta partilha e sinto que isto é nefasto para as mulheres'; se calhar, sem querer, essa pessoa pode estar a contribuir mais para essa não aceitação da diversidade do que aquilo que possa estar a pensar", completa.

Neste sentido, Teresa Feijão explica que, muitas das vezes, críticas advêm de fragilidades internas. "É muito mais fácil criticar. E alivia, para algumas pessoas. É uma forma de não ter de enfrentar as próprias fragilidades. E então ao criticar o outro – e isto é válido para tudo – por detrás daquela crítica, muitas vezes ou na maior parte delas, está a própria fragilidade de quem a faz”, explica.

Teresa Feijão
Teresa Feijão Teresa Feijão é Psicóloga Clínica, especializada em Coaching Psicológico.

"Na doença mental, todos os rostos encaixam"

Partindo do pressuposto de que "cada pessoa é uma pessoa em termos mentais" e que é impossível definir prazos para os primeiros sinais de depressão pós-parto ou para o arranque dos chamados baby blues, uma fase tendencialmente "mais depressiva", Teresa Feijão explica que esta última está intimamente relacionada não só com a oscilação hormonal que surge após o parto, mas com uma série de mudanças que acontecem na vida da mulher a partir daquele momento: físicas, psicológicas e até mesmo logísticas.

"Uma depressão pós-parto pode surgir umas boas semanas depois, por incrível que pareça. É uma boa forma de distinguir dos chamados baby blues, que são muito frequentes. Por causa de todas as oscilações hormonais e de toda essa mudança", diz. "Conselhos? Não deixar de investir nelas [mulheres]. Ter atitudes, comportamentos e verbalizações positivas. E também é muito importante ter pessoas à volta que as apoiem", completa.

Ainda no que à doença mental diz respeito, Filipa Jardim da Silva garante que, não só na maternidade, mas no panorama geral, "vale a pena perceber que na doença mental todos os rostos encaixam, seja um rosto a rir ou a chorar".

"Continua a acreditar-se que a depressão só tem um rosto e que é um rosto triste. Uma mulher aparentemente sorridente não tem de ser uma mulher que está isenta de um risco de depressão ou ansiedade pós-parto. E é importante considerarmos isso. Da mesma forma que uma mulher que tem um bebé saudável não está isenta de desenvolver uma doença psicológica no pós-parto. Não está isenta de ter momentos de maior vulnerabilidade", explica.

Para finalizar, Filipa Jardim da Silva sintetiza a questão, e explica qual a melhor forma de evitar polémicas e ataque pessoais deste teor e expõe aquele que é o seu desejo, perante episódios deste género, enquanto profissional de saúde.

"Gostava de que nós todos pudéssemos olhar para as partilhas virtuais tal como olhamos para as experiências da vida. Com esta curiosidade e com respeito pela diferença. Se me identifico, muito bem, vou consumir mais, ler mais ou perguntar mais. Mas se não me identifico, tudo bem também, tomo nota de que não me identifico e vou procurar um outro conteúdo com que me identifique mais. Focando no exercício do que é que, aqui e agora, me serve mais. E não tanto a perder tanta energia e a julgar, especular e criticar", remata.