Apesar de publicamente manterem a cordialidade, nos bastidores corria um verdadeiro duelo de titãs. Joan Crawford, iniciou a sua carreira nos anos 30, quando ainda a tela era muda. Tinha a beleza, a sedução de uma estrela de cinema, tornou-se genial com o esforço e trabalho. Bette Davis era uma mulher de armas, que não se vergava à vontade dos estúdios. Começou no teatro, passando depois para o cinema. Com um rosto que fugia aos padrões comuns, o seu talento natural não deixava ninguém indiferente. A primeira tinha um Óscar pela interpretação em "Mildred Pierce", a segunda tinha conquistado dois pelos papéis em "Jezebel" e "Dangerous".

Apesar de só quatro anos separarem as suas idades, foi já no final das carreiras que tiveram a oportunidade de contracenar no filme que veio a ser um sucesso com cinco nomeações para os ÓscaresWhatever Happened to Baby Jane?”.

bette and joan

É essa a história narrada na série realizada por Ryan Murphy‎, que no início de março chegou à HBO. Em "Feud: Bette and Joan" vemos as gigantes Jessica Lange e Susan Sarandon na pele das estrelas Crawford e Davis, respetivamente, e acompanhamos os momentos que marcaram aquela que ficou conhecida como uma das maiores rivalidades de sempre nos tempos da glamourosa Hollywood dos anos 60: as discussões na rodagem, as intrigas lançadas para a imprensa, os jogos de manipulação.

E também os medos e as inseguranças. É que em "Feud: Bette and Joan" conseguimos sentir o peso da idade: as mulheres queriam-se (ou querem-se) novas e bonitas, queriam-se (ou querem-se) atraentes e sedutoras, porque só assim os números nas bilheteiras disparavam. Mas não, tal como provou a dupla. Quando poucos acreditaram que o sucesso poderia nascer numa história que reune duas mulheres à beira dos 60, elas provaram: o talento não foge com os anos e é à prova de rugas.

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A propósito da série, reunimos (muitos) factos e (poucos) mitos em torno do novo sucesso da HBO. Se já viu a série, conheça-os. Se não viu, guarde este artigo para depois. É que, pode considerar-se, tem spoilers.

Ficção. O documentário com Havilland e Blondel não é real

Catherine Zeta-Jones e Kathy Bates interpretam as atrizes Olivia de Havilland e Joan Blondel, respetivamente, que surgem quase como as narradoras da história de rivalidade entre as duas estrelas: aparecem a dar uma entrevista para um alegado documentário que está a ser feito sobre Crawford. A verdade é que não há registo deste filme ter sido produzido.

Facto/ficção. O comentário a Marilyn Monroe

No início da série vemos Crawford a comentar o decote de atriz Marilyn Monroe, depois de uma suposta cerimónia dos Globos de Ouro. Embora o comentário seja real, há dois pontos que não estão corretos: este foi proferido depois de um jantar da Photoplay ao jornalista Bob Thomas (e não a Hedda Hopper, figura constante na série, aqui interpretada por Judy Davis).

“Foi a exibição mais chocante de mau gosto que já vi. Olha, não há nada de errado com as minhas mamas, mas eu não ando por ai a atirá-las à cara das pessoas”, terá dito Crawford sobre Monroe.

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Facto. Mamacita existiu mesmo

Mamacita (interpretada por Jackie Hoffman), o braço direito de Joan Crawford, existiu mesmo. Chamava-se Anne Marie Brinke e foi contratada pela atriz no início dos anos 60. Não era espanhola, mas sim alemã. A alcunha surgiu logo que as duas se conheceram: Crawford telefonou à mulher e, como não se lembrava do seu nome e tinha acabado de regressar de uma viagem ao Rio de Janeiro, no Brasil, apelidou-a de “mamacita”, explicou na biografia publicada nos anos 70 "My Way of Life".

Quando aos motivos que a levaram a despedir-se, em meados da mesma década, há duas versões: segundo o que a atriz escreveu na biografia, Brinkle voltou para a Alemanha para resolver uma crise familiar; mas, segundo o filho da assistente, terá sido porque estava cansada que Crawford lhe atirasse coisas à cabeça, a opção preferida de Murphy.

Facto. As mobílias de Crawford protegidas com plástico

Vimos, estranhamos, mas pensámos que eram tendências da época. Mas não. É mesmo verdade: a estrela tinha mesmo uma aversão à sujidade e vermes. “Sempre fui uma maluca com as limpezas. Quando eu era miúda passava a vida a esfregar os quartos das casas e apartamentos sujos em que a minha mãe e o marido dela viviam.”

Facto. Crawford desenvolveu mesmo um problema com o álcool

Na biografia “Joan Crawford: The Essential Biography”, dos autores Lawrence J. Quirk e William Schoell, ficamos a saber que a atriz desenvolveu mesmo um problema com a bebida e que até chegava a carregar na carteira uma garrafa com álcool.

“Para aliviar a solidão e o tormento, Joan continuou a beliscar a sua amada vodca durante as tardes e noites, e em raras ocasiões isso a afetou negativamente... A maioria das suas amigas concordava que ela usava álcool para vários propósitos, mas que isso raramente a prejudicava. Exceto na rara ocasião embaraçosa, Joan sempre foi perfeitamente capaz de funcionar. "

Na sua preparação para a personagem, relata a "Vanity Fair", que Jessica Lange encontrou uma citação de Joan que resume bem a sua adição: “O alcoolismo é um risco ocupacional de se ser ator, viúva e ou de se estar sozinho. E eu sou os três."

Facto. Foi mesmo Crawford que teve a ideia do filme “Whatever Happened to Baby Jane?”

Na série, a idealização do filme baseado no livro “Whatever Happened to Baby Jane?” nasce da mente da atriz Joan Crawford, que propõe o trabalho ao realizador Robert Aldrich, tendo também sugerido que Davis fosse incluída no elenco. Porém, pela altura Davis terá dito que já tinha lido o livro e proposto o mesmo filme ao realizador Alfred Hitchcock. Anos depois, admitiu que a primeira versão é a correta — e que, inclusivamente, Crawford a visitou depois de uma performance na Broadway, como se vê na série.

Facto. Crawford sempre quis trabalhar com Davis, como é sugerido na série.

“Kate Hepburn e Bette Davis estão no topo da lista que eu admiro, porque são muito talentosas, obstinadas e indestrutíveis. A Bette consegue ser uma cabra, mas ela é muito dedicada e honesta”, disse na sua biografia.

Facto. Foi um filme difícil de financiar

Como se mostra na série, o realizador Bob Aldrich teve dificuldades em arranjar financiamento para “Whatever Happened to Baby Jane?”, o filme que viria a ter cinco nomeações na cerimónia dos Óscares. “Quatro dos maiores estúdios recusaram-se a ler o guião e pensar num orçamento”, disse Aldrich ao New York Times. “Três distribuidoras leram o guião e viram o orçamento e rejeitaram o projeto. Duas delas disseram que estariam interessadas se incluísse no elenco mulheres mais novas.”

Facto. Jack Warner era mesmo uma besta

Apesar de Jack Warner (interpretado por Stanley Tucci), o homem que mandava nos estúdios da Warner Bros, ter aceite financiar o filme, a postura face às participações de Crawford e Davis era aquela que é retratada: “Não daria um centavo por nenhuma daquelas mulheres velhas”, disse sobre “Whatever Happened to Baby Jane”, segundo Davis, citada pelo “E News”.

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Ficção. A máquina da Pepsi no estúdio

Apesar de Crawford ter sido mesmo casada com o executivo da Pepsi Alfred Steele e de ter promovido a bebida, foi apenas Davis quem instalou uma máquina de Coca-Cola na rodagem do filme.

Facto. Foi mesmo Davis a fazer a sua maquilhagem

Como se vê na série, foi mesmo Davis que fez a sua maquilhagem no filme Baby Jane. “Nenhum profissional homem de maquilhagem teria coragem para pôr em mim a maquilhagem que eu tinha idealizado. Um deles disse-me que tinha medo de nunca mais trabalhar, caso fizesse aquilo que eu lhe pedia.”

Facto. Crawford queria sempre parecer bonita — mesmo quando não era suposto

Crawford interpretava a personagem Blanche no filme da Baby Jane, uma mulher infeliz e presa num quarto e a numa cadeira de rodas há décadas. Mesmo assim, queria sempre parecer bonita e bem arranjada. “Foi uma constante batalha fazer com que ela não parecesse demasiado bonita”, escreveu Davis. “Ela queria o cabelo bem arranjado, uns vestidos bonitos e as unhas com verniz vermelho. Para o papel de uma mulher inválida que está presa num quarto há 20 anos, ela queria estar atraente. Ela estava errada.”

Facto. Davis deu mesmo um pontapé a Crawford na rodagem de uma cena

Numa das cenas que as duas atrizes contracenavam juntas, a personagem de Davis agride aquela que Crawford está a interpretar. Só que foi longe de mais, como se vê na série de Murphy. Bette terá mesmo dado um pontapé desnecessário à atriz, como resultado da tensão entre ambas, reporta o “Romper”.

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Facto. A campanha anti-Óscares

A campanha anti-Óscares que Crawford levou a cabo na sequência de Davis ter sido nomeada na categoria de Melhor Atriz, em 1963, foi real. “Quando a senhora Crawford soube que não tinha sido nomeada, ela imediatamente fez com que fosse chamada para apresentar o prémio na categoria de Melhor Realizador. Ela voou para Nova Iorque e fez campanha contra mim. Também ligou aos outros nomeados e disse-lhes que receberia os seus prémios se estes não pudessem estar presentes na cerimónia”, disse citada por Shaun Considine no livro “Bette & Joan: The Divine Feud.”

Foi isso que acabou por acontecer: na cerimónia apresentada por Frank Sinatra, Davis não ganhou (e não bateu o record de primeira atriz a reunir três troféus) e foi Crawford a subir ao palco e a receber o Óscar pela atriz Anne Bancroft.

https://www.youtube.com/watch?v=eqjO39TX5RY&feature=emb_title

Facto. Crawford ligou mesmo a Geraldine Duke

No mesmo livro, Geraldine Duke (interpretada por Sarah Pulson) confirmou que recebeu a chamada de Crawford: “Recebi uma linda nota de parabéns de Miss Crawford”, disse Duke. “Depois ela ligou-me. Fiquei sem palavras, muito intimidada por falar com ela. Para mim, ela era o epíteto de uma estrela de cinema. Sempre adorei os filmes dela… Tudo o que conseguia dizer era: ‘Sim, Miss Crawford. Não, Miss Crawford.’ Quando ela mencionou aceitar o Óscar por mim, caso eu ganhasse, disse que sim. Na verdade, senti-me aliviada. Aquilo significava que não teria de voar até à Califórnia ou passar muito tempo a escolher um vestido novo para usar. Fiquei feliz e honrada por ter Joan Crawford a fazer isso tudo por mim.”

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Facto. A festa privada de Crawford nos Óscares

Crawford transformou mesmo uma das principais salas dos bastidores dos Óscares no espaço para a sua festa privada, com bebida, comida e uma televisão para ver a cerimónia em tempo real. “Ela tinha um bar cheio de Pepsi, de whiskey, vodca, gin, champanhe — e ainda mais quatro tipos de queijo”, diz a “Vanity Fair”.

Facto. Crawford vestiu-se mesmo de prateado.

Na série vemos todos os preparativos para a cerimónia dos Óscares: as jóias, o vestido, os maquilhados e cabeleireiros a chegarem à mansão da estrela de Hollywood. “Enquanto Page se preocupava em encontrar o vestido perfeito, Crawford se deliciava em se vestir para a ocasião, usando um vestido de prata projetado por Edith Head, diamantes Van Cleef e Arpels, e pó de prata polvilhado em seus cabelos encaracolados. Davis”, conta a “Vanity Fair” .

Facto. Davis fez mesmo bullying a Crawford no filme “Hush… Hush, Sweet Charlotte”

Talvez o facto de Crawford ter sido colocada num quarto ao lado do lixo seja exagero, mas houve mesmo uma vingança na rodagem do filme que iria colocar as duas atrizes no mesmo elenco. Ressentida com a humilhação dos Óscares, Davis não foi propriamente uma boa colega: ao conseguir um lugar na produção do filme, a atriz fez a vida negra à colega. É, pelo menos, o que diz a biografia “Joan Crawford: The Essential Biography”. “Ela quis pôr a Joan maluca e quase o conseguiu.”

Isto acontecia de várias formas. A produção da HBO vai ao encontro daquilo que foi escrito neste livro: “Ela punha-se ao lado do realizador Aldrich quando estavam a rodar as cenas da Joan e fazia comentários altos e negativos”, dizem os autores. “Davis também coordenava encontros de grupo, jantares do elenco e da equipa, assim como atividades fora dos horários, em que convidava toda a gente, menos a Joan”, diz outro artigo da “Variety”.

“Davi fazia questão que toda a gente, incluido jornalistas e visitantes do set soubessem que Joan tinha mesmo 60 anos.”

Facto. Joan Crawford soube que ia ser substituída no filme pela rádio

Acontece nos momentos finais do último episódio da série e representa uma espécie de termino de carreira para Joan Crawford. Depois de alterações no guião terem-lhe sido negadas, a atriz internou-se num hospital, alegando que estava com problemas de saúde. O objetivo era que a despedissem e que o filme fosse um fracasso. Aldrich insistiu para a atriz regressasse à rodagem, mas sem resultado. Davis controlou a situação e fez com que o realizador voasse até á Suíça para convencer a atriz Olivia de Havilland — já tinha ganho dois Óscares — a substituir Crawford.

Teve sucesso na missão. Numa cama do Cedar Sinai, Joan soube da notícia, que havia sido comunicada (propositadamente) à imprensa por Davis. “Soube da notícia da minha substituição pela rádio, deitada numa cama de hospital”, disse Joan ao “Hollywood Reporter”.