Três temporadas e 122 episódios depois, estreou-se esta segunda-feira, 14 de setembro, o novo capítulo de "Golpe de Sorte" na SIC. As personagens principais mantém-se as mesmas, com Maria João Abreu a regressar para dar vida a Maria do Céu Garcia. Esta é uma mulher que foi capaz de pôr a vila fictícia de Alvorinha no mapa depois de ganhar o euromilhões.

Na nova temporada da novela, voltaram as intrigas, os dramas familiares e os momentos de alta tensão — coisa que "Golpe de Sorte" parece ter alguma dificuldade em capitalizar, tal são os momentos em que o drama parece não ter propósito a não ser existir só porque a cena precisa de um momento forte depois de outro mais ligeiro.

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Pelo meio, houve clichés, problemas de realização do mais amador possível e Pedro Barroso a fazer o mesmo papel a que já nos habituou, ou seja, um misto entre criminoso vagabundo e beto de Cascais.

Mostramos-lhe o bom, o mau e o assim-assim da nova temporada de "Golpe de Sorte".

O bom

Já não temos medo de palavrões em horário nobre

De repente, termos como "cabrão" e "merda" passaram a ser aceites em horário nobre da televisão. Sou a favor, até porque sou acérrimo utilizador de ambos em variadíssimos contextos. Fora de brincadeiras, mantenho que a ficção não tem que copiar a realidade para seja interessante. Basta, claro, que faça sentido.

Mas a verdade é que, em momentos de grandes exaltações, já todos soltámos um ou outro palavrão mais ou menos obsceno. E, por isso, não há que ter medo de os incluir na ficção.

No meio de tanta coisa horrível que se vê diariamente nas redes sociais e até mesmo na televisão, querem mesmo convencer-me de que não podemos ter palavrões em séries, novelas ou filmes? Sob que pretexto?

Venham os palavrões. Daqueles feios e asquerosos.

O positivismo na era da COVID-19

Chamem-me lamechas. Em plena pandemia, há algum conforto em ver uma mensagem positiva a ser veiculada em direto. No primeiro episódio da quarta temporada de "Golpe de Sorte", esta foi protagonizada pela personagem de Jorge Corrula na instituição de apoio a jovens desfavorecidos. O diretor-executivo da instituição é, segundo uma das personagens que o apresenta, "o exemplo vivo de que todos somos capazes de mudar o nosso rumo se dermos o nosso melhor".

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O percurso daquela personagem justifica esta descrição: antes um vigarista e agora um CEO respeitado, a personagem de Jorge Corrula esteve preso durante muito tempo e em conluio com um criminoso de alto calibre que o manipulava a envolver-se em surtos e outros delitos.

Não importa que, uma vez em liberdade, esse criminoso agora venha atrás dele para se vingar depois de este o ter denunciado às autoridades. Afinal, é isso que nos dá vontade de continuar a ver estes dilemas a desenrolar-se.

O mau

O atropelamento pareceu um episódio de "Oliver e Benji"

Correndo o risco de o leitor não perceber a referência, permita-me que a explique. Nos desenhos animados japoneses "Oliver e Benji", sobre uma equipa de futebol japonesa, tornou-se icónico o facto de os jogadores demorarem quase um episódio inteiro de 30 minutos para percorrer um campo de futebol de uma ponta à outra.

"Porque é que isto é relevante?", poderá estar a perguntar-se. É que a cena inicial do primeiro episódio da nova temporada de "Golpe de Sorte" começa precisamente com o atropelamento de um miúdo que, de repente, atravessa a estrada a correr. Mas antes de o carro colidir contra ele, há um compasso de espera que não tem outra explicação a não ser a criação de um momento pseudo-dramático.

Mas o momento vive por si só e não precisa de arrastamento na imagem para nos convencer de que, sim, vai doer ver aquele carro a rebentar as pernas do miúdo. Erro amador de realização que não se compreende.

Depois do atropelamento, a resolução aleatória

Após o embate, descobre-se que o responsável é um dos fornecedores de Maria do Céu. Este, em pânico, faz várias chamadas para a mulher, que não atende. Depois liga para o marido, interpretado por José Raposo. No meio de tantas chamadas não atendidas, a personagem de José Raposo desvaloriza, alegando que se fosse realmente urgente, teria enviado mensagem.

Oi, como disse? Amigo, um dos seus fornecedores acabou de encher o telemóvel da sua mulher, e o seu, de chamadas. Se não fosse urgente, provavelmente enviaria um e-mail. Ou um cartinha pelo CTT, que estão cada vez mais atrasados em tempos de pandemia.

Bom, mas adiante. Feito o aviso, o choque e as perguntas: "Mas como aconteceu?" e "Está tudo bem?". Várias cenas à frente, a resolução completamente aleatória e que nos deixa a pensar que aquela cena não teve qualquer propósito. Maria do Céu é avisada, por telefone, de que o jovem já está no hospital e esta assegura-se de que todas as despesas médicas serão pagas.

Pronto, é isto. Fez sentido? Não. Teve algum propósito? Duvidamos.

Os atores que não funcionam

João Paulo Rodrigues pode ser um excelente apresentador, entertainer e até humorista. Mas não é ator. Prova disso, aliás, é que a sua personagem não passa de um repescar das personagens que encarnou nos seus espetáculos ao vivo enquanto comediante. Já lhe conhecemos os maneirismos, o riso e as maneira familiar com que fala para puxar pela comicidade da sua figura.

A culpa não é dele, que, acredito, terá tido muito gosto em experimentar coisas novas. É de quem acha que isso é suficiente para um papel — seja ele principal ou secundário.

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Da mesma forma, Pedro Barroso está igual a si próprio num registo que já lhe conhecemos há alguns anos. É o típico bad boy vagabundo sem escrúpulos de roupa rasgada que, em contrapartida, tem uma barba e um cabelo arranjadinho tipo beto de Cascais — daqueles que dizem "que seria" e outras coisas semelhantes. Aqui volta a ser o vilão assustador, líder de um grupo de jovens desfavorecidos que precisa de cometer pequenos delitos para sobreviver.

E ainda que dê corpo e alma a uma personagem detestável (estamos a falar de alguém que deita um bebé no lixo logo no primeiro episódio), tudo parece demasiado forçado e fabricado.

O assim-assim

Os jovens desfavorecidos empurrados a uma vida de crime

Ainda que Pedro Barroso não funcione naquele registo (são opiniões, senhores!), o grupo que este lidera foi um dos pontos mais interessantes da estreia. Trata-se de um grupo de adolescentes que, pelos seus contextos, foram empurrados para uma vida indigna e nas ruas. Uma delas é Laura que, tendo sido abandonada pela mãe em pequena, quer, agora grávida, dar o exemplo e ser a mãe presente que nunca teve e sempre desejou.

Em contrapartida, o namorado, e presumível pai da criança, é um ladrão que tem de roubar pequenos negócios para que o grupo tenha como sobreviver. Apesar da vida de crime a que foi sujeito, tem um sonho: ser, tal como Fábio Coentrão, um grande jogador de futebol.

"A minha cena é ultrapassar as adversidades e vencer na vida", diz ele à namorada. E ainda que seja um criminoso, isso faz-nos torcer por ele. Porque nos identificamos com quem, assumindo as suas falhas, quer e tentar fazer mais e melhor.

A cena do assalto

A cena do assalto protagonizado por dois jovens (um deles o namorado de Laura) é estranho. Em primeiro lugar, porque parece correr bem, mas, de repente, já envolve polícia sem que haja uma qualquer contextualização pelo meio.

Mas vamos assumir que, possivelmente, esse contexto foi cortado por questões de orçamento. Em segundo lugar, trata-se de uma cena que aparenta não ter qualquer propósito uma vez que, até ao final do episódio, não tem uma consequência real. Houve um assalto, a polícia tentou persegui-los e eles conseguiram fugir.

Apesar disso, foi um dos momentos mais emocionantes num episódio que esteve sempre a meio gás. Talvez por isso tenha valido a pena.