Passamos quase dois terços da nossa vida a trabalhar. Durante todos estes anos, queixamo-nos sempre de alguma coisa, independentemente de gostarmos ou não daquilo que fazemos. É que a repetição da rotina aborrece e faz-nos pensar nos sonhos que não estamos a concretizar. Acordar cedo custa, as responsabilidades inerentes aos empregos causam stresse, lidar com o superiores pode ser frustrante. A ideia de um dia deixar, definitivamente, de dar entrada no escritório é como que um oásis distante, um pontinho muito pequeno, perdido no meio de um deserto gigante.
Mas o tempo passa. E tanto se caminha, que ele se vai aproximando. De repente, é real. A reforma chegou e vem o misto de emoções. Que bom que o despertador não tocou. Mas o que é que faço ao meu dia? E amanhã? E depois? É que a força dos hábitos não desaparece na mesma velocidade repentina. Depois, há os amigos e colegas que se deixam nos locais de trabalho. Há a necessidade de se encher todo aquele tempo. É como ter uma folha em branco à frente. Por que risco é que se começa? Que forma é que vamos dar ao desenho? Que cores é que lhe vamos dar?
“Levantei-me mais tarde, tomei café com o meu marido e fiquei assim bastante tempo sentada a ver o que é que ia fazer. Não sabia o que fazer”
A primeira manhã em que o despertador não toca é sempre estranha. “Não me levantei cedo, mas era como se fosse só um dia em que não ia ao trabalho. Ainda não havia a ideia de que estava reformado, de que não ia mais trabalhar”, relembra à MAGG Alberto Cerqueira, 60 anos. Natural de Ponte da Barca, reformou-se do banco há quatro anos, aos 56 anos. É que ele não era particularmente feliz no que fazia e conseguiu negociar uma boa saída para se dedicar apenas a si.
Ana Ferreira, 63 anos, natural de Montalegre e residente em Braga, era professora de Educação Visual e Tecnológica e reformou-se antecipadamente há três anos devido a um problema na visão. Relata o mesmo sentimento de estranheza: “Levantei-me mais tarde, tomei café com o meu marido e fiquei assim bastante tempo sentada a ver o que é que ia fazer. Não sabia o que fazer. Nem acreditava. Foram uns tempos difíceis, até porque não foi por decisão minha, foi porque, de repente, teve de ser.”
Apesar de décadas ao serviço tornarem o descanso mais do que merecido, somos seres de hábitos. Durante toda a vida, habituamo-nos a trabalhar e a desempenhar funções para uma empresa, para uma instituição, para a sociedade. Quando, de repente, isto acaba, nasce uma espécie de sensação de vazio, de perda de utilidade, como explica Ana Ferreira. “Um dos maiores problemas associados à reforma é a perda do sentimento utilidade. Eu às vezes dizia a uma amiga: 'Eu sinto-me uma inútil’”.
Esta crença não deve ser alimentada, sob o risco de a saúde mental ficar afetada. “Manter a crença de que se é um inútil, de que já não se é válido por ter uma idade avançada, caso não mantenham amizades ou um contexto social favorável e disponível, poderá dar lugar à tristeza, isolamento e depressão", explica a psicóloga Silvia Botelho.
É preciso é contrariá-la. E é para aí que seguimos.
“Foram dois ou três meses em que sai de casa e não sabia para aonde ir”
A ritmos distintos, essa sensação de inutilidade vai-se dissipando. Mas não é ao acaso — tem de se fazer por isso. Hoje, Ana Ferreira não só está habituada, como se sente contente com os novos contornos da sua vida. Os primeiros tempos, diz Alberto Cerqueira, é que são duros, como acontece sempre que se atravessa a estranheza da adaptação. Embora haja a vantagem de se dormir e acordar quando se quer, há decisões a tomar sobre o tempo em que se está acordado. E é aí que reside a maior dificuldade.
“Foram dois ou três meses em que saí de casa e não sabia para aonde ir, o que fazer. Sinceramente, foram dias de que nem gosto de recordar”, conta Ana Ferreira.
“O primeiro ano foi o ano mais difícil. Nós dizemos que queremos ir para casa, que estamos fartos do trabalho e, de repente, ainda com muito tempo de vida útil, temos de encontrar alguma coisa para fazer", explica o minhoto.
Alberto Cerqueira não perdeu muito tempo. Decidiu que iria dedicar os primeiros meses da reforma a cuidar da sua saúde física. “Comecei por tratar do meu físico. Ia ao ginásio, corria, andava, passeava."
Só que depois percebeu que não bastava. E não foi de modas: meteu-se em burocracias, entregou-se a obras de readaptação e transformou o andar principal da sua casa num alojamento local. Há três anos que recebe hóspedes, sempre entre maio e outubro. Tem muito com que se ocupar e tira prazer disso: “Tenho de gerir as reservas, fazer a recepção dos hóspedes, trato das limpezas, com ou sem ajuda, levo os clientes a passear de jipe, porque estamos aqui perto do Gerês.”
Desta forma, matam-se dois problemas de uma só vez: Alberto tem uma nova ocupação, que lhe traz retorno financeiro e um propósito, ao mesmo tempo conhece caras novas — tanto que, para receber a clientela estrangeira, se pôs a aprender inglês. "O alojamento ocupa-me e faz de mim uma nova pessoa. É um projeto financeiramente agradável e que me ocupa mentalmente.”
Esta vontade de comunicar é outro ponto importante. Não raras vezes, a rotina do trabalho acaba por criar um afastamento do núcleo de amigos mais antigo. Ao mesmo tempo, aqueles que no emprego eram os nossos companheiros de todos os dias ainda estão entregues às obrigações de trabalho. Por isso, a reforma também pode representar algum isolamento, que tem de ser combatido. A proatividade é, na realidade, uma postura fundamental para que se ultrapassem as vicissitudes deste admirável e bizarro mundo novo.
“Com os anos, deixamos de ter tanto contacto com as pessoas. Quando nos reformamos, temos de procurá-las, ir ter com os nossos amigos e acabamos por passar mais tempo com a família”, explica. “Se não formos procurar as pessoas, nem que seja no café, passamos um dia sem falar com ninguém. Faz-nos mentalmente bem conviver com outras pessoas, por isso temos de arranjar forma de o fazer.”
A psicóloga diz o mesmo: além de atividades individuais (hobbies em casa, estar na internet, ler um livro, ver um filme), e do exercício físico, é fundamental apostar numa vida social para manter a saúde psicológica. "É importante relacionarmo-nos com outras pessoas."
E, apesar de já não existir a imposição de horários de antes, alguma disciplina é indispensável ao bem-estar, como também explica Silvia Botelho. ”É importante criar uma nova rotina, um horário pessoal flexível, mas existente, para que se sintam bem e úteis. Por exemplo: apesar de se saber que a partir desta altura se pode comer às horas que quiser, e acordar quando bem lhe apetecer, convém continuar a cuidar de si e estruturar o dia, manter um horário para dormir e alimentar-se bem."
Já tem o seu alojamento local e já se passaram quatro anos desde que saiu do banco. Mas Alberto ainda se está a adaptar à mudança radical de vida, porque não há um dia que separe o período de adaptação daquele em que já se está adaptado. O caminho é feito de nuances, como acontece sempre que se atravessam tempos de mudanças radicais.
“É uma fase na vida que pressupõe ajustamentos e mudanças mais ou menos substanciais na vida da pessoa. Esta reorganização pode ser por vezes motivo de stresse. Influência bastante a capacidade que as pessoas terão de se ajustar a novas forma de estar", diz Silvia Botelho.
A altura mais difícil para Alberto Cerqueira é o inverno. É que para esta estação ainda não tem uma fórmula tão bem pensada como aquela que arranjou para os períodos do sol e do calor. O alojamento local não funciona nesta época, porque há frio, chuva e pouca procura para a zona do Minho. Por isso, entre novembro e abril, muda-se de volta para o seu primeiro andar. E vai estabelecendo objetivos novos, um dia de cada vez.
O importante, explica, é sair de casa. “Vou passeando, vou a Lisboa ver a minha filha, pego no carro e dou voltas pela zona, vou ao ginásio, corro. Tento ocupar-me com isso.”
"As pessoas devem pensar nelas. Hoje trato mais de mim do que tratava antes tratava”
Com Ana Ferreira foi diferente. Se no início perdia grande parte do seu tempo a pensar naquilo que ia fazer (acabando por não fazer nada, diz-nos), passados três anos desde que se reformou já tem as suas rotinas bem delineadas. Fê-lo num espaço de meses, o tempo necessário para lhe passar o tal choque inicial.
E, tal como Alberto, cumpre os conselhos deixados por Sílvia Botelho. “Faço caminhadas de manhã e de tarde, pelo menos durante uma hora. Como gosto muito de estar em casa, faço limpezas profundas, estou no jardim. Também passeio muito com o meu marido, janto, almoço e tomo café de manhã e de tarde, com as minhas amigas e antigas colegas, que ainda me pedem conselhos. Gosto de estar por dentro dos assunto”, relata. “E estou muito satisfeita.”
A quem se acabou de reformar, a professora de Braga deixa um conselho: “Devemos apostar mais tempo em nós. As pessoas devem pensar nelas. Hoje trato mais de mim do que antes”, diz.
E remata: “Quem ainda tiver saúde, deve manter-se ativo, fazer algo que o faça sentir-se útil, mesmo depois da reforma. O voluntariado é uma opção”. Depois desta sugestão, a professora conta-nos que tem o hábito de ligar à mãe de uma amiga que está num lar, para a convidar para ir dar passeios na rua. Mas que já não o faz há algum tempo. “Olhe, vou agora fazer a minha caminhada e vou telefonar-lhe”.
"Faça isso", sugerimos. E desligamos o telefone.
“Estou mais feliz agora do que estava aos 40 anos”
Apesar de tudo, Alberto Cerqueira salienta que está substancialmente mais satisfeito com a sua vida agora do que estava antes. Trata de si, passeia, conhece pessoas novas, sem ter de cumprir os horários exigentes ou dar resposta a ordens de superiores. Afinal, estava cansado do banco e por isso é que resolveu reformar-me mais cedo.
Para Manuela Velez a felicidade da nova etapa foi praticamente instantânea. No primeiro dia em que acordou reformada, assustou-se com as horas, porque achou que estava atrasada. Depois, percebeu que podia dormir mais, que podia fazer o que quisesse. “Passei o dia a planar, completamente espantada pelo facto de não ter de ir trabalhar.”
Antes disto, foi ao longo de 30 anos administrativa de um banco de Lisboa. Gostava muito dos colegas, mas já estava exausta daquele ambiente “doentio”.
"Passei o dia a planar, completamente espantada pelo facto de não ter de ir trabalhar.”
“Os primeiros dez a 15 anos foram agradáveis, porque não tinham a voracidade dos tempos de hoje”, diz a alentejana de 57 anos, numa alusão ao seu emprego. “Nos últimos tempos, eu andava a desmaiar de stresse. Tive de meter uma baixa.”
Reformada há um ano, já tinha o seu hobbie (ligado ao artesanato) bem definido. Entretanto, transformou-o num negócio, que a mantém "ocupadíssima." As encomendas preenchem-lhe tempo, mas sem horários rígidos e a pressão das metas. Sobram-lhe horas para dar passeios, para jantares, almoços e cafés com amigos. “É uma liberdade total. Eu disponho do meu tempo. Eu é que giro a minha vida, decido quando é que vou aos correios, quando é que entrego as coisas”, relata. “Estou mais feliz agora do que estava aos 40 anos. Sinto-me realizada. Estou bem com a vida.”
Sílvia Botelho explica que este cenário de satisfação imediata também é frequente. "É comum, principalmente no início da reforma devido a vários fatores, nomeadamente à exaustão e desmotivação. A partir desta altura, estas pessoas já poderão ter mais tempo para si e para pensar realmente no que gostam de fazer."
A psicóloga explica que o bem-estar pleno na altura da reforma é conseguido quando se consegue "substituir as actividades inerentes ao papel do trabalhador por outras actividades igualmente significativas para a própria pessoa." É a partir daqui que se desenha o papel de reformado, em que o descanso deve conjugar com a atividade.
Pela voz de Manuela Velez, vemos logo que boa disposição não lhe falta. É muito positiva e não sente o peso da solidão. “Eu só estou sozinha se quiser. Eu trabalhava num universo onde estavam três mil pessoas, e como conhecia imensa gente, acabava por ter um círculo de trabalho muito grande. Há gente que se reformou e que vive aqui, com quem bebo café. Há quem saia do trabalho chateado e me chame para conversar. Às vezes até tenho de pedir para pararem com os almoços porque qualquer dia estou uma bola.”
Tem de sobrar espaço só para si. “Também gosto de ter o meu tempo. Passei tantos anos a conversar, que também preciso do meu descanso. Não deixei que a solidão me afetasse.”
“Então e marido ou namorado?”, perguntamos-lhe. “Sou divorciada, que foi outra coisa que fiz e me deixou feliz. Também me atazanava o juízo. Estou mesmo como eu quero.”
"Olhe que bom." Rimos e desligamos.