Teletrabalho é um conceito que divide opiniões: uns adoram porque lhes dá mais tempo, não enfrentam o trânsito e não fazem um jantar a despachar; outros detestam porque não convivem, mal veem a luz do sol e porque a palavra "obrigatório" proferida pelo primeiro-ministro, António Costa, no primeiro e segundo confinamento não trouxe uma conotação positiva à palavra.
Mas, afinal, o que significa este conceito? "O teletrabalho é eu não estar fisicamente na empresa. O trabalho a partir de casa é eu estar em casa e trabalho à distância é onde eu quiser prestar trabalho", que, noutros tempos, já era praticado (e quem o fazia era chamado de nómada digital) e podia consistir simplesmente em ir para uma explanada junto à praia e trabalhar neste ambiente de paz.
Quem faz esta distinção é Cassiana Tavares, psicóloga e autora do novo livro "A Bíblia da carreira" (P.V.P 14,90€), que é um guia prático com dicas, exercícios, reflexões e um foco particular: o teletrabalho, que para muitas pessoas é uma nova realidade e um desafio, uma vez que quando há filhos à mistura a situação pode complicar-se.
Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) divulgados a 5 de agosto sobre as pessoas que entraram em regime de teletrabalho no 2.º trimestre de 2020, constatou-se que 91,2% dos inquiridos (998,5 mil) começou a trabalhar em casa devido à pandemia e apenas 8,8% por outros motivos.
Estima-se que grande parte das pessoas que se converteram ao teletrabalho tenha filhos o que, de acordo com Cassiana, "reforça o papel da procura de equilíbrio entre carreira e a vida familiar na construção de formas de trabalho mais adaptadas". Mas será que esta dinâmica promove mesmo o equilíbrio familiar?
"Pode não promover", afirma a psicóloga à MAGG, justificando que tudo vai depender das profissões. "Se eu for designer e o meu marido vendedor e pudermos coordenar os nossos horários de maneira a que numa parte do dia está um com as crianças e depois outro, fantástico. Se os dois estão em teletrabalho com um horário fixo, eu vou experimentar aquilo que provavelmente a generalidade daqueles que estão em teletrabalho com filhos estão a experimentar que é a pressão: ou agora apoio as crianças ou faço o meu trabalho. As duas coisas vão exigir de nós ao mesmo tempo e aí lá se vai a flexibilidade", exemplifica Cassiana Tavares.
Essencialmente, as profissões que se moldam mais facilmente ao teletrabalho são nas áreas de consultoria, das tecnologias, seguros, financeira e da produção do conhecimento. Contudo, a pandemia não olhou a áreas e levou todos aqueles que podiam fazer o seu trabalho com recurso a um computador e telemóvel para casa. A seu tempo, cada pessoa arranjou métodos para se gerir em função dos objetivos semanais no trabalho, das tarefas domésticas e da vida familiar, mas há quem ainda não tenha encontrado esse rumo.
Para esses que não alcançaram o equilíbrio ou para quem se vai deparar com esta realidade num futuro próximo, a psicóloga Cassiana Tavares deixa algumas dicas chave para trabalhar em casa de modo produtivo, bem como evitar a pressão das responsabilidades profissionais e familiares e um eventual burnout (síndrome que diz respeito a uma forma de depressão associada ao trabalho).
1. Trabalhar com filhos: como organizar o espaço em casa?
Num primeiro momento, é essencial definir um local de trabalho e um ponto fixo para as crianças estarem, bem como assegurar os equipamentos necessários para cada um. "No início parece-nos engraçada esta liberdade, mas ao fim de um tempo deixa de ser. Se vamos começar uma reunião e não sabemos onde é ou se a criança vai começar a aula e está indeciso qual o computador ou secretária, não vai funcionar", diz a psicóloga Cassiana.
Quanto ao espaço onde vai trabalhar, de modo a torná-lo o mais confortável possível e promover a produtividade, eis o que não deve faltar: iluminação — use e abuse da luz natural do dia e, se possível, trabalhe junto a uma janela —, temperatura e mobiliário adequados (pode ser apenas uma mesa e cadeira confortáveis) e controlo do ruído.
Ainda sobre a cadeira, deve localizá-la de modo a sentar-se de frente para a porta. Porquê? Porque de acordo com Sara Batalha, CEO da MTW Portugal e amiga da psicóloga Cassiana Tavares, é a melhor forma de evitar imprevistos, como quando as crianças entram divisão adentro e interrompem reuniões em videochamada — como já deve ter assistido em entrevistas em direito para canais televisivos nos últimos meses, em casa dos seus próprios colegas de trabalho ou mesmo na sua, quando foi vítima do inesperado. Se estiver de frente para a porta, não só vai conseguir detetar quando a criança entra, como evitar que todos assistam ao espetáculo que se segue.
Além do espaço, as rotinas "como se estivéssemos na escola e no trabalho todos juntos", afirma a especialista, são outro ponto fundamental para uma boa dinâmica de trabalho e estudo em casa. "Os horários de todos devem ser impressos e afixados de forma a que seja possível saber o que vai acontecer de modo a poder guiar a criança", sugere.
Mas as dicas não ficam por aqui. "Estar sempre dois passos à frente com as crianças", diz Cassiana Tavares. Esta é mais uma dica no sentido de prevenir o inesperado, que pode traduzir-se em coisas tão simples para as crianças já na escola como preparar previamente o material necessário para as aulas e perceber, recorrendo ao calendário afixado, quando é que é possível dar apoio e como é que essa tarefa vai ser dividida com o parceiro ou parceira ou mesmo com os irmãos.
No entanto, com crianças mais pequenas os "passos" aumentam. "É preciso estar não dois passos, mas dez passos à frente", brinca a psicóloga, sugerindo que se adotem estratégias como fazer reuniões na hora da sesta, ter os horários bem alinhados com o parceiro ou parceira e pôr à disposição das crianças brinquedos que as entretenham. A juntar a tudo isto, normalizar a situação também é importante. "Já fiz entrevistas com um bebé ao colo, já fiz tudo o que se possa imaginar com um filho a reboque. E agora todos temos de ter um bocadinho essa compreensão. Estamos num tempo de guerra", diz Cassiana Tavares.
Falta ainda falar de outra ferramenta, neste caso não para organizar o espaço físico, mas mental. "Uma coisa que é crítica é tomar decisões. Vai haver um momento em que o trabalho e a escola vão colidir. E vamos ter de fazer uma escolha nessa altura e não vai haver escolhas perfeitas. Vai haver escolhas possíveis", refere a psicóloga apresentando um exemplo.
"Se eu já me levantei e já disse três vezes ao meu filho para se sentar e eu estou a sair constantemente de uma reunião, se calhar vou ter de pedir um tempo e fazer a reunião mais tarde ou deixar o miúdo solto", reforçando que a decisão não será perfeita, mas estar ciente disto é uma forma de "nos protegermos mentalmente e emocionalmente" porque "vai haver alturas em que não vai correr bem e vamos ter que assumir. É mais saudável isso do que estarmos em esforço", conclui.
2. Pôr um travão entre o teletrabalho e a omnipresença
Sem ter de sair a tempo de evitar a hora de ponta no trânsito, ir buscar os filhos à escola ou ter o compromisso de um jantar, torna-se difícil delimitar a barreira entre o trabalho e a vida pessoal. Mas não deixa de ser possível, de acordo com a psicóloga. "Se o nosso trabalho tiver um horário fixo, é muito importante irmos falando com a nossa entidade e colegas para conseguirmos cumprir esse horário e depois desligarmos", refere.
Muitas pessoas passaram a ter insónias com o início do teletrabalho em tempo de pandemia, porque não conseguiram atingir essa relação saudável e o corpo acabou por ressentir a falta de rotinas diárias. "A hora em que me estou a mexer, estou parado, quando vou comer, a exposição à luz natural e artificial da casa, tudo isso influência o nosso bem-estar".
"Portanto, se tenho um horário fixo devo estabelecer os meus objetivos, trabalhar neles e depois parar e entrar na outra dimensão da vida a que me quero dedicar agora", sugere a psicóloga. Isso não implica que na hora de almoço não possa colocar a máquina da roupa a lavar, mas é preciso traçar um limite ao horário de trabalho. "Esta é uma fronteira que tem de ser literalmente autoimposta".
Como? Pode, por exemplo, estabelecer objetivos realistas de duas ou três coisas a que se propõe cumprir no dia de trabalho e estabelecer um ritual que ajude a terminar o dia, como uma caminhada ou um plano de treino.
No entanto, a teoria é mais difícil de aplicar quando na prática persiste a ideia de que trabalhar em casa é sinónimo de estar sempre disponível. Haverá forma de contrariar esta ideia? "Temos de ser bons a comunicar, mas nós não somos um povo muito assertivo, muito aberto a falar das condições do trabalho e não estou sequer a falar dos direitos laborais. Estou a falar de haver esta honestidade entre os profissionais e a entidade de falarem de como é que o serviço vai ser prestado agora, em que projetos estamos a trabalhar agora, o que é que é realista e haver uma negociação que seja boa para as partes", afirma Cassiana.
É neste ponto que a psicóloga introduz a síndrome de burnout, reconhecida em 2019 pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como uma doença caracterizada pelo estado de esgotamento físico e mental causado pelo trabalho, que pode afetar qualquer profissional e as empresas devem estar cientes disso, de acordo com a especialista. "Não nos interessa durante a pandemia partir as pessoas porque depois precisamos dos profissionais".
O burnout está também associado ao stress e um deles é aquele que "infligimos a nós próprios, de fazermos tudo bem e sermos perfecionistas", aponta Cassiana. "Tenho a sensação de que aquelas pessoas mais resistentes, mais resilientes, são as que mais facilmente podem chegar ao burnout e às vezes não se apercebem", a não ser quando o corpo começa a falhar.
Antes de isso acontecer, há alguns sinais a que podemos estar atentos por nós e por quem nos rodeia:
- Fadiga;
- Dificuldades emocionais na relação com colegas, clientes ou até dentro de casa;
- Impaciência;
- Irritabilidade;
- Falta de energia no trabalho;
- Falta de concentração;
- Dificuldade em sair do multitasking (alternar rapidamente entre tarefas e fazer a mente andar para trás e para a frente em termos de informação).
Em caso de algum destes sintomas da síndrome de burnout serem detetados, o primeiro passo é, segundo a psicóloga, "observar como está a ser o horário de trabalho, a forma como está a ser prestado, olhar para o sono, alimentação e atividade física e começar imediatamente a fazer mudanças", sugere. O ideal é dormir entre sete a nove horas por noite, fazer cinco refeições diárias equilibradas, beber água e fazer atividade física, principalmente neste momento em que estamos confinados.
Se mesmo assim os sintomas persistirem, é altura de passar para o segundo passo: pedir ajuda psicológica ou médica.
3. "As pausas são revigorantes"
Na escola ou faculdade, muitos de nós usamos o método da guloseima como forma de motivação no estudo. No fundo, consistia em estudar mais um capítulo e finalizada a tarefa permitíamo-nos comer um quadrado de chocolate, uma goma ou bolacha. Com a atividade profissional, o caso mudou de figura e muitas vezes até nos esquecemos de fazer pausas. Só que estas são essenciais para uma boa performance no trabalho. "As pausas são revigorantes", afirma mesmo Cassiana.
Uma das estratégias pode ser adotar o Método Pomodoro, de Francesco Cirillo. O estudante italiano sugeriu que dividíssemos o trabalho em blocos de 25 minutos e ao fim de cada tempo fizéssemos pausas entre três a cinco minutos. Quando completássemos quatro blocos de 25 minutos de trabalho, a pausa seria então mais longa: entre 20 a 30 minutos.
Mas o que fazer nestas pausas breves e longas? No primeiro caso, pode, por exemplo, ir à varanda, à janela, à casa de banho, alongar ou ir ter com alguém que está em casa para socializar. Já nas pausas mais longas, a psicóloga sugere ir à rua caminhar ou fazer o treino a meio do dia. Adiantar algumas tarefas domésticas também pode ser uma ideia, desde que não seja "uma outra forma de multitasking que acrescente stress".
Certo é que a pausa nunca deve ser feita em frente a um ecrã, a ver uma série ou a fazer scroll nas redes sociais, se o trabalho já exige estar ligado às tecnologias.
4. O teletrabalho vai deixar-nos saturados do online?
Passar a dinâmica de trabalho de um escritório ou open space para a casa de cada um, exigiu que se trocasse o simples ato de ir até junto de um colega fazer uma questão por uma notificação. E o que é que aconteceu quando esta transição não foi bem planeada por algumas empresas? Criou-se um grande obstáculo: os múltiplos canais.
"A pessoa está no Teams, de repente recebe uma mensagem pelo WhatsApp e depois um e-mail. Penso que a gestão dos múltiplos canais tem sido das maiores dificuldades", aponta a psicóloga. Esta sobrecarga de mensagens por responder e ruido de canais que pedem a nossa atenção constante está então a gerar outro problema. "Com algumas pessoas, está a acontecer alguma fadiga de que todos os contactos serem digitais".
Ainda assim, "há empresas que agarraram nisto desde início e direcionaram o fluxo de comunicação" para um só canal, permitindo que quando precisam de uma resposta no momento, saibam a que plataforma recorrer para confirmar o que necessitam com colegas ou entidade patronal.
No entanto, no fim de tudo isto — seja lá quando for —, não só o teletrabalho vai ficar em muitos casos, até de forma autónoma, se o mercado oferecer essas condições, como vai deixar mazelas na relação com o online e com os outros. "Acho que vamos ter um tempo de recuperação, de cura, como quando temos uma doença no corpo em que temos de reaprender. E não passa por ter ajuda de psicólogos ou psiquiatras. Creio que muitos dos efeitos vão ser curados por podermos voltar a estar com os nossos", termina Cassiana Tavares.