É oficial. Amy Coney Barrett foi, na segunda-feira, 26 de outubro, confirmada por Mitch McConnell, líder da maioria no Senado, como juíza para o Supremo Tribunal. Representa a terceira nomeação de Donald Trump, que descreveu este dia como sendo “histórico”. O presidente dos Estados Unidos, que já a havia considerado, antes de nomear Brett Kavanaugh, em 2018, elogiou as “qualificações impecáveis”, a “generosidade de fé” e o "carácter dourado" da juíza de 48 anos, a 5.ª mulher a ocupar este cargo.

Com três anos de experiência no sistema judicial, vem substituir Ruth Ginsburg, ícone do progresso e do feminismo, que morreu a 18 de setembro. Vem consolidar a  maioria conservadora no mais alto tribunal deste país — agora com três liberais e seis conservadores —, e não poderia ser mais diferente da sua antecessora.

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Nascida em Metairie, um subúrbio de Nova Orleães do estado do Louisiana, é conhecida pelas posições que vão ao encontro daquelas que são, antes, defendidas pelo atual presidente dos Estados Unidos: é a favor da expansão do direto de porte de armas, das políticas restritivas de emigração, é anti-Obamacare, anti-casamento entre pessoas do mesmo sexo e anti-aborto. Acredita que “a vida começa na conceção” e que o "aborto será será imoral", como escreveu num artigo publicado no jornal da Notre Dame Law School, faculdade que se formou em Direito.

Um dos maiores receios face esta nomeação e atual configuração do Supremo Tribunal — uma casa "dirigida por conservadores cristãos e ativistas anti-aborto", escreve o "New York Times" — prende-se, aliás com a possibilidade de vir a anular a decisão histórica do caso judicial emblemático Roe v. Wade, que tornou o aborto legal nos Estados Unidos. Ainda assim, em 2016, referiu que seria pequena a probabilidade de isto acontecer — falando, antes, de potenciais restrições às clínicas que levam a cabo interrupções voluntárias da gravidez, no que se refere, especialmente, aos estádios tardios com que este procedimento pode acontecer.

As suas posições vão ao encontro daquelas defendidas pela comunidade ultraconservadora em que nasceu, cresceu e, suspeita-se, ainda permanece: o People of Praise, um grupo religioso, frequentemente apelidado de seita, que, com influência do Pentecostalismo, admira os primeiros cristãos que, considera, foram “guiados pelo Espírito Santo para formar uma comunidade”. Fundado em 1971 em South Bend, Estado do Indiana, defende uma vida profundamente unida em comunidade, em que os membros se comprometem a apoiar-se "financeira, material e espiritualmente”. Mas já lá vamos.

amy barett

É a mais velha de sete irmãos (cinco irmãs e um irmão) e filha dos católicos convictos Linda, uma professora primária, e Michael Coney, que há 35 anos, recusou uma proposta de trabalho para se dedicar exclusivamente ao grupo religioso.

Foi sempre uma excelente aluna. Frequentou o Sr. Mary’s Dominican School, um colégio católico só para meninas. Daqui seguiu para o Rhodes College, tendo-se formado em literatura inglesa e francesa, tendo, então, seguido depois para a Notre Dame Law School, onde, com uma bolsa de estudos completa, se forma em Direito, em 1997, como melhor da turma — e, onde, mais tarde, vem a dar aulas.

É aqui que conhece o professor Jesse Barrett, pela altura em que era também sócio do SouthBank Legal - LaDue Curran & Kuehn LLC — antes, durante 13 anos, havia trabalhado como advogado assistente para o Distrito Norte do estado do Indiana. Ligado à mesma comunidade religiosa, é com ele que se casa, fixando-se no South Band. Juntos, têm sete filhos, dois dos quais adotados no Haiti, após a catástrofe de 2010. O mais velho tem síndrome de Down.

Juíza de carreira, foi auxiliar do magistrado conservador Antonin Scalia, ao longo de 15 anos. Após a sua morte, em fevereiro de 2016, ocupa um lugar no Sétimo Tribunal de Relação de Chicago, em 2017. Por esta altura, enfrentou o escrutínio do Senado — tendo os democratas posto em causa a sua capacidade de tomar decisões, tendo em conta o seu fervor religioso.

"Quando se leem seus discursos, a conclusão a que se chega é que o dogma vive fortemente dentro de si”, disse a a senadora Dianne Feinstein, resumindo a preocupação dos legisladores democratas, pela altura em que foi nomeada juíza em Chicago.

Aqui, Amy Barett, garantiu que as suas crenças religiosas jamais iriam interferir com o seu trabalho como juíza. "Um juiz nunca pode subverter a lei ou distorcê-la de qualquer forma para corresponder às suas convicções”, disse, afirmando ainda que nunca deixaria de aplicar a jurisprudência a favor das suas crenças.

As suspeitas de pertencer ao People of Praise, o grupo onde existem "handmaids" da vida real

São fortes as suspeitas de que atualmente Amy Barrett se mantenha no People of Praise. Há — ou havia — provas. A Associated Press, por exemplo, consultou as edições dos últimos 15 anos da revista interna da organização, onde foram encontradas várias menções aos Barrett — incluindo anúncios de nascimento e fotografias. No entanto, passados poucos dias, todas estas publicações foram retiradas do site do People of Praise.

Mais: uma lista a que o “The New York Times” teve acesso listava a juíza como uma das 11 líderes locais do grupo em South Bend. E, entre 2015 e 2017, a mulher fazia parte da direcção da Trinity School, uma escola particular, criada pela comunidade, que rejeita a admissão de crianças cujos pais sejam do mesmo sexo e que os filhos da juíza frequentam. 

No que se refere ao passado, as ligações são óbvias. Segundo o “New York Times”, há 35 anos, quando era advogado da Shell Oil Company, o pai de Amy Barrett, Mike Coney, rejeitou uma promoção — que incluía um aumento substancial do salário e que o levaria a mudar-se para Houston, no Texas — para se dedicar à vida nesta comunidade em Nova Orleães, onde acabou por ocupar o lugar de membro do Conselho Nacional de Diretores do People of Praise. 

"A mudança para Houston significa que a nossa família nunca mais vai ser igual", terá dito à mulher. O momento foi citado pelo "New York Times", que teve acesso a uma revista da comunidade, nos tempos em que ainda não se intitulava de Praise of the People.

Barrett nunca confirmou a sua ligação ao grupo, mas já falou sobre a importância em viver uma “comunidade de aliança” — termo que é frequentemente utilizado pela organização. “A nossa vida era uma 'comunidade de aliança' em Nova Orleães. Para o bem dos nossos filhos e de nós mesmos, precisávamos de relacionamentos comprometidos com outros cristãos que levassem sua fé a sério", disse Coney, há vários anos, citada pelo mesmo jornal americano.

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créditos: © Julian Velasco

Já o jornal “The Guardian”, que consultou documentos públicos, avança que a conservadora viveu, pela altura em que era aluna de Direito, numa casa de nove quartos, em South Bend, que era propriedade de Kevin Ranaghan, cofundador do grupo católico. Também o marido Jesse Barrett terá vivido aqui, embora seja difícil confirmar que ambos tenham frequentado a casa ao mesmo tempo.

Mas uma coisa é certa: testemunhos de pessoas que abandonaram já o grupo, relatam que o People of Praise não permite que os seus membros namorem ou se casem sem que os líderes façam uma avaliação da relação, decidindo se a relação deve, ou não, acontecer. “Os casamentos no People of Praise são eventos comunitários, em vez de eventos familiares", disse o cofundador Adrian J. Reimers.

Assim, além de os membros serem incentivados a contribuir com 5% do seu vencimento bruto para ajudar a financiar a comunidade, é prática comum que se casem uns com os outros, formando famílias numerosas no seio da comunidade.

Nas palavras do mesmo cofundador, "esta não seria simplesmente uma comunidade reunida em torno de um grupo de crenças e valores comuns, mas um povo, um clã ou grupo de clãs, cujos membros reconhecem a existência de um tipo de relação familiar entre eles e que compartilham costumes, governo e padrões de crença comuns.”

O "New York Times" confirmou estes princípios, avançando que "homens e mulheres solteiras são designados a conselheiros individuais, um membro mais velho do mesmo sexo, que eles consultam para falar sobre questões espirituais e práticas." O mesmo jornal diz que "alguns ex-membros dizem que esses conselheiros - os líderes homens são chamados de “chefes” — exerceram uma influência notavelmente granular, tentando controlar as suas vidas amorosas e os seus orçamentos familiares. As mulheres casadas são “chefiadas” por seus maridos."

A subjugação das mulheres é uma das maiores controvérsias em torno deste grupo: o seu principal papel é cuidar da casa e da família. Tendem a não trabalhar, obedecendo aos homens, os tais chefes de família — característica de que Barrett se distancia, uma vez que tem uma longa e relevante carreira. Porém, no seio desta organização, diz outro artigo da "Associated Press", ela ocupa o lugar de "handmaid", termo atribuído às mulheres que assumem lugares de liderança no grupo — ao contrário do que significado atribuído na série distópica "Handmaid's Tale", baseada nos livros de Margaret Atwood.

Apesar de haver membros que abandonaram a organização, segundo explica a People of Praise no site, os elementos das comunidades assumem um pacto vitalício, comprometendo-se a "servir uns aos outros de todo o coração, independentemente do tipo de necessidade: espiritual, material ou financeira.”