Pensar em Simone Biles, a ginasta americana de 24 anos mais premiada da história dos Estados Unidos (ao deter um total de 30 medalhas entre Jogos Olímpicos e Campeonatos Mundiais de Ginástica Artística), é recordar, com sorrisos e admiração, o engenho de alguém que, com um relativo à vontade que muitos sonham ter e poucos têm, é capaz de desafiar e ultrapassar os limites do corpo humano na ginástica.
Para a História, no entanto, ficará também conhecida como a mulher que, por duas vezes, optou pela voz em vez do silêncio. Uma primeira vez quando, em 2018, fez saber que era uma das mais de 250 ginastas a ter sofrido abusos sexuais por parte do médico Larry Nassar, e agora, quando nos Jogos Olímpicos de Tóquio, no Japão, bateu com a porta e abandonou, na terça-feira, 27 de julho, a final coletiva de ginástica artística para se focar na sua saúde mental e bem-estar. A decisão decorre de vários erros cometidos que, para quem lhe acompanhou o percurso até aqui, não os achava comuns na execução dos saltos. Um dia depois, abdicou também da prova individual, ficando assim impedida de revalidar a medalha de ouro.
Após a saída da prova na terça-feira, o comunicado inicial fazia antever problemas físicos como estando na origem da desistência. "Simone Biles retirou-se da competição final por equipas devido a questões médicas. Será avaliada com o objetivo de se determinar uma autorização médica para provas futuras", pôde ler-se na nota.
À partida, a tese parecia fazer sentido. Além de o facto de os percalços se terem registado desde as rondas preliminares dos Jogos Olímpicos, quando a atleta tetracampeã olímpica de ginástica regressou à arena após a desistência para apoiar as colegas de equipa que tinha deixado para trás, o pé estava envolto em ligaduras. Seria a própria Biles, no entanto, a fazer cair por terra uma tese que, sabemos agora, estava longe da verdade.
"Depois da minha prestação na prova, simplesmente não queria continuar", começou por explicar em declarações à imprensa, segundo cita a BBC.
"Tenho de me focar na minha saúde mental, numa altura em que o tema é cada vez mais abordado nas modalidades. Temos de proteger as nossas mentes e os nossos corpos e não fazer aquilo que o mundo espera de nós", continuou, admitindo que, atualmente, já não se sente tão confiante.
"Talvez seja um sintoma do crescimento. Houve dias em que toda a gente me mencionava [nas redes sociais] e isso faz-te sentir o peso do mundo", explica.
Sentir o peso do mundo nos ombros
A afirmação não vem ao acaso. A poucos dias do arranque dos Jogos Olímpicos deste ano, as expectativas sobre Biles estavam elevadíssimas. Além de ser considerada a atleta mais medalhada de sempre em Olimpíadas e Mundiais, havia pelo menos mais dois objetivos para riscar na lista: ultrapassar as 33 medalhas do atleta Vitaly Scherbo, precisando apenas de três e com seis provas para disputar em Tóquio; e converter em ouro a medalha de bronze que recebeu em 2016 referente à prova de exercício na trave.
"Sempre que estamos numa situação de stresse elevado, acabamos por 'nos passar'. É uma merda quando se luta contra a própria cabeça", lamentou a atleta que, nestes Jogos Olímpicos, conseguiu, apesar de tudo, levar a medalha de prata para casa.
No entanto, recusou receber quaisquer louvores pela distinção. "Devo isto [referindo-se à medalha] às raparigas [da equipa]. Isto não tem nada que ver comigo. Sinto muito orgulho pela forma como se levantaram e fizeram o que tinha de ser feito. Disse-lhes que tinham treinado para isto e que, por isso, poderiam fazer a prova sem mim que tudo correria bem", cita a BBC.
Mais do que uma única explicação, há um conjunto de fatores que talvez ajudem a entender a sensação assombrosa de ter nos ombros a responsabilidade de representar um país em condições adversas. As palavras são da própria atleta que, ainda antes da sua saída da prova, recorria às suas plataformas oficias para dizer isso mesmo. "Por vezes, parece mesmo que tenho sempre o peso do mundo nos ombros. Sei que, muitas das vezes, desvalorizo isso e tento passar a ideia de que a pressão não me afeta, mas caramba, por vezes é mesmo difícil. Os Jogos Olímpicos não são nenhuma brincadeira", escreveu Simone Biles na sua página oficial de Twitter. Além dos objetivos pessoais que queria ver concretizados, independentemente de estes serem os seus últimos Jogos Olímpicos ou não, tal como deixou em aberto no passado, havia o fantasma da COVID-19 que, embora invisível, era uma ameaça constante.
Os efeitos da pandemia no evento foram vários com a confusão e o desnorte burocrático a afetar todos os envolvidos, inclusive repórteres), mas terão sido os atletas a sentir na pele as consequências psicológicas de um vírus que obrigava a uma readaptação drástica — como testagem diária, restrição de movimentos e a ideia de uma doença que, a qualquer instante, tinha a capacidade de arrancar um atleta da competição e desfazer anos de treinos, escreve a revista "Time".
Mais: no momento em que Biles e a equipa chegaram a Tóquio, uma das atletas americanas acusou positivo no teste de despiste à COVID-19, remetendo toda a comitiva a um período de isolamento, inclusive Biles. Embora o incidente nunca tenha sido abordado pela atleta, terá contribuído para a mossa numa altura em que apenas este ano foi criado, pelo Comité Olímpico Internacional, uma espécie de manual sobre saúde mental distribuído aos desportistas e às suas equipas.
Para o futuro, está previsto a criação de um registo global com vários profissionais de saúde a quem qualquer atleta profissional poderá recorrer, diz a mesma publicação.
Simone Biles. Atleta, campeã, mulher e sobrevivente de abuso sexual
Além do caos a que a pandemia obrigou, Simone Biles está, desde 2018, a ser acompanhada por um psicólogo depois de ter anunciado ser uma sobrevivente do abuso sexual a que foi sujeita às mãos de Larry Nassar, ex-médico da equipa nacional de ginástica dos EUA.
O assunto é relevante para a discussão já que o facto de os Jogos Olímpicos terem sido adiados devido à pandemia, obrigou a um esforço emocional extra da atleta, palavras da própria, por ter de continuar a trabalhar com a Federação de Ginástica dos EUA de quem é muito crítica pela forma como escolheram não lidar com os abusos de Nassar — conhecidos desde a década de 90.
Em agosto de 2019, um ano depois de ser uma das 250 atletas a acusar o médico de abuso sexual, argumentou que a Federação falhou no "único trabalho que tinha de fazer". "Nós [referindo-se a todas as ginastas da equipa americana] fizemos tudo o que nos pediram, mesmo quando não queríamos, e a Federação não foi capaz de cumprir a tarefa essencial que tinha de cumprir. Vocês tinham um único trabalho e não foram capazes de nos proteger", referiu, emocionada, em declarações aos jornalistas.
Embora a conduta de Nassar já tivesse sido reportada à Federação de Ginástica dos EUA na década de 90, nada foi feito e Nassar pôde continuar a exercer até meados de 2015. Foi nessa altura que algumas das suas vítimas quebraram o silêncio fazendo com que o caso ganhasse tração nos media e, consequentemente, no tribunal.
Caracterizado como um dos maiores escândalos de abuso sexual de que há memória no universo desportivo americano, as acusações formais materializam-se em 150 processos formais. De todas as acusações, Nassar assumiu-se culpado de apenas dez e a pena, conhecida a julho de 2017, foi de 60 anos numa prisão federal.
Em 2018, no entanto, Nassar foi novamente condenado a 175 anos de prisão por crimes consumados no estado do Michigan. O tribunal federal declarou que todas as penas serão cumpridas — o que implica que o ex-médico morrerá na prisão e não terá quaisquer possibilidades de sair em liberdade condicional.
O escândalo é recordado no documentário "Athlete A: Abuso de Inocência", da Netflix, que conta com entrevistas exclusivas às vítimas de Nassar, mas também a alguns dos jornalistas que ajudaram a investigar e a denunciar as práticas do médico que agiu com a complacência da Federação de Ginástica dos EUA, que nunca tomou medidas apesar das denúncias.
O documentário mostra a cultura competitiva que se vivia dentro da Federação e revela que, enquanto as atletas estavam em treinos ou competições, os pais nunca tinham autorização para falar com os filhos.
Simone Biles não foi a primeira. Também Naomi Osaka bateu com a porta, dizendo que "é ok não estar ok"
Ainda que Simone Biles tenha permitido voltar-se a falar sobre a problemática da saúde mental dos atletas profissionais, não foi a primeira. Em maio deste ano, durante o torneio de ténis de Roland Garros, em França, a tenista Naomi Osaka desistiu da competição depois de ter anunciado que não iria participar nas conferências de imprensa a que os atletas estavam sujeitos.
Em causa estava o facto de considerar que algumas das questões feitas pelos jornalistas a fazer a cobertura do evento prejudicavam emocionalmente todos os que competiam. "Não me vou sujeitar a ouvir pessoas que duvidam de mim. Já vi muitos atletas irem-se abaixo depois de uma conferência de imprensa pós-derrota. Isso é como pontapear alguém que já está no chão", explicou.
Após o comunicado, Osaka foi fiel à sua palavra e não compareceu na conferências de imprensa seguinte, facto que lhe valeu um multa de cerca de 15 mil dólares (o equivalente a 12 mil euros).
Depois de ser advertida pela organização com a possibilidade de eliminação, a tenista abandonou o torneio. "Esta é uma situação que nunca imaginei ou procurei quando publiquei aquele comunicado. Acredito que, agora, o melhor para o torneio, para os outros jogadores e para o meu bem-estar, passará por retirar-me para que todos possam voltar a concentrar-se no ténis que está a ser jogado em Paris", anunciou a atleta.
"A verdade é que sofri longas crises depressivas desde o Open dos EUA de 2018 [competição da qual saiu vencedora] e tenho bastantes dificuldades em lidar com isso", adiantando ainda que, antes do torneio de Roland Garros, já se sentia "vulnerável e ansiosa".
Dois meses depois, a atleta voltaria a abordar o assunto num texto publicado na primeira pessoa na revista "Time".
"Talvez devêssemos dar aos atletas o direito de terem um dia livre longe do escrutínio da imprensa sem terem de ser sujeitos a sanções. Em qualquer outra área de trabalho, ninguém é julgado por tirar um dia aqui e ali. Ninguém precisa de dar a conhecer os sintomas à sua entidade empregadora. No meu caso, senti uma enorme pressão para divulgar o que se passava, porque nem a imprensa nem a organização do torneio acreditavam em mim", escreve a tenista.
"Acreditem ou não, sou uma pessoa introvertida e não procuro as luzes da ribalta. Tento sempre falar daquilo em que acredito e passar as mensagens que julgo serem as corretas, mas isso muitas vezes faz-se acompanhar de uma enorme ansiedade. Também isto, o facto de ser a porta-voz ou o rosto do tema da saúde mental nos atletas, me deixa desconfortável porque é tudo novo para mim."
E concluiu: "Não tenho as respostas a todas as perguntas, mas espero que as pessoas possam identificar-se e perceber que é ok não estar ok. E que é ok falar sobre isso. Há pessoas que podem ajudar e há sempre luz ao fundo do túnel."