Ana Gomes, mais conhecida como "A Melhor Amiga da Barbie", era uma criança melancólica, mas cresceu para ser uma adolescente bem disposta, sociável, com muitos amigos. Aos 20 anos, já tinha conquistado dois aspetos fundamentais desta fase da vida: já estava inserida no mercado de trabalho e a viver fora de casa dos pais, em pleno Bairro Alto. "Já era independente", diz à MAGG. Contrariando aquilo que se considera expectável, foi também no meio de todas estas vitórias que, sem explicação, mergulhou numa depressão, num abismo, como lhe chama, onde permaneceu sozinha durante dois anos.

“Não tinha absoluta vontade de sair de casa. Tinha muita dificuldade em sair da cama de manhã, não queria acordar”, conta à MAGG. Sentia-se profundamente mal, sem ânimo, sem motivação. "Era uma vida muito triste", diz. "Estava sempre a ser puxada para um lugar muito feio e mau". Não era minimamente previsível, porque "não existia absolutamente nada que justificasse a situação": tinha uma "vida incrível", sempre muito "suportada", no que respeita ao apoio familiar, relações sociais ou laborais.

"A psiquiatria foi uma tábua de salvação. Eu estava num processo destrutivo muito, muito complicado"

No meio desta tristeza, começou também a ter ataques de ansiedade e de pânico, começou a desenvolver fobias sociais. Lidou com tudo sozinha. Achava que era isto que ela era, achava que esta tristeza, a fragilidade e vulnerabilidade eram características imutáveis da sua personalidade, como se de uma particularidade física e genética se tratasse. Por isso, tentou de tudo fazer uma vida normal.

ana gomes

Durante muito tempo, Ana Gomes recusou-se a pedir ajuda. Não queria fazer terapia. Mais do que o medo inerente ao início dos duros processos de tratamento interno, tratava-se do desconhecimento de quem não sabe que pode ser de outra forma. “Foi difícil pedir ajuda porque eu não sabia que podia ser ajudada. Achei que a vida tinha reservado aquilo para mim. Nunca achei que a minha vida fosse ser muito diferente daquilo."

Cerca de dois anos depois, cedeu à pressão da mãe e acabou por recorrer a ajuda psiquiátrica. Percebeu que, afinal, podia mesmo ser de outra forma. "A psiquiatria foi uma tábua de salvação. Eu estava num processo destrutivo muito, muito complicado.”

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Ao longo de quatro anos, foi assistida por uma psiquiatra, a médica que a ajudou a atravessar o doloroso processo de cura, que levou anos. "Tínhamos sessões semanais ou quinzenais, de uma hora em que conversávamos. Não era uma consulta pura e simplesmente de prescrição." Ao mesmo tempo, foi-se ligando cada vez mais ao yoga, à alimentação saudável, a um estilo de vida mais holístico, sobre o qual fala frequentemente no seu Instagram. Enquanto tudo isto acontecia, foi saindo do abismo.

"Percebi que havia pessoas com histórias perfeitamente iguais à minha"

Também António Raminhos encontrou na psicoterapia o apoio de que precisava para lidar com os seus próprios problemas. Mas o processo foi substancialmente mais demorado. É que o humorista — que, no Instagram, deixou um longo texto de sensibilização para a importância do ato de pedir ajuda, na sequência da trágica morte do ator Pedro Lima — sofre desde muito novo de uma perturbação de ansiedade, o transtorno obsessivo compulsivo, com o qual teve de crescer,  numa altura em que as doenças do foro mental eram quase uma não-questão.

"Eu desde pequeno que tinha ideias de coisas que estavam ligadas a este transtorno obsessivo compulsivo, de contaminação, medo de morrer, coisas muito intensas", conta à MAGG. Recorda-se de um dia quando, com seis anos e num tempo em que ainda só existiam dois canais na televisão, passou uma peça num telejornal em que aparecia uma mulher a dizer que o mundo ia acabar.

"Fiquei três semanas sem conseguir comer, não conseguia engolir. Tive de ser alimentado a líquidos."

Durante muitos anos, conseguiu esconder as manifestações deste seu problema, pelo menos, aos colegas da escola. Até que na entrada para a faculdade, este transtorno começou a ser um obstáculo ao correr normal dos seus dias."Aos 18 anos entrei nesses registo de não conseguir andar de autocarro, de não conseguir sair de casa", diz. "Percebi que tinha de ir ao psicólogo", acrescenta — ressalvando que é importante investigar todos os apoios que existem, porque, diz, a ideia de que os psicólogos têm de custar todos uma fortuna não corresponde à realidade.

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Até 2006, altura em que as doenças de saúde mental ainda continuavam, maioritariamente, escondidas na cabeça de quem padecia delas, António Raminhos não sabia que existiam mais pessoas como ele. E, por isso, vivia com um constante sentimento de desajustamento. Mas, aos poucos, percebeu que não estava sozinho e que o seu caso não era assim tão raro. "Tive a consciência que havia mais gente, quando conheci o meu ultimo psicólogo, tinha uns 24 ou 25 anos e que mantenho até hoje,", lembra. "Encomendei livros na Amazon sobre ansiedade, li muitos livros técnicos e nesses livros vinham casos documentados e foi aí que percebi que havia pessoas com histórias perfeitamente iguais à minha."

Corridos quase 20 anos desde a primeira vez que procurou ajuda e fez um trabalho interno profundo, hoje é de forma muito aberta que nos conta a sua história, porque é também desta maneira que acredita que a saúde mental deve ser discutida. Ainda vive com ansiedade, mas já lhe conhece as manhas. No espetáculo "O Sentido das Coisas" (onde o humorista fala abertamente sobre a sua ansiedade), por exemplo, chegou a ter um ataque de pânico em cima do palco. Familiarizado com o que lhe estava a acontecer, munido das estratégias para ultrapassar, foi capaz de seguir em frente. "Eu sei o que é isto, portanto aguenta a bala", pensou. Ninguém notou. 

Hoje já não faz terapia regularmente. Mas, tal como Ana Gomes, dedica-se a práticas viradas para o mindfulness. "Eu brincava, gozava com a meditação. Mas, entretanto, há três anos que comecei a praticar e reconheço os benefícios", conta. "A meditação faz-nos parar e liga-nos a nós próprios — um aspeto de que as pessoas se afastam cada vez mais. Basta, durante 10 minutos, estar com as mãos fora do telemóvel, estar sentado, a ver as pessoas, a conviver com o que nos vai na cabeça. A meditação obriga-nos a estar em contacto connosco."

Toda esta experiência ensinou-o a relativizar, a perceber que não consegue controlar tudo. "Nós não somos aquilo que pensamos. Nós não somos a história da nossa família. Nós não somos a nossa família. Nós não somos os nossos erros. Os sonhos que não conseguimos cumprir." Quando tem um dia mau, procura o conforto do amanhã. "A maravilha da vida é que o dia a seguir é um recomeço. É a benção de poder ver tudo outra vez."

“Este sofrimento pode ser ultrapassado. A pessoa não é fraca por isso, nem tem de estar condenada a viver de uma determinada forma.”

"É mais fácil ignorar a depressão, a ansiedade ou outro tipo de transtorno porque é mental", diz António Raminhos. "Mas um diabético toma a insulina todos os dias. Uma pessoa com problemas de coração também tem de tomar comprimidos. Aqui é exatamente a mesma coisa: é uma doença como as outras."

O argumento é simples e incontestável. Os problemas da mente têm de ser entendidas como a mesma importância que as físicas. "As estatísticas reforçam isso: 1 em cada 5 pessoas tem uma perturbação de saúde mental em Portugal", salienta David Neto, Presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses. "Os motivos [para desenvolver estas doenças] não são estanque: são uma conjunção de fatores ambientais (historia pessoal da pessoa e como a vivenciou) e fatores genéticos." 

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Apesar de ser comum, persiste o estigma, e esse estigma é o principal travão na procura de ajuda. E isto está tanto em quem sofre (que se acaba por auto-censurar e minimizar) como em quem está à volta. Estas ideias pré-concebidas têm uma raiz histórica que, apesar de estar em mudança, ainda precisa de maior descontração. "Antes [as doenças de saúde mental] estavam associadas ao pecado, ao descontrolo, ao vicio", explica David Neto. "Falar destas questões é bom no sentido de educar a população. É bom ir promovendo uma atitude de uma certa aceitação, mesmo que no sentido de encorajar a pessoa a pedir ajuda."

É preciso encorajar porque pedir ajuda é difícil.  "Existe uma representação social negativa em torno da saúde mental, que ainda é vista como sinal de fraqueza, perda de controlo ou insanidade, que faz com que as pessoas lidem com eles sozinhas, embora haja nos últimos tempos uma evolução", diz David Neto. "Às vezes, as pessoas preferem não falar ou lidar com as suas perturbações. Isto também faz com que não procurem ajuda porque, caso contrário, significa que têm de falar sobre o assunto e vivência-lo. E isso também é doloroso."

"Quem está à volta não aceita, não entende, acha que é a pessoa está a ser mimada, que é tudo um capricho. Acha-se que a pessoa se propõe a sentir essa tristeza. É difícil [pedir ajuda] porque a própria pessoa começa a questionar-se."

Depois, há também a incompreensão de quem está à volta. “Quem está à volta não aceita, não entende, acha que é a pessoa está a ser mimada, que é tudo um capricho. Acha-se que a pessoa se propõe a sentir essa tristeza. É difícil [pedir ajuda] porque a própria pessoa começa a questionar-se. Há uma grande incompreensão por ser uma doença invisível", refere Ana Gomes.

Só quem tem uma depressão é que sabe o que é que isso significa, só quem sofre de perturbação de ansiedade ou do pânico é que sabe o que é passar por isto. Porém, por todo o indivíduo experienciar sensações de tristeza ou de ansiedade, acaba por projetar estas sensações nos outros e achar que é tudo igual. Mas muito diferente. “As pessoas equacionam a depressão como a experiência de tristeza que todos já tivemos, mas tem aspetos que são qualitativamente diferentes da tristeza", diz David Neto.

No caso da depressão, explica o psicólogo, as pessoas sentem uma grande fatiga, falta de motivação, não têm ânimo ou energia. Ana Gomes revê-se na descrição:“As pessoas preferem, literalmente, passar o dia todo na cama. Quem está de fora, não compreende o que é isto".

“Para a ansiedade é igual. Todos nós temos repulsa em tocar em coisas sujas, mas pessoas com esta perturbação sentem isso de uma maneira verdadeiramente diferente. Pessoas com ataque de pânico têm uma reacção mais aguda da ansiedade e quem nunca sentiu não faz ideia do que é”, diz. “Estas experiências são difíceis de entender. O facto de as pessoas não terem passado por isso diminui a capacidade de serem empáticas e isso pode fazer com que algumas pessoas não aceitem bem", refere o especialista.

Tudo aquilo que aumente o conhecimento e literacia em torno das questões da saúde mental é bem-vindo, desde filmes a telenovelas que abordem esta temática. É bom falarmos nisto como falamos das questões de saúde, de forma mais geral.

Mas, vale a pena reforçar: 1 em cada 5 pessoas em Portugal sofre de doenças do foro mental. Por isso, é preciso trabalhar para compreender as particularidades destes problemas de saúde, de forma a que se estimule o acesso a especialistas, de forma a que se crie uma sociedade mais empática, para que quem sofre se sinta apoiado e não precise de ter vergonha.

Como é que os cidadãos podem ajudar? "Tudo aquilo que aumente o conhecimento e literacia em torno das questões da saúde mental é bem-vindo, desde filmes a telenovelas que abordem esta temática. É bom falarmos nisto como falamos das questões de saúde, de forma mais geral. É obvio que há diferenças, mas são todas expressões de sofrimento humano. Não devemos pensar que é algo diferente, no sentido extremado do termo", salienta o psicólogo.

E quem sofre? Quem sofre tem de também de trabalhar na libertação dos estigmas, aqueles que os impedem de assumir que precisam de ajuda. “Este sofrimento pode ser ultrapassado. A pessoa não é fraca por isso, nem tem de estar condenada a viver de uma determinada forma.”

Porque os problemas de saúde mental são uma realidade que transversal a estratos sociais, idades, género ou nacionalidade, quando encontrar alguém e lhe perguntar "como estás?", oiça-o, aconselha David Neto. “As pessoas que têm uma perturbação mental não ficam com um sinal distintivo e muitas conseguem trabalhar bem, apesar de estarem num sofrimento atroz. Portanto, se nós quisermos saber como é que uma pessoa está, devemos ficar à espera da resposta, devemos interessar-nos e ouvir (e observar) verdadeiramente. As pessoas também falam com o corpo."