Ao longo de pouco mais de uma hora e meia, todos os olhares estiverem postos em Donald Trump e Joe Biden que protagonizaram esta quarta-feira, 30 de setembro, o primeiro de dois debates antes das eleições americanas. O contexto era muito particular.

Em primeiro lugar, devido à tensão racial que voltou a fervilhar (alguma vez isso deixou de acontecer?), associada à violência policial que resultou no homicídio de George Floyd, um homem negro, pelas mãos de um polícia branco. Mas também devido à pandemia que já fez mais de 200 mil mortos no país, e também porque, dois dias antes, o jornal  “The New York Times”  revelava aquilo que o atual presidente sempre quis esconder — as suas declarações de rendimentos e impostos, que evidenciaram que ao longo de 15 anos, só durante cinco anos é que Donald Trump pagou impostos e em duas vezes o valor só chegou aos 750 dólares anuais.

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Toda esta conjuntura deixava espaço para que as últimas sondagens, especulativas da intenção de voto dos americanos, fossem mais favoráveis a uma eventual vitória de Joe Biden, do Partido Democrata.

Havia, portanto, muita especulação sobre o que esperar do primeiro confronto entre ambos os candidatos. Do lado dos republicanos, esperava-se que Donald Trump transportasse, do Twitter para o púlpito, a retórica manipuladora e conspiratória atacando as capacidades mentais do seu opositor tal como a sua campanha o fez durante vários meses. Do lado dos democratas, previa-se um Joe Biden contido, sereno e meramente dedicado a apontar imprecisões no discurso de Trump.

Quando ambos tomaram os púlpitos para um debate moderado pelo jornalista Chris Wallace, os tópicos foram divididos em blocos de 15 minutos para cada um: as declarações de rendimentos de Joe Biden e Donald Trump; a pandemia da COVID-19; a questão racial e a violência nas cidades; o estado da economia; a integridade da eleição; e o Supremo Tribunal.

Como um qualquer combate de boxe, Donald Trump e Joe Biden desferiram vários golpes entre si e, por diversas vezes, o confronto ficou pessoal. Assim foi o primeiro debate, caótico e com pouca moderação do jornalista Chris Wallace, entre os dois candidatos à presidência dos EUA em 2021.

Round 1 —  O Supremo Tribunal e o Obamacare

Num cenário sem muitos floreados e composto apenas pelos dois púlpitos destinados a ambos os candidatos, o debate arrancou com o tema da escolha de Amy Coney Barrett, por Donald Trump, para o Supremo Tribunal. “Ganhámos as eleições e estas têm consequências. Além do Senado, temos também a Casa Branca e uma nomeada fenomenal que é respeitada por todos. Ganhámos as eleições e temos o direito de a fazer”, referindo-se à decisão de escolher Amy Coney Barrett para o Supremo Tribunal após a morte de Ruth Bader Ginsburg.

Joe Biden tomou a palavra para argumentar, ainda que com várias interrupções de Donald Trump, de que a escolha deveria acontecer após as eleições. “A eleição já começou e dezenas de milhares de pessoas já votaram. Devíamos esperar”, referiu.

Mas o candidato pelo Partido Democrata foi mais longe ao dizer que o grande objetivo de Trump era livrar-se do Affordable Care Act, também conhecido como Obamacare. “O que está em causa e em cima da mesa é o facto de o presidente quero negar seguro de saúde a 20 milhões de pessoas”, com Barrett a representar os interesses republicanos no Supremo Tribunal.

Durante o primeiro segmento, Joe Biden teve dificuldades em responder devido às várias interrupções. E até o jornalista Chris Wallace sentiu a mesma dificuldade para fazer a sua segunda pergunta. O caos instaurou-se e Trump chegou mesmo a dizer que o debate parecia ser com ele — Wallace — e não com Biden. No final, a inevitável troca de acusações entre os dois candidatos.

“Ele não sabe o que é deixar as pessoas falarem. É um mentiroso. Não vou desmontar todas as mentiras dele, mas toda a gente sabe o que ele é: um verdadeiro mentiroso”, respondeu Joe Biden a Trump que o acusou de querer “uma medicina tipicamente socialista”.

No final do primeiro segmento, Biden foi incapaz de concluir o seu argumento devido às interrupções constantes de Trump. “Será que te vais calar, homem?”, respondeu um Biden visivelmente irritado, mas não sem antes argumentar que Trump fez pouco para melhorar o estado do sistema de saúde do país. 

Wallace deu por terminado o segmento e Trump brincou: “Achei que este foi um segmento bastante produtivo”. No entanto, não apresentou nenhumas medidas concretas para melhor o sistema saúde do povo americano caso seja reeleito. 

Round 2 — Os efeitos da pandemia

No segundo segmento, o tema foi a pandemia. “Quantas pessoas acordaram hoje e tinham um lugar vazio à mesa porque alguém da sua família morreu por COVID-19?”, argumentou Biden. Trump reforçou que, na sua visão, Biden teria perdido muitas mais vidas. Atualmente, a pandemia fez mais de 200 mil mortos enquanto o atual presidente fez sempre questão de desvalorizar o efeito do vírus.

O candidato democrata respondeu que o presidente não tinha um plano concreto para travar a pandemia e avançou para o ataque: “Tem de sair do bunker e do campo de golfe para perceber exatamente o que está a acontecer. Para recuperar a economia, mas também para salvar vidas. Quando ele foi confrontado com os números [de infeção], respondeu: ‘É o que é’. A resposta é essa porque esta é a pessoa que ele é."

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Sobre o aparecimento de uma vacina, Donald Trump continuou certo de que iria acontecer em breve. Biden, no entanto, discordou e reforçou a ineficiência de Trump nas suas declarações à imprensa: “Este é o mesmo homem que disse que este vírus iria desaparecer na altura da Páscoa, ou que poderia desaparecer se injetássemos lixívia no braço.”

“Falei com os cientistas responsáveis pelo desenvolvimento de uma vacina, e eles disseram-me que está para breve”, respondeu Trump. Mas o debate ficou ainda mais aceso quando Biden acusou o presidente de não ser inteligente. Trump lançou-se ao ataque como forma de desviar as atenções para o tema da COVID-19. “Não uses a palavra ‘inteligente’ comigo porque não há nada de inteligente em ti, Joe. Não fizeste nada de relevante ao longo de 47 anos”, atirou.

Sobre o uso de máscaras, Donald Trump diz que não tem nada contra e mostrou uma que tinha guardada no bolso do seu casaco. “Uso quando a preciso. O Joe Biden usa-a em todo o lado. É capaz de estar a falar com alguém a dois ou três metros de distância e usar uma máscara bem visível só porque sim”, referiu. 

Já Biden, por sua vez, criticou uma vez mais estas declarações. “Ele tem sido um grande irresponsável na forma como lidou com o uso de máscaras e na forma como não apelou ao distanciamento social. É um irresponsável. O uso de máscaras é capaz de salvar vidas. Nenhuma pessoa séria foi capaz de dizer o contrário."

Round 3 — A economia e o reabrir de um país

No seguinte segmento do debate, Chris Wallace perguntou a ambos os candidatos como propunham trazer alguma estabilidade à economia americana e Trump foi o primeiro a responder, acusando Biden de querer fechar o país inteiro.

“Este tipo quer fechar o país inteiro e destrui-lo. Olhem para a taxa de divórcios e de alcoolismo. Estão a aumentar e não precisamos disso. A economia está a recuperar bem face à pandemia atual”, referiu Trump. Já Joe Biden, defendeu-se, argumentando de que Trump iria tornar-se no primeiro presidente dos EUA a perder a reeleição com “menos postos de trabalho no país” do que quando assumiu a presidência.

“As pessoas que perderam o trabalho são aquelas que estiveram na linha da frente do combate ao vírus. Esta ideia de querer abrir o país inteiro quando o número de mortes continua a subir é irresponsável. Não podemos tratar da economia enquanto não lidarmos com a pandemia. Ele não fez nada para ajudar as escolas ou os pequenos negócios. Para isso acontecer, ele deveria ter feito o seu trabalho enquanto presidente para podermos abrir em segurança.”

A resposta de Donald Trump? “Bom, eu trouxe de volta o futebol e as pessoas ficaram muito orgulhosas com o que fiz.”

Round 4 — Os rendimentos de Trump

À pergunta, feita por Wallace, sobre se era verdade que Trump só pagou 750€ dólares em impostos, o atual presidente dos EUA foi assertivo. “Paguei muitos milhões de dólares em impostos entre 2016 e 2017 e vão poder confirmar isso assim que os puder disponibilizar.”

Mas foi ainda mais longe ao dizer que todas as isenções de que beneficiou foram aprovadas pela administração de Barack Obama. “Antes de assumir a presidência, era um empresário privado. Como qualquer um deles, também não queria pagar impostos, a não ser que fosse estúpido. As leis estão feitas assim. É o que é”, defendeu-se.

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Não demorou muito para que, numa questão de minutos, o foco do debate voltasse a ser os ataques pessoais que, como golpes, eram desferidos a cada interrupção entre discursos. Enquanto Biden reforçou que achava Donald Trump “o pior presidente que os EUA alguma vez tiveram”, o presidente diz que “fez mais em 47 meses” do que o oponente em 47 anos.

Devido às interrupções, Joe Biden não teve oportunidade de fechar o seu discurso, ainda que tentasse falar por cima de Donald Trump e sempre com os olhos postos na câmara que o filmavam — como que a olhar diretamente para os eleitores a quem se dirigia. As sucessivas interrupções de Trump levaram Chris Wallace, incapaz de assumir as rédeas do debate, a pedir ao presidente que deixasse de interromper.

“Ele não quer que eu fale porque sabe que eu tenho a verdade. É difícil ter a palavra quando este palhaço não se cala”, comentou Biden, mais uma vez exaltado.

Round 5 — A tensão racial nos EUA

Já na fase final do debate, a discussão recaiu sobre a tensão racial e a violência policial nos EUA. Joe Biden argumentou que, embora a América nunca tenha conseguido igualdade em todo o país, nunca a nação esteve tão afastada como com a administração de Trump. 

“Estamos a falar de um presidente que, desde que tudo isto começou, tem usado tudo o que pode para passar mensagens racistas com o objetivo de gerar ódio e divisão”, defendeu. Já Donald Trump referiu não poder compactuar com aquilo que “estão a ensinar às pessoas”, como o facto de “o país ser horrível” e a ideia de que “viver nos EUA é horrível". “Temos de acabar com isso e não vou deixar que essas coisas continuam a ser perpetuadas.”

O candidato à presidência pelo Partido Democrata voltou ao ataque: “Ele é racista. Ninguém está a ensinar isso, é mentira. A única forma de unir o povo é unir as pessoas. Não há nada que não possamos fazer se unirmos as pessoas e isso passa por perceber que há quem seja discriminado pela cor de pele, pela etnia. Temos de perceber o que as ofende e o que essas pessoas sentem porque isso faz toda a diferença.”

Um dos momentos mais marcantes do debate acontece quando, ainda neste segmento, Chris Wallace pergunta a Donald Trump se estaria disposto a condenar grupos de supremacia branca que têm originado (e atacado) um pouco por todo o país. Trump, com a sua retórica inflamada, desviou as atenções. “Estou a favor disso. Recuem e aguardem, digo-lhes. Mas todos os confrontos de que tenho tido conhecimento são da extrema-esquerda e não da direita. Alguém tem de fazer alguma coisa sobre a extrema-esquerda e os ataques perpetuados pela ANTIFA”, atirou.

Biden recuperou a sua assertividade para apontar incoerências aos discurso de Trump: “Já toda a gente lhe disse, inclusivamente o diretor do FBI, de que a ANTIFA não é um grupo, mas sim uma ideologia. Mas ele continua a insistir de que é um grupo. Este tipo não faz ideia do que está a falar”, concluiu, mesmo com várias interrupções de Trump como ruído de fundo.

Round 6 — O filho de Biden e o ataque a Trump

Quando questionado sobre porque deveriam os americanos votar em Biden, este tinha o discurso preparado: “Porque sob a alçada deste presidente, ficámos doentes, pobres, fracos e mais violentos.” E aproveitando o facto de Trump ter dito estar a trabalhar em novas formas de melhorar as condições dos veteranos de guerra, o democrata recordou o filho Beau Biden, veterano de guerra que morreu em 2016 vítima de cancro.

“O meu filho esteve no Iraque, foi condecorado e não era um falhado. Era um patriota e as pessoas que ficam para trás não são falhadas”, disse Biden, referindo-se às alegadas declarações de Trump em que este terá dito que os veteranos eram uns “falhados”. Trump respondeu com a mesma retórica de sempre: “Não conhecia o Beat, mas conhecia o Hunter [o outro filho de Joe Biden]. Foi retirado do exército e dispensado do serviço por consumir cocaína.”

De frente para a câmara, Joe Biden defendeu a hora do filho: “Como tantas outras pessoas neste país e em casa, o meu filho teve um problema com drogas. Curou-se, ultrapassou isso e tenho muito orgulho nele.”

Round 7 — A segurança e a integridade das eleições

O cenário mais negro no dia das eleições americanas aponta para um esquema em que Trump, numa altura em que os votos por correspondência ainda não tiverem sido contados, declarar-se-á vencedor quando surgir à frente na contabilização. Isto porque, considera, esta será a eleição “mais fraudulenta de sempre”.

“Espero que sejam eleições justas. Se forem, estou 100% disponível para aceitar os resultados. Mas se vir dezenas de milhares de boletins de voto a serem manipulados, não poderei compactuar com isso.” Joe Biden, por sua vez, assente nos valores democráticas das eleições, foi imperativo na resposta: “Se ganhar, aceito. Se perder, aceito.”

E reforça: “Todo este discurso serve para dissuadir as pessoas de votarem, porque é isso que ele quer. Ele quer assustar as pessoas dizendo que as eleições não vão ser legítimas.” Foi, aliás, de olhos postos para a câmara, uma vez mais apelando diretamente ao seu eleitorado, que o candidato democrata pediu para que todos se mobilizassem para votar.

“São vocês quem podem determinar o resultado destas eleições. Se no vosso estado podem votar antecipadamente, votem. Se podem votar pessoalmente, votem. Votem da melhor maneira que vos for possível. Quando os votos forem todos contados, serão aceites. Se ganhar, aceito. Se perder, aceito. Se ele [Trump] diz que não tem certezas sobre o que vai fazer se perder, não interessa. Se votarmos, ele vai perder. Ele não fica no poder. Não vai acontecer. E a partir daí, acabou-se.?

Afinal, quem ganhou o debate?

Não há uma resposta concreta à pergunta. Ainda que Joe Biden tenha tentado desmontar algumas das contradições do discurso de Trump, muitas vezes perdeu a a calma e deixou-se afetar pelos ataques pessoais que, toda gente sabia, iriam acontecer.

Mas nem isso dá vitória à Trump que, quando questionado pelo moderador, fazia questão de fugir às perguntas — preferindo antes atacar o seu oponente sem que o jornalista Chris Wallace tivesse a capacidade de tomar as rédeas do debate que, por diversas vezes, não foi mais do que uma grande confusão em direto. Restam apenas mais dois debates entre Trump e Biden e desses sim, espera-se, será mais fácil apontar vencedores e derrotados.

Acontecem a 15 e a 22 de outubro.