Isabel II está, desde a tarde desta quarta-feira, 14 de setembro, a ser velada em Westminster Hall. Milhares de súbditos da monarca de 96 anos enchem as ruas de Londres, fazendo filas intermináveis para prestar homenagem à rainha, que morreu a 8 de setembro.
A derradeira cerimónia fúnebre acontece na próxima segunda-feira, 19 de setembro, na catedral de Westminster. Depois, o corpo seguirá para Windsor, onde Isabel II será enterrada na King George VI Memorial Chapel, onde já jazem os corpos do pai, o rei Jorge VI, da Rainha-Mãe e da irmã, a princesa Margarida. Dentro de alguma semanas, o corpo do príncipe Filipe será exumado e colocado junto ao de Isabel II.
Mas porque, na morte, um monarca é igual ao comum dos mortais, como é que se conserva um corpo ao longo de tantos dias, sem estar numa câmara frigorífica? A MAGG falou com Paulo Carreira, diretor geral de negócio da Servilusa e presidente da Associação Portuguesa dos Profissionais do Setor Funerário. Das diferenças ritualísticas entre os velórios dos países católicos e protestantes (em Inglaterra professa-se a fé Anglicana, sendo a rainha a chefe máxima da Igreja) à tanatopraxia, o responsável explica-nos tudo sobre este tipo de cerimónia fúnebre.
Paulo Carreira começa por explicar que a duração deste velório não é excecional, nem tem que ver com o facto de se tratar de uma figura de Estado. “Nove, quinze dias de velório, em Inglaterra, é muito comum. Não é por ser uma rainha. Dentro da Europa, os rituais fúnebres são muito distintos, embora tenham uma base comum, um período de lamento e, depois, a inumação [nr: colocação de cadáver em sepultura] ou cremação. A forma como se faz o velório é muito distinta de sociedade para sociedade."
Os rituais religiosos também pesam neste período de tempo, variando consoante os vários ramos do cristianismo, desde o catolicismo romano ao ortodoxismo, passando pela fé protestante, maioritária em Inglaterra. “Portugal e Espanha têm em comum a velocidade. O funeral faz-se nas 36, 48 horas seguintes. Países como Itália, França, dão três a quatro dias. Em países como Inglaterra pode durar uma semana, 15 dias ou mais, como os países escandinavos”, explica o diretor geral de negócio da Servilusa.
Esta duração mais longa está relacionada não só com a cultura, com a religião, mas também com um aspecto mais prosaico, mas essencial à conservação de um corpo: “condições de salubridade”. As temperaturas mais elevadas, próprias de países do sul da Europa, fizeram também com que se criassem períodos de lamento mais curtos, para evitar a decomposição do corpo. Em países mais frios, o oposto.
A forma como os velórios acontecem também é diferente nos países anglo-saxónicos. “Aqui impera um velório contínuo, a família está sempre com o corpo, desde a hora da morte até ao funeral, e nestes países não. São marcadas horas de vigília, em que a pessoa vai diariamente, uma ou duas horas por dia, visitar o corpo, receber amigos e família, e depois marca-se o funeral”, explica o responsável da Servilusa, acrescentando que, nos períodos em que o corpo não está a ser velado, permanece na sala “ou vai para a câmara frigorífica novamente”.
O que é a tanatopraxia e para que serve?
Um corpo, mesmo depois do fim da vida, é um organismo vivo. Assim que a pessoa morre, entra em processo de desintegração, acelerado pela exposição aos elementos. E é aqui que entram as técnicas de tanatopraxia, que permitem prolongar o bom estado de conservação do cadáver.
“A tanatopraxia retarda a decomposição do cadáver, permite uma significativa melhoria do aspeto do falecido, e a sua higienização”, detalha Paulo Carreira. “O objetivo é que, durante o velório, possamos ver o corpo conforme o conhecíamos."
Preservar e hidratar são as prioridades na prática da tanatopraxia que permitem conservar o cadáver. Paulo Carreira explica que, para que essa conservação aconteça, são incluídos “fluidos conservantes dentro do corpo e toda uma coloração da pele, que implica vários tratamentos com produtos, de forma a que se eliminem todos os hematomas que advêm da paragem circulatória”.
Braços, mãos e rosto são as zonas que, por norma, merecem mais atenção, uma vez que são as que ficam expostas durante o velório. “Existe também a tanatopraxia reconstrutiva, de forma a que a pessoa possa estar visualmente exposta."
Ainda que não conheçamos as causas da morte da rainha Isabel II, deduzimos que tenha morrido, utilizando uma expressão de senso comum, de velhice (falência dos vários órgãos e consequente paragem cardiorrespiratória). Apesar de a monarca não ter sofrido um trauma ou, por exemplo, um AVC, o responsável da Servilusa adianta que, para o tanatopractor, trabalhar um corpo idoso “não é nada fácil”. “Um simples AVC pode causar marcas muito difíceis de eliminar e, no entanto, não é uma morte violenta.”
O corpo de Isabel II vai ficar em câmara-ardente durante 23 horas. Paulo Carreira diz que “não há necessidade” de ser colocado numa câmara frigorífica “se a tanatopraxia for bem conseguida”. “Se fosse uma pessoa que, em vida, fosse muito obesa, com vários problemas de saúde, com muitos tratamento, mesmo aí a tanatopraxia não faz milagres. Neste caso, creio que não tiveram esse problema."
O custo deste serviço em Portugal, não se tratando de uma morte causada por acidente, que tenha deixado o corpo desfigurado, “pode rondar os 400, 500 euros”, não estando incluído nos pacotes habituais de funerais, que, em Portugal, rondam os 2.000 euros. Em Portugal, há 15 tanatopractores certificados a exercer esta atividade. Paulo Carreira explica que este profissionais são “maioritariamente do setor funerário” e, mais recentemente, jovens do sistema de ensino técnico-profissional.
Porque é que ainda não vimos o corpo de Isabel II?
Isabel II esteve em câmara-ardente em duas ocasiões diferentes até ter chegado esta quarta-feira, 14 de setembro, a Westminster Hall, onde permanecerá até ao dia do funeral, 19 de setembro. Primeiro, em Balmoral, onde foi velada por familiares e funcionários do castelo, depois na catedral de St. Giles, em Edimburgo. Embora não haja informações oficiais sobre o tema, a verdade é que o público ainda não viu o corpo da rainha Isabel II.
“Também me chamou a atenção o corpo ainda não ter sido exposto, mas parece-me uma questão protocolar. Tenho a certeza de que o corpo está impecável pelo tratamento que lhe fizeram”, diz Paulo Carreira.
Seja qualquer um de nós, uma rainha ou, no caso de uma República, um presidente, a decisão de ter um velório de caixão aberto é sempre tomada pelos familiares, trate-se ou não de uma cerimónia de Estado. “Se nos cingirmos à lei, esta é muito clara. O primeiro a decidir é o testamenteiro, o segundo é o cônjuge vivo, o terceiro, os filhos, o quarto, um familiar, e o quinto é um outro qualquer. Não conheço a lei inglesa em particular, mas creio que será igual em qualquer país democrático e desenvolvido”, esclarece o responsável da Servilusa.
Tendo a Servilusa organizado vários funerais de Estado, diz a experiência de 23 anos de Paulo Carreira na empresa, que “o protocolo toma as decisões sempre em sintonia com a família”. “Na nossa realidade, em situações desta envergadura, nunca tivemos partes que se opusessem”. O responsável da empresa dá o exemplo da morte do ex-presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, cujo corpo foi motivo de disputa entre duas partes da família, os filhos mais velhos, e os filhos mais novos, em conjunto com a mulher, Ana Paula dos Santos. “Como é que se resolveu? Decidiu o familiar que tinha o direito, que era a mulher. O Estado acordou com quem tinha poder, e decidiu."
Como é que se organiza um funeral de Estado?
Pessoas “escolhidas a dedo, com a melhor conduta e com as melhores técnicas”. Estes são os requisitos para que alguém esteja envolvido num funeral de Estado. Quem o garante é Paulo Carreira, responsável da Servilusa, empresa que já teve a seu cargo vários deste género, exemplo mais recente o do antigo presidente da República, Jorge Sampaio.
“Nos funerais de Estado em que estivemos envolvidos, são reuniões intermináveis, com todos os envolvidos das forças vivas do País e da cidade, desde as forças de segurança à proteção civil, protocolo de Estado”, explica. “Todas essas áreas têm de estar em sintonia porque são milhares de detalhes”, relata Paulo Carreira. O diretor geral de negócio da Servilusa salienta ainda, que só da empresa, quando se trata de um funeral de Estado, estão envolvidas “30 pessoas e, indiretamente, 50”.
Que tipo de caixão é usado?
“Varia de país para país”, salienta o diretor geral de negócio da Servilusa. “Em Portugal, depende do destino que se ia dar ao corpo. Se for colocado num mausoléu, num jazigo, tem de ter obrigatoriamente uma urna de metal que é selada, dentro da urna de madeira. Neste caso em concreto, creio que em Inglaterra não há essa obrigação. Tendo, no entanto, o corpo sido sujeito a uma tanatopraxia, e quando não leva esta urna metálica por dentro, o próprio local onde ele vai ser posto é hermeticamente selado”, detalha Paulo Carreira.