Patrícia Pacheco é diretora de infecciologia do Hospital Professor Doutor Fernando da Fonseca (conhecido como Amadora-Sintra), unidade de saúde que tem o maior número de doentes internados do País e que esta terça-feira, 26 de janeiro, enfrentou dificuldades nos cuidados aos doentes que necessitam de assistência respiratória, após uma sobrecarga na rede de oxigénio que obrigou à transferência de alguns doentes para o Hospital de Santa Maria e para o Hospital Militar. A situação estabilizou já na quarta-feira, 27, mas o oxigénio continua a faltar e os profissionais de saúde estão "cansados" e "frustrados".

"É uma frustração muito grande chegar aqui e perceber que se fez tanta coisa de errado", afirmou a especialista numa entrevista ao jornal "Observador" divulgada este domingo, 31 de janeiro. A infecciologista, de 51 anos, aponta o dedo ao Ministério da Saúde, cuja liderança foi conduzida de forma "muito errática", o que "teve consequências, que estão à vista", refere.

"A falta de honestidade e de transparência perturba-me, acho que é o pior que um líder pode ter e é o pior que esta liderança do Ministério da Saúde tem — não ser transparente, desvalorizar sistematicamente os problemas que existem, em vez de os encarar, em vez de dizer de uma forma muito clara que nós temos limites e que não os devíamos ter ultrapassado", afirma e condena o facto de o Ministério justificar os números com a variante inglesa. "A variante inglesa não veio só para Portugal. Os outros países também a têm, mas tomaram medidas que nós não tomámos", continua, ainda em entrevista ao Observador.

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Na opinião de Patrícia Pacheco, Portugal deveria ter antecipado medidas de combate às novas vagas de COVID-19 logo no verão, altura em que os números estavam controlados e havia margem para preparar o início das "aulas em segurança e abrir o resto da economia". Contudo, desde então que foi como que uma bola de neve: "Acabámos por ser 'surpreendidos' com a segunda vaga a partir do mês de outubro/novembro — que foi difícil mas conseguimos superar", à qual se seguiu o Natal, em que a posição de política de "querer ser simpático e popular", permitindo a "circulação entre concelhos e um Natal como é normal em Portugal" em nada favoreceu a evolução da pandemia o que, para a infecciologista, foi um "erro crasso".

"Foi um erro crasso, também, não terem adiado a abertura das aulas", afirma. "Saímos de uma altura em que há um convívio muito grande entre as pessoas e em que se espalhou o vírus ao longo de todo o território nacional e a seguir mandámos milhares de crianças e jovens para as escolas. Quanto a mim este foi um dos motivos pelos quais esta velocidade de transmissão ocorreu", continua, embora não desvalorize o poder infeccioso da nova variante, que também terá contribuído para os números atuais.

"É vergonhoso" Portugal ter de pedir ajuda internacional

De forma direta e convicta, quando Patrícia Pacheco é questionada sobre se o Sistema Nacional de Saúde vai ter capacidade para responder à sobrecarga dos hospitais com novos doentes COVID-19, a especialista afirma: "Não vai, claro que não vai".

"Tanto não vai mesmo que neste momento já se fala em pedir ajuda internacional, o que é vergonhoso. É vergonhoso quando não se preparou", afirma e continua questionando-se sobre os recursos que tinham sido anunciados pelo Governo. "Agora estamos a pedir aos médicos na reforma para virem trabalhar, então e as tais 19 mil camas e os milhares de profissionais de saúde que tínhamos em dezembro? Se realmente os tínhamos era bom que agora se mostrasse onde estão. Dizer o contrário é iludir, é mentir às pessoas e sobre isso eu não posso, enquanto médica, ficar calada e ser conivente com essa irresponsabilidade", diz com clara revolta.

Uma das medidas anunciadas por Portugal a propósito deste novo estado de emergência, foi precisamente o reforço do Serviço Nacional de Saúde através da "contratação adicional de médicos e enfermeiros aposentados", bem como de "licenciados em instituições de ensino superior estrangeiras". A ajuda externa, vem também agora da Áustria e da Alemanha, conforme foi anunciado este domingo, 31 de janeiro, por ambos os países.

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Apesar de falar em vergonha sobre o facto de Portugal não se ter preparado, Patrícia Pacheco reconhece que esta ajuda é necessária, uma vez que os doentes que estão hoje na enfermaria do Hospital Amadora-Sintra são aqueles que, segundo a norma da DGS, deveriam estar em unidades de intensivos — o que não acontece devido à falta de recursos, afetando o nível de cuidados que deveriam receber, revela a infecciologista desta unidade hospitalar.

Como é de esperar, a sobrelotação das alas COVID-19 nos hospitais afeta também outros serviços e, a continuar no mesmo ritmo, apesar das medidas do confinamento geral, a resposta a outras doenças pode ficar comprometida. "Daqui a duas semanas, vamos estar perante uma situação em que o número de internamentos hospitalares vai continuar a crescer. E à medida que cresce a patologia COVID, decresce a capacidade de resposta em patologia não COVID, quanto mais não seja por espaço físico", afirma Patrícia Pacheco.

Segundo a especialista, mesmo com o confinamento decretado a 15 de janeiro e a renovação do estado de emergência este domingo, 31, por mais 15 dias, o cenário de internamentos vai continuar a ser devastador. Apesar disso, não baixa a guarda e lembra que da parte dos profissionais de saúde haverá um esforço (continuado). "Estamos todos muito empenhados e com a enorme convicção de que estaremos todos disponíveis para fazer o que for necessário".