Lion Mama significa, em inglês, mãe leoa. Foi a alcunha dada à sul africana Nokubonga Qampi. E não é por menos: em setembro de 2017, a mulher matou um dos três homens que violaram a sua filha, de 27 anos, tendo deixado os outros dois gravemente feridos. Foi acusada pelo tribunal de homicídio e de tentativa de homicídio, só que, após um protesto público, fruto do mediatismo do caso, a acusação foi levantada. A mãe leoa saiu em liberdade.

A agressão aconteceu durante a noite. Há incoerências relativamente ao que Nokubonga, 57 anos, se encontrava a fazer. Alguns jornais, como o "Africa News", avançam que ela estaria cozinhar, mas outros, como a "BBC", dizem que ela estava a dormir. Mas todos concordam neste ponto: do outro lado da linha estava uma mulher que se encontrava a apenas 500 metros de distância. Foi ela que deu o alerta: Siphokazi, a sua filha, estava a ser violada por três homens, que todas conheciam.

A primeira reação da mãe foi ligar à polícia, mas, depois de não obter resposta, tratou do assunto com as suas próprias mãos, ainda que a intenção inicial não fosse essa. “Estava com medo, mas depois fui obrigada porque era a milha filha”, disse, citada pela “BBC”, que a 31 de março, 18 meses após o ataque, foi ao encontro da família para a ouvir narrar a história na primeira pessoa.

“Pensei que quando chegasse lá, ela já ia estar morta. Ela conhecia os agressores, eles conheciam-na, eles sabiam que ela os conhecia. Podiam achar que tinham de matá-la para ela não fazer queixa.”

Siphokazi foi apanhada de surpresa por três homens, já embriagados, ou enquanto dormia ou quando andava no meio da rua — também há incoerências quanto a isto. Assim que soube aquilo que estava a acontecer, a mãe pegou numa faca e seguiu em direção à filha, que estava a cerca de três quilómetros de distância. “Eu levei-a [a faca] para mim, para conseguir percorrer a distância entre a minha casa e aquela em que o incidente estava a ocorrer, porque não é seguro”, disse ao mesmo jornal. “Estava escuro e tive de usar a lanterna do meu telemóvel para iluminar o caminho.”

Quando se aproximou da casa onde a filha estava, começou a ouvir os gritos. Entrou no quarto e, com a luz do telemóvel, viu o que estava a acontecer. Sentiu medo e horror. A primeira reação foi perguntar aos agressores o que é que estavam a fazer à filha. “Quando eles viram que era eu, correram na minha direção. Foi aí que eu vi que tinha de me defender, foi uma reação automática”, relata, adiantando que não quer entrar em pormenores relativamente ao que se seguiu.

O depoimento desta mulher mostrou o quão perturbada ela ficou “ao ver que um dos homens se encontrava a violar a sua filha, enquanto os outros dois estavam por perto, com as calças em volta dos tornozelos, à espera de voltarem a violá-la.”

Dor e tristeza foram as palavras utilizadas pela juíza para descrever o estado em que Nokubonga se encontrava nesta altura, considerando — depois da primeira acusação — que o homicídio foi em resposta ao medo, tanto por si, como pela sua filha. Foi só quando os homens a tentaram atacar é que ela respondeu com a faca. Um, Zamile Siyeka, morreu e os outros, Xolisa Siyeka e Mncedisi Vuba, ficaram gravemente feridos. Após ter conseguido resgatar a filha, Nokubonga levou-a para casa de uns amigos que ficava nas redondezas. Quando a polícia chegou, a mulher foi presa e levada para a esquadra, onde ficou detida.

A filha foi levada para o hospital, e, apesar do trauma, estava com receio pela mãe, que podia ficar presa durante anos. Segundo a “BBC”, foram poucas as memórias que guardou do ataque, sabendo apenas aquilo que a mãe lhe relatou, depois de ter sido libertada sob fiança, dois dias após ter sido detida.

“Eu não recebi apoio nenhum, mas a minha mãe está a ajudar-me”, disse Siphokazi. “Estou a recuperar.”

Dezoito meses depois do ataque ter ocorrido, os esforços concentram-se em voltar à normalidade. Mas, logo após a agressão, o estado era outro. Segundo Buhle Tonise, o advogado que representou esta mulher, no momento em que se conheceram, uma semana depois do ataque, parecia que as duas tinham desistido. “A mãe estava muito perturbada”, disse, citado pelo mesmo canal.

De acordo com o advogado, pessoas que vivem na pobreza raramente conseguem ilibar-se, porque é difícil terem apoio. Mas aqui foi diferente. Buhle estava do seu lado, confiante de que Nokubonga “poderia argumentar de forma convincente” que tinha agido em legitima defesa, apesar do pessimismo em que a mulher estava envolta na altura do julgamento. Os media tiveram um papel crucial na reviravolta do caso, ao criarem a "lenda da mãe leoa."

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O apoio dos media e a saída em liberdade

Segundo a “BBC”, há cerca de 110 casos de violação a ocorrerem diariamente na África do Sul, facto que o presidente Cyril Ramaphosa descreveu como sendo uma “crise nacional”. A província de Cabo Oriental é a mais pobre do país — aqui o desemprego afeta 45% da população — e é aquela que tem um nível de agressões sexuais mais alto per capita, face a todas as outras regiões. Em Lady Frere, a vila com menos de cinco mil habitantes onde vivem a mãe e a filha, houve 74 casos de violação entre 2017 e 2018.

Por ser tão recorrente, é pouco comum as histórias de violação ganharem protagonismo na imprensa. O caso de Nokubonga foi diferente, em grande parte porque há uma mãe que sai em defesa da filha e, mesmo assim, é acusada pelo tribunal. Foi esta a narrativa defendida pelos media. Os órgãos de comunicação social tiveram uma influência muito grande no desfecho deste caso, porque permitiram que a população fosse estando a par do desenrolar dos acontecimentos. As pessoas ficaram tão sensibilizadas que foram angariados mais de 11 mil euros, valor que permitiu pagar a defesa legal da mulher e, consequentemente, a sua liberdade.

Nokubonga viu com os seus próprios olhos o apoio da população quando fez a primeira aparição em tribunal. “Havia muitas pessoas de toda a África do Sul. Aquilo que lhes disse foi obrigada, porque o facto de as pessoas terem enchido aquele tribunal significava que me estavam a apoiar. Deram-me mesmo esperança.”

É aí que — em outubro de 2017, um mês após o ataque — as acusações são retiradas. “Simplesmente fiquei ali, mas estava muito excitada. Estava contente. Naquele momento, soube que o sistema de justiça tinha sido capaz de separar o certo do errado, foram capazes de ver que eu não tinha intenções de tirar a vida a ninguém.”

O advogado relata o que aconteceu assim que a mulher saiu em liberdade. “Ligou à filha. Pela primeira vez, ouvi-a [Siphokazi] a rir-se. Acho que foi aí que ela disse que queria ver os homens na prisão.”

Foi no rescaldo do encerramento do caso que Siphokazi decidiu levantar o anonimato, como forma de dar força e apoio a outras vítimas de violação. “Diria a uma pessoa [que passou pelo mesmo] que, mesmo depois de um ataque, há mais além disso. Podemos voltar para a sociedade. Podemos voltar a viver as nossas vidas.”

Sobre a sua alcunha, a mulher admite que inicialmente não gostou, porque não compreendia. “Depois percebi que significava que eu era uma heroína, porque quando olhamos para os leões, eles protegem as suas crias.”

Quanto aos agressores, aquilo que a mãe lhes deseja é que eles consigam mudar. “Tenho esperança de que quando eles acabarem a sentença possam voltar como pessoas mudadas.”

Segundo o "News 24", em dezembro de 2018, Xolisa Siyeka e Mncedisi Vuba, os dois agressores sobreviventes, foram acusados de violação com uma sentença de 30 anos de prisão.