Os bombardeamentos, as negociações e os refugiados são os temas da ordem da dia sobre a guerra na Ucrânia. Mas também o aumento do preço dos combustíveis, da falta da papel e também de bens alimentares, como os cereais. A Rússia e a Ucrânia são dois dos principais exportadores de cereais a nível mundial, mas aqui importa saber: que tipo de cereais? Há ainda dúvidas que se levantam sobre um dos principais alimentos na mesa dos portugueses, o pão, como se estará o em risco de escassez ou se ficará mais caro.

Começamos pela primeira questão: que tipo de cereais produzidos pela Rússia e Ucrânia não chegam a outros países devido à guerra? "O que acontece com a questão do conflito na Ucrânia é que uma parte substancial dos cereais forrageiros, aqueles usados para a alimentação animal, vinha desses mercados, da Rússia e da Ucrânia. Enquanto o trigo panificável vem essencialmente de França para Portugal", explica à MAGG o engenheiro José Palha, presidente da Associação Nacional De Produtores De Cereais (ANPOC).

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Significa isto que Portugal está dependente, sim, dos cereais dos dois países em conflito, mas não para produção de pão, apenas para a produção animal que, por consequência, provoca défices no abastamento e preços do leite, carne e ovos. Aliás, a crise na pecuária já levou a Organização das Nações Unidas (ONU) a alertar para um cenário de escassez de alimentos que ameaça “devastar” os esforços do Programa Alimentar Mundial (PAM), que alimenta cerca de 125 milhões de pessoas.

Há risco de escassez de cereais para o pão?

Sendo a França a principal fonte do trigo panificável usado para produzir pão em Portugal, tudo apontaria para que não haja motivo de preocupação sobre a falta de cereais. Mas será ainda assim a escassez destes recursos uma hipótese?

"Neste momento, o abastecimento do trigo panificável não é expectável que venha a sofrer alguma interrupção. Porque a França está na União Europeia e não há nenhum indício de que os contratos de fornecimento que já estão feitos com as moagens nacionais venham a ter algum tipo de incumprimento. Ainda ontem estive com o presidente da associação de moageiros que diz que não é de todo expectável que haja falta", descansa o presidente da Associação Nacional De Produtores De Cereais (ANPOC).

José Palha afirma que a haver alguma falta dever-se-á apenas a uma questão de logística "por causa dos fretes marítimos e dos custos dos transportes do trigo que vêm de barco ou para o porto de Leixões ou para o Beato". Contudo, isto já não é um problema novo dado que na pandemia o mesmo aconteceu.

E o que é facto é que os erros acontecem há anos e repetem-se.

"Portugal tem historicamente um défice de cereais. Sempre teve e nos últimos anos não chegará a 10% a nossa autossuficiência em produção de cereais. Este ano, a situação ainda está mais complicada porque na altura das sementeiras, de 15 de novembro a 15 de dezembro, já era expectável uma seca e com os fatores de produção a subirem a valores completamente absurdos, nomeadamente, os fertilizantes, e o combustível, ainda antes da guerra, muitos agricultores tiveram medo de lançar as sementes à terra sob o risco de terem prejuízo e não semear", relata José Palha.

Significa isto que a dependência de Portugal relativamente aos cereais para alimentação animal e para a panificação é ainda mais superior este ano. E que reservas temos? Uma reserva privada e com capacidade para apenas um mês. "Se houver um problema de abastecimento, podemos ficar sem cereal", alerta José Palha da ANPOC.

O que explica ainda assim o aumento de preços previstos no pão?

Esta segunda-feira, 28 de março, a CNN Portugal noticiava que os preços no setor da panificação e pastelaria "vão continuar a subir". Entre fevereiro de 2021 e 2022, o preço do quilo de carcaças custou, em média, mais 13 cêntimos. O cenário traçado para o futuro não é muito diferente do padrão que se tem vindo a verificar: aumentos.

"O preço está completamente descontrolado, a valores nunca vistos, porque como a Ucrânia e a Rússia não estão no mercado, o resto do mundo vai ter de se virar para os sítios onde existe matéria prima. E está a haver agora uma especulação e uma procura maior do que havia e fez disparar os preços dos cereais", afirma.

Que o diga Marcella Fazio, que ao lado de Daniel Rebelo é responsável pela padaria artesanal Madan, na Foz Velha, no Porto, que vai ter de fazer um ajuste nos preços em breve. "Vamos ter de aumentar. Estou a esperar por um momento para que haja um ajuste", refere. Contudo, a responsável da padaria portuense, que trabalha com massa mãe, já teve garantias de que não vai haver falta de farinhas.

"Os nossos fornecedores são de Espanha e não utilizam cereais da Ucrânia e da Rússia. Portanto eles dizem que não vai existir falta de abastecimento", diz Marcella Fazio. Os cereais que usados na Madan são de origem biológica e apesar de Marcella já recorrido a moagens nacionais, revela que não compensa. "Já trabalhámos, mas o problema são os portes. Pago muito mais portes de Portugal para Portugal do que de Espanha para Portugal. Mas muito mais", reforça.

Já Daniel Aboim, da Padaria do Vizinho, em Algés e com entregas na região da Grande Lisboa, vai evitar aumentos a todo o custo. "Neste momento ainda não aumentei o preço dos pães porque é a última coisa que quero fazer", afirma. "Estou a tomar outras medidas, a nível de restruturação da produção e das entregas. Porque também fazemos entregas ao domicílio e fizemos reorganização de rotas", diz.

Daniel refere que apenas aumentará o preço do pão se realmente se registar uma situação de escassez nos cereais, mas até lá vai suportando os custos (incluindo o facto de estar a pagar o dobro do valor da farinha em relação ao praticado em dezembro de 2021) e adotando estratégias de modo a não prejudicar o consumidor final que, por si só, já não tem um elevado poder de compra para este tipo de pão em específico.

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"O pão de fermentação prolongada é um produto que por causa da componente artesanal, a qualidade e o custo das matérias primas que tem já é um produto mais caro do que o pão industrial. Com o poder económico que as pessoas estão a deixar de ter por causa da inflação e de tudo estar a encarecer, tenho tentado ter essas circunstâncias todas em conta para não ter de subir o preço", termina.

Seria possível produzir pão sem trigo?

Dificilmente. A não ser que nos limitássemos apenas a alguns tipos de pães ou estivéssemos dispostos a pagar um valor superior por pães feitos com farinhas nobres, como o farinha de trigo barbela. Mas e se o trigo escasseasse mesmo? A Padaria do Vizinho — que compra as farinhas maioritariamente a duas moagens nacionais, Paulino Horta, em Alenquer e Trimilho, em Campelos —, apresenta algumas ideias.

"Umas das soluções seria reduzir a quantidade de trigo que uso e reformular a produção no sentido de ter pães com outro tipo de características", refere o padeiro Daniel Aboim. "Por exemplo, pegar nas broas, um pão tipicamente português, e usar as aveias, começar a usar farinha de arroz. Outro tipo de misturas de cereais para criar produtos que não dependam tanto do trigo", continua. E isto já não é novidade para Daniel Aboim, que na Padaria do Vizinho usa e experimenta uma grande multiplicidade de cereais (ainda que na base da confeção esteja quase sempre o trigo).

Quanto à barbela, um trigo ancestral antigamente muito cultivado em Portugal e que tem voltado a ganhar fama nos últimos tempos, mesmo assim não seria uma alternativa para produzir apenas com cereais nacionais.

"Não faço pão 100% barbela por duas razões: pela característica do barbela que eu compro, porque o barbela por si tem uma menor quantidade de glúten e isso não favorece a que o pão depois fique com um determinado corpo, no âmbito da confeção artesanal", justifica.

A segunda razão é o custo. "Independentemente das atuais circunstâncias económicas, o preço a que costumo comprar não me compensa economicamente porque teria de vender muito mais caro e seria mais caro para as pessoas comprar um pão 100% barbela. Então ponho uma pequena percentagem de trigo", explica.

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Para fazer pão é preciso juntar trigo mole com trigo duro o que, segundo Daniel Aboim, fez com que Portugal nunca fosse capaz de ser autossuficiente ao nível do trigo panificável dado que aquele que é produzido por cá é maioritariamente trigo mole. E isto leva-nos a pensar nas idas aos supermercados ou a padarias cujos rótulos dizem "100% nacional".

"Quando dizem 'só consumimos trigos nacionais' das duas uma: ou a moagem que mói os cereais para essa padaria está a enganá-los e a dizer que é 100% nacional ou as pessoas estão a querer fazer uma manobra de marketing para cativar o público no 'o que é nacional é bom'", diz o padeiro da Padaria do Vizinho e acrescenta que isso o revolta.

As soluções para Portugal deixar de ter uma dependência tão elevada

Uma coisa é certa: Portugal não tem forma de produzir o trigo necessário para a produção de pão a nível nacional. Ainda assim, pode criar estratégias para depender menos do consumo externo e José Palha, presidente da Associação Nacional De Produtores De Cereais (ANPOC), diz como.

"Em 2018 foi aprovada uma estratégia em Conselho de Ministros, já no primeiro governo de António Costa, para a promoção da produção de cereais, que era no fundo voltar a produzir cereais onde eles eram produzidos", explica. Foram aprovadas 17 medidas, incluindo a criação da marca nacional Cereais do Alentejo e uma ajuda no âmbito da Política Agrícola Comum, como acontece em dez países da União Europeia, e isso ajudaria a aumentar o autoabastecimento em 20% — realidade que pode chegar já este ano.

Além desta ajuda à produção, o presidente da ANPOC alerta para a importância de criar uma reserva estratégica nacional de cereais, um bem essencial. "Portugal tem capacidade de armazenagem de no mínimo três meses de combustíveis e gás natural. E para cereais isso não existe, pelo menos não regulado. Existe apenas uma reserva privada que é das indústrias que consomem estes produtos", remata José Palha, lembrando que as reservas são essenciais, como tantos imprevistos nos últimos anos têm provado.