Há três anos, estava na semana da Queima do Porto, que decorreu de 14 a 17 de maio, e no meu primeiro ano da universidade. Naquela noite não vim embora de autocarro — um dos meus amigos tinha carro e eu optei por apanhar boleia. Cheguei a casa por volta das 8 da manhã, quase sem bateria no telemóvel e com pouca capacidade de ver o que quer que fosse num ecrã cheio de luz.

Só mandei uma mensagem às minhas amigas: "Já cheguei, beijinhos". Virei-me para o outro lado e aterrei. Não sou de dormir o dia todo e, por isso, acordei por volta das 12 horas, ainda de ressaca, para petiscar qualquer coisa e tentar acalmar a sensação de enjoo. Como faço todos os dias, peguei no telemóvel e fiz um update do que se passava pelas redes sociais.

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Como sempre, o meu telemóvel estava carregado de vídeos e fotografias da noite anterior, bem como mensagens do género: "Olhem este vídeo de ontem, adorava ter visto ao vivo". Nem todas as imagens têm conteúdos sexuais — algumas são apenas de jovens a fazer disparates, seja a dançar em cima do balcão do bar ou a dizer barbaridades na rua. Normalmente até me costumo rir com este género de vídeos — percebo o quão emotivos ou desinibidos nos tornamos quando há álcool a mais no sangue, ao ponto de dançar com a primeira pessoa que passa. Mas nem todos as imagens que me chegam são assim.

Naquela manhã, havia um episódio que todos os meus grupos de amigos partilhavam e que era tudo menos divertido: filmado num dos autocarros que levam os estudantes do queimódromo até à Trindade, o vídeo mostrava dois jovens numa cena sexual. A rapariga, claramente inconsciente, estava a ser masturbada pelo rapaz. Ninguém interveio, ninguém disse nada: limitaram-se a filmar, rir e aplaudir. 

O vídeo espalhou-se por tudo o que era rede social. Foi impressionante a forma como chegou a toda a gente. A televisão também fez questão de mostrar explicitamente o vídeo, como se falar do caso não chegasse. Não tardaram a cair "aqueles" comentários típicos: "Se não bebessem tanto", "se tivessem respeito por elas próprias", "se fosses minha filha", "se andassem mais tapadas", "vão todas despidas depois é isto". Este não foi o vídeo mais explicito que vi — nem sequer o mais explícito daquela noite, para ser sincera — mas por algum motivo foi alvo de mais partilhas do que todos os outros.

Esta quarta-feira, 16 de outubro, a Patrícia, uma amiga da universidade, acordou-me: "Luísa, já viste isto?". Junto a esta mensagem vinham três vídeos de relações sexuais em locais públicos, desta vez gravados na semana da Latada de Coimbra, que acontece de 10 a 12 de outubro. Dois casais foram filmados explicitamente a ter relações sexuais na rua. Mais uma vez, os vídeos foram partilhados e, provavelmente, quem conhece aquelas pessoas não teve dificuldade em reconhecê-las. 

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As imagens são explícitas. Em dois vídeos, gravados no Parque Verde, vê-se, em ângulos diferentes, o mesmo casal deitado no jardim a ter sexo. Os clips têm a duração de 10 e 35 segundos. No caso do terceiro vídeo, gravado numa zona de estacionamento perto do recinto, o casal está na esquina e é apanhado pela câmara de filmar do telemóvel de cima. As imagens têm 23 segundos. Em nenhum dos casos os envolvidos aperceberam-se de que estavam a ser filmados.

Vídeos sexuais a circular no WhatsApp são frequentes

Tenho 21 anos e acabei de sair da universidade. Fiz a minha licenciatura no Porto e durante os três anos em que lá estive apercebi-me de momentos como este várias vezes. Ao vivo — na queima do Porto ou em noites académicas — e nos grupos de WhatsApp, acabei por me cruzar com umas 12 situações deste género. Talvez mais. Algumas, como disse, dão para rir: pessoas a dançar à chuva ou a fazer palhaçadas. Outras como esta, em 2017, deixaram-se revoltada por perceber que, para aquelas 30 pessoas dentro do autocarro, foi mais importante filmar do que fazer alguma coisa pela jovem.

As consequências foram devastadoras — na sua maioria para ela, claro. Na época foi identificada, apagou as redes sociais e soube-se depois que não voltou às aulas durante algum tempo. Entre estudantes e meios de comunicação, falava-se na possibilidade de se tratar de uma violação. A estudante não apresentou queixa, e mais uma vez foi alvo de criticas pela decisão. "Tomou consciência desta vergonha e decidiu esconder-se", argumentaram alguns, como se a jovem não estivesse no direito de não o querer fazer. A teoria era apenas uma: se ela tivesse sido violada, teria apresentado queixa. Comentários ofensivos, agressivos e de julgamento espalharam-se por todo o lado.

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Mas, como disse, esta não era uma novidade. Este ano, mais uma vez na semana da queima, uma das barracas de venda de bebidas decidiu preparar desafios de carácter sexual. O desafio? Oferecer bebidas a raparigas que se beijassem ou bebessem do corpo umas das outras. Nada disto é novo — já vi vídeos deste género várias vezes —, mas nunca partilhados pela própria barraca, que chegou mesmo a divulgá-los no Instagram. Tudo para chamar mais clientes — do sexo masculino, claro. Dois dias depois, a barraca foi encerrada pela Federação Académica do Porto (FAP).

"Quem filma não é assim tão diferente de quem pratica"

Mas porque é que isto acontece? Os jovens desta geração não são diferentes dos que existiam há dez anos, explica Cristina Ferreira, psicóloga na Oficina de Psicologia. O consumo excessivo de álcool e de outras substâncias na adolescência sempre foi uma realidade, a diferença é que agora sentimos uma necessidade de partilhar esses momentos. Com 19 ou 20 anos, não temos noção das consequências dos nossos atos.

Além disso, explica a especialista, há uma "necessidade de aceitação", presente de forma diferente em cada um, e que não se resume aos adolescentes. "Faz parte do que é a natureza do ser humano”, explica a psicóloga à MAGG. Mas numa fase de formação, esta tentativa de integrar-se toma proporções maiores e mais intensas, quer sejam positivas ou negativas.

Mas e quem filma e partilha, não tem consciência?

Ainda que numa festa como a Latada nem todos os jovens estejam bêbados, estão todos na mesma fase de vida. "Quem filma não é assim tão diferente de quem pratica", explica Cristina Ferreira, acrescentando que não há consciência das repercussões. "Não há a perceção de 'Se eu filmar isto e partilhar nas redes sociais, esta pessoa pode suicidar-se um dia'. Mas isso pode mesmo acontecer".

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Não se trata de prejudicar o outro. "É a questão da gratificação imediata", continua a psicóloga, que naquele momento os jovens sentem ao partilhar as imagens. Esta sensação, em conjunto com a impulsividade característica dos jovens, leva a que sejam filmados e publicados vídeos com este cariz sexual. As consequências surgem nos dias que se seguem, com comentário desagradáveis mas que, explica Cristina, são característicos do "reconhecimento público".

O papel dos pais é fulcral desde o início. Primeiro, é importante que sejam um modelo para os filhos, demonstrando a importância de criar limites próprios e de remar contra a corrente quando esta não faz sentido — pelo menos para nós. Uma educação onde se aborde abertamente todos os temas é essencial, explica a psicóloga, "porque, adaptando a forma à idade, pode falar-se sempre sobre tudo".

Mas os jovens que surgem nos vídeos foram mal educados? Não, não existe uma relação direta. Infelizmente, argumenta Cristina Ferreira, não há como controlar estes comportamentos. Há, sim, como tentar preveni-los — mas não nos podemos esquecer de que esta é uma fase "de experiência e descoberta" que pode ir além daquilo que nos foi incutido.

"O mais importante é que se fale sem tabus sobre o assunto", garante. Que se tenha noção dos excessos e que se explique o que se passa — "mas não só aos jovens, à comunidade em geral, para assegurar a segurança de todos.” Em conversas francas e abertas, sem distanciamentos e julgamentos.

E todos nós temos este poder. Não são só os pais que podem intervir neste tipo de situações — se todos considerarmos que a partilha de vídeos com conteúdos sexuais é uma responsabilidade de todos, talvez para a próxima ajudemos em vez de filmar, rir e partilhar.