Chegámos a um ponto da gastronomia em que a palavra “experiência” parece gasta, mas não há outra forma de descrever aquilo que acontece e se leva do Encanto. É o verdadeiro significado de uma experiência, mesmo para quem acha que já sabe tudo sobre a alimentação vegetariana.

Cinzas de salvia? Nunca ouvimos falar. Tupinanbo (espécie de batata)? Idem. Foram várias as descobertas que fizemos no novo conceito vegetariano do chef José Avillez, o Encanto, mesmo ao lado Belcanto. É, no fundo, uma alternativa gastronómica para quem não come proteína animal e quer ter o prazer de degustar a alta cozinha.

"Isto é feito acima de tudo para pessoas que gostam de comer, mas com o desafio de quem não é vegetariano não sentir a falta do peixe ou da carne, e quem é sinta que está a ter uma experiência gastronómica", disse o chef à MAGG na visita ao Encanto. "Existem cada vez mais restaurantes vegetarianos, mas poucos gastronómicos. Ainda ontem tínhamos uma mesa de cinco americanas e estavam quase a chorar de contentes. Duas eram vegetarianas, três não. Viajam muito juntas e estavam a comer e a dizer que é das primeiras vezes que conseguem estar a partilhar uma refeição com tudo igual", contou.

O novo restaurante de José Avillez é um Encanto. E 100% vegetariano
O novo restaurante de José Avillez é um Encanto. E 100% vegetariano
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O mesmo não poderia acontecer, por exemplo, no Belcanto, com pratos de origem animal que não dariam para as duas vegetarianas, mas agora podem ter um belo e também encantador momento. "Tentámos seguir um bocadinho a linha do Belcanto, mas no mundo vegetal. Mais monoprodutos, à volta do mesmo produto, trabalhando mais as texturas e cozeduras, o envinagrado, o fumado, mas não estar a misturar muito as coisas para se perceber o que estamos a comer e manter a portugalidade", continuou.

O conceito já andava para ser lançado há algum tempo, mas os avanços e recuos da pandemia não o permitiram. "Já estivemos para abrir isto há quase um ano, porque achámos que a COVID-19 estava quase a ir embora e depois volta. E como é muito sazonal, por trabalharmos com legumes da estação, tínhamos testado uma carta de outono para abrir em setembro e de repente pensámos noutra de primavera", disse José Avillez.

Essa carta chegou, finalmente, em março.

"'Apetece-me um bife. Não está bom, vamos começar de novo'"

Apesar de o grupo Avillez ter sofrido com as consequências do vírus, sendo que alguns restaurantes estiveram fechados durante uma temporada, o chef decidiu apostar num conceito vegetal que, mesmo em crescimento, é um risco. "Um restaurante gastronómico é sempre arriscado. É um preço que acaba por ser alto, não vou dizer que é caro pelo que se serve, acaba por ser para um nicho, mesmo que esteja a alargar em termos gastronómicos, e o vegetariano é outro nicho ainda, por isso, estamos a juntar dois nichos. Acho que é sempre um risco, mas vamo-nos habituando a correr alguns", refere.

Há 15 anos o risco foi pisado ao apresentar alta cozinha portuguesa e gastronómica no histórico restaurante Tavares, em Lisboa, e cerca de 15 anos depois é de novo pisado, mas desta vez para "fazer o mesmo no mundo vegetal". Para a mesma excelência foi preciso testar vezes sem fim junto ao fogão, junto à mesa e após várias reformulações.

"Sentei-me aqui muitas vezes à mesa depois de estar na cozinha a provar. É diferente estar lá a provar ou a comer o prato completo aqui [na mesa] e a comer o menu do princípio e chegar a meio e dizer 'não, apetece-me um bife. Não está bom, vamos começar de novo'", conta entre uma expressão de brincadeira e seriedade. Porque é mesmo esse o objetivo do Encanto: não sentir falta da carne ou do peixe ou sentir que "só estivemos a comer verde". Acima de tudo, a ideia é haver conforto do início ao fim.

O projeto ainda é novo, mas as expectativas são sempre altas quando se trata de um restaurante de um chef que já tem duas estrelas Michelin no Belcanto (e uma adquirida no já encerrado Tavares). "Os guias, as distinções, têm de ser sempre uma consequência de algo que se faz e nunca pode ser um objetivo porque é algo que não dominamos", destaca o chef, mostrando que vai deixar o Encanto seguir o seu ritmo.

Em suma, diríamos que o Encanto é para vegetarianos, simpatizantes ou curiosos de novos sabores, mas não para aqueles que despacham o pequeno-almoço em cinco minutos em casa ou o jantam de pé antes de seguir para o banho. É para os que gostam de refeições demoradas. Isto porque depois de nos sentarmos às 19h para começar a explorar cada um dos momentos da refeição, só saímos perto das 23h.

Se as portas para o vegetarianismo em Portugal estavam ainda semi abertas, acabam de ficar escancaradas com a chegada da comida vegetariana à alta cozinha do chef Avillez. Nome de peso e que por isso abusa nas medidas da grandeza do que é feito, agora também, no Encanto.

Dos 12 momentos do menu de degustação, destacamos cinco que gostávamos que de um prato de fine dining fossem transformados numa dose que durasse durante várias garfadas. O menu custa 95€ por pessoa (com harmonização de cinco vinhos por 45€ ou oito por 65€).

Encanto

Localização: Largo de São Carlos, 10, 1200-410 Lisboa
Reservas: online ou através do 211 626 310
Horário: aberto para jantar de terça a sábado das 19h às 22h30

1. Ovo de ouro

A Páscoa ainda não chegou e nós já fizemos a nossa caça ao ovo. Descobrimos o Kinder Surpresa do fine dining, isto é, o ovo servido nos snacks do menu de degustação. Ainda não chega a ser contado nos momentos, é certo, mas para nós marcou a versão 0,5 do que ainda estava para chegar.

Os ovos para partilhar são servidos numa pequena cesta como se tivessem acabado de ser postos no ninho e vêm a brilhar com uma folha de ouro. A mente levou-nos a assumir automaticamente que era apenas um ovo de codorniz (de lembrar que o Encanto é vegetariano e não vegan) coberto com ouro, mas não: uma vez levado à boca, desfez-se a folha e rebentou o recheio de húmus que nos deixou sem palavras.

Antes de saber que isto ia acontecer, já tínhamos começado a celebrar com o espumante rosé Phaunus Pet Nat 2021.

2. Azevia de favas e sumo de tremoço

Azevia de favas e leite de tremoço
Azevia de favas e leite de tremoço Azevia de favas e leite de tremoço créditos: encanto

Agora sim, o primeiro momento. Uma pequena almofada, chamada de azevia, suscitou-nos alguma curiosidade. Só conhecemos as doces do Natal e esta propunha o conceito oposto: uma entrada salgada em vez de sobremesa. A acompanhar as azevias pousadas sobre pequenos feijões vinha um líquido que, explicou-nos a equipa do Encanto, trata-se de sumo de tremoço e leite de coco. Antes de se livrarem de nós, quisemos perceber como comer esta entrada. Não há regra, mas uma sugestão: um gole no copo, degustar a azevia, e terminar com o restante sumo de tremoço e leite de coco.

Assim fizemos, e ao contrário do que pensávamos, a azevia não deixou qualquer gordura na mão, mas o que mais apreciámos foi o sumo de tremoço e leite de coco. Era fresco, estruturado e extremamente saboroso.

3. Cinzas de sálvia

Não conseguimos sair das entradas. Os primeiros momentos foram os que mais nos deixaram a pensar "que obra de Deus é esta?" ou "dá para repetir?" — tudo mentalmente, é claro.

Nunca provámos cinzas. De qualquer espécie. Até visitar o Encanto. Aqui, ao segundo momento, são servidas cinzas de sálvia por cima de uma manteiga fumada cuja cor nos fascinou. Perguntámos, e o cinzento da manteiga deve-se ao ligeiro toque de carvão ativado que a torna assim, misteriosa.

Não se fala em manteiga sem falar em pão e o de espelta veio ainda quente para provar tudo de uma vez só. A manteiga é curiosa e deliciosa, mas o que reforçámos mesmo várias vezes por cima da fatia foram as cinzas de sálvia. Estamos fãs.

Para acompanhar uma manteiga misteriosa, um vinho misterioso regional alentejano: Procura na Ânfora 2018 - Susana Esteban.

4. Arroz com trufa preta

Saltámos alguns momentos (incluindo a gema confit com tupinambo, um tubérculo tipo batata, trufa e ainda um maravilhoso e diferente caldo de feijão), mas tínhamos de dar destaque ao arroz com trufa preta. Apesar da moda das trufas, não foi por isso que elegemos o oitavo momento para os nossos cinco favoritos.

Foi sim pela intensidade do prato, que trouxe mesmo aquele conforto que o chef José Avillez procura oferecer a quem se senta no Encanto. É um prato quente e intenso pelo facto de o arroz ser ligado com manteiga de ovelha de Azeitão. Leva ainda espinafres e, sabem que mais, levou o nosso coração.

5. Sorvete de morango e brócolos a acompanhar

Sorvete de morango e brócolos
Sorvete de morango e brócolos Sorvete de morango e brócolos créditos: Encanto

Sim, uma sobremesa com brócolos. Foi por isso mesmo que escolhemos esta para encerrar o top cinco. É uma combinação inusitada e avançamos já que aprovada porque os brócolos ligam na perfeição e sem estranheza com o sorvete de morango e o creme de coco. Esta sobremesa marcou-nos também pelo facto de vir servida num enorme casco de coco ainda gelado.

Não é de todo a sobremesa mais doce, esse lugar fica para o merengue. Provámos e comprovámos o que outros já experienciaram. "Curiosamente, sobre uma das pequenas sobremesas, um merengue, algumas pessoas têm dito que acham algo doce demais e nós levámos o açúcar ao limite do que é possível fazer num merengue antes de ele começar a ficar mal. E normalmente fazíamos, até no Belcanto, não aquela receita, mas com o mesmo merengue, com mais açúcar e nunca tivemos nenhuma queixa destas", disse o chef.

A razão? É lógica e simples. "As pessoas, depois de fazerem um menu mais vegetal, muito mais limpo, estão muito mais sensíveis depois à marca do açúcar", explicou José Avillez.

Findos os 12 momentos do menu do novo Encanto de Lisboa, à saída, sentimos uma plenitude imensa:

  • Satisfeitos e não cheios como acontece por vezes em menus de degustação com doses mais desajustadas;
  • Com a cabeça à roda com os vinhos servidos (pela qualidade e não pela quantidade);
  • A sentir que numa só noite descobrimos o melhor de dois mundos: o vegetal e o social, aqui graças ao staff genuíno, atencioso e prestável (tem sempre de haver um chato que não gosta de vinho tinto. Esse fomos nós, que em troca tivemos o privilégio de provar o Douro Avillez/Niepoort Branco 2018 por amabilidade deste mesmo staff).