No primeiro ano da MAGG, tivemos connosco um estagiário de 17 anos que escreveu um texto dirigido a todos os pais de adolescentes. Estava bem escrito e, apesar de o conteúdo ser assim em jeito de graça, o miúdo não deixava de dar um ponto de vista interessante em relação a esta gestão difícil que é a de ser-se meio adulto, meio criança, de já se ter algum pensamento crítico e de se viver sobre as regras dos educadores. O resultado não podia ter sido pior: dezenas e dezenas de comentários, escritos por adultos — sim, adultos — a arrasarem aquele miúdo. Aquele miúdo de 17 anos. Numa sala de reuniões, disse-lhe: "Regra número 1: não lemos os comentários." Não importou: com toda a legitimidade, ficou traumatizado e não quis voltar a escrever.

É irónico. No mesmo dia em que sou insultada de 'toupeira' no Facebook —  quebrei o meu princípio de ignorar a selvajaria das caixas de comentários e passei a manhã a indignar-me mentalmente com a violência bacoca de muitos dos seus utilizadores — recebo um telefonema da minha diretora, Raquel Costa, avisando-me de que o livro da Cristina Ferreira "Pra Cima de Puta" (editado pela Contraponto), não só estava já à venda nas livrarias, como tinha chegado à redação. Fui buscá-lo e deparei-me exatamente com aquilo com que andara silenciosamente a revoltar-me, mas numa proporção incomparavelmente maior e mais violenta. 'Toupeira' é para meninos. Vendo bem, até é carinhoso. 

puta pra cima
Livro de Cristina Ferreira chega esta sexta-feira às livrarias

O conteúdo deste livro é verdadeiramente chocante: são centenas de comentários insultuosos — o título é literal — que a apresentadora, diretora de ficção e entretenimento e acionista da TVI recebe nas suas caixas de comentários.

A título de exemplo, é com esta mensagem que o livro abre (excluímos as letras garrafais): "És uma grande vaca! Achas-te tão importante que não tens nada! És uma supérflua! O dinheiro subiu-te à cabeça grande cabra?!?!!? Agora tomaras tu o Rúben!!! Não passas de uma velha frustrada, cheia de celulite nessas banhas. Tens umas ancas tão grandes que quase viras o iate! Vai mas é pra casa tomar conta do teu filho, aprende a cozinhar, sua vaca presunçosa. Já não suporto ouvir falar de ti, a tua voz é de uma bimba peixeira, metes novo ao mundo!". É Magda o nome que assina.

Livro de Cristina Ferreira é sobre o bullying feito à apresentadora depois do regresso à TVI
Livro de Cristina Ferreira é sobre o bullying feito à apresentadora depois do regresso à TVI
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Este livro foi escrito por Cristina Ferreira, é sobre a experiência de Cristina Ferreira mas não é só sobre Cristina Ferreira. Este livro é um reflexo desolador do descontrolo, cobardia e desumanização na internet. São os sintomas daquilo que ainda existe numa larguíssima escala na nossa sociedade: machismo, sexismo, misoginia, bodyshaming, violência, assédio moral, difamação, injúria, desrespeito ao mais alto nível. Frustração, inveja, ódio gratuito. É a total impunidade da caixa de comentários. É, como descreve a própria, "a fealdade do mundo, dos corações e da mente humana."

O intuito, explica no livro e Instagram, não passa por se vitimizar, mas antes por lançar o debate sobre este fenómeno legalmente desregulado, que se mascara de liberdade de expressão, quando na realidade não é mais do que o desrespeito pela dignidade da pessoa humana. É a confusão entre a liberdade e o abuso. E goste-se ou não da figura, da sua voz, das suas modas, do seu registo, é preciso admitir: falar nisto é do mais pertinente que há.

É um debate necessário. É que não é só Cristina Ferreira. São muitas outras figuras públicas, cujas vidas pessoais são encaradas como sendo território livre para escorrer ódio. São todas as mulheres que "se puseram a jeito". São todas as pessoas que se insultam publicamente só porque não concordam num assunto absolutamente irrelevante. Pior, muito pior: são adolescentes, vítimas de cyberbullying, muitos dos quais acabam por não resistir ao impacto emocional da perseguição online, chegando mesmo a pôr termos às próprias vidas. Há finais verdadeiramente trágicos.

O livro está dividido por sete capítulos — excluindo o prefácio de Valter Hugo Mãe, a introdução e os contributos de profissionais das mais variadas áreas (desde a jurista Dulce Rocha, ao médico pedopsiquiatra Pedro Strecht ou ao psiquiatria Júlio Machado Vaz) — cada um referente a uma categoria de insulto recorrente: convencida, vergonhosa, traidora, manipuladora, falsa, exibicionista e gananciosa. Os nomes são bastante suaves, face àquilo que depois se verifica nas palavras de quem comenta. Entre as mensagens, Cristina Ferreira reflete brevemente sobre o tema que o capítulo trata, contando algumas histórias, lançando algumas perguntas, tirando algumas conclusões. Vejamos.

1. 

"Ela fulaninha é uma valente oportunista, devia de ganhar vergonha na cara de uma vez, ridícula... É mesmo vulgar, sem nível nenhum". 

Estamos no capítulo "Convencida" e aqui Cristina Ferreira aborda dois fenómenos. Um deles é estranhíssimo: esta ideia de que, por ser conhecida, a sua vida pertence aos outros — e, que, portanto, tem de estar permanentemente sob os escrutínio de terceiros, até nos assuntos que não são para ser escrutinados. E a coisa é extremada: tanto a veneram, como a odeiam. Mesmo sem a conhecerem.

"Quando as mulheres insinuam que foi através de favores sexuais que cheguei onde cheguei, confesso que isso me entristece bastante"

O segundo é só triste: a ideia de que o mérito de uma mulher com sucesso depende de atos de submissão — ou seja, de que ela tem de se deitar com alguém para subir na vida. O mais desconcertante? É que muitos destes comentários são escritos por outras mulheres, mulheres essas que, sem consciência, são as maiores vítimas deste sistema e o maior obstáculo na luta pela igualdade de género.

"Mas quando as mulheres fazem comentários de cariz sexual, e insinuam que foi através de favores sexuais que cheguei onde cheguei, confesso que isso me entristece bastante. Não por mim, mas por perceber que ainda há mulheres a perpetuarem esse tipo de pensamento que limita tanto a igualdade entre homens e mulheres, por ainda haver mulheres que pensam que, para serem bem-sucedidas, as suas semelhantes têm de se deitar com alguém", pode ler-se. "Que triste." Mais à frente: "Nada diminui tanto uma pessoa, nada diminui tanto as mulheres que querem ser iguais."

É triste ver como o sucesso feminino é tão mal digerido. É ainda mais triste perceber que esta má digestão é característica, na esmagadora maioria das vezes, de mulheres. Isto é claro como a água: se Cristina Ferreira fosse um homem, esta novela seria muito diferente — e, talvez, este livro nem existisse. "Os ataques também se devem ao facto de eu ser mulher. Tenho notado muito, nos últimos anos, que a questão do género é real. E eu não vou deixar que isso aconteça, não me vou calar."

2.

"Falta-te um marido menina. Uma moça cheia de dinheiro nem homem arranjas pfff. Não fazes sexo desde a criação do teu filhote. Força nisso."

No capítulo "Vergonhosa", Cristina Ferreira volta a abordar os comentários de cariz sexual, fala sobre como é constantemente objetificada e toca noutros dois assuntos pertinentes: o bodyshaming de que é alvo e desta ideia de que se está solteira é porque é infeliz, porque nenhuma mulher solteira se pode sentir bem e realizada não tendo um parceiro.

"Também é curiosa uma certa obsessão com a minha vida conjugal, sentimental e até íntima", diz. "No dia em que tiver alguém, se quiser apresentar, apresento. Se não quiser, não o farei. Não têm de saber o que se passa na minha vida, na minha cama. E muitas vezes rio-me porque também não têm de me arranjar pessoas para estar comigo na cama. Porque não é preciso."

3.

"Que desilusão Cristina Ferreira isto não se faz, odeio-te vai para o inferno"

Lá está, o estranho fenómeno: pessoas que sentem desilusão e ódio sobre um assunto que não tem nada que ver com elas. Estamos no capítulo "Traidora" e, óbvio, que se fala do drama SIC versus TVI, uma das mais mediáticas polémicas envolvendo a apresentadora.

E aqui a apresentadora fala também sobre a proteção da sua vida privada: "a Cristina que é pública está muito longe da Cristina que existe desde sempre", diz. "Quando entro em casa, o lado público fica à porta (...) Sempre quis manter um lado que ninguém conhecesse."

"Nunca partilhei ou expus publicamente a minha mãe, o meu filho, o meu pai, as pessoas que me são próximas.  Não quero que ninguém fique com eles. São meus. São o meu último reduto de privacidade, privacidade que não tenho em lado nenhum em Portugal."

4.

"Puta cabra de merda tu nem um homem consegues arranjar para te foder a cona. Puta cabra de merda."

É de notar que o comentário anterior foi escrito por uma mulher. Estamos no capítulo "Manipuladora", em que Cristina Ferreira expõe muitas acusações tacanhas relacionadas com alegados atos de má fé que cometeu para subir na vida. É a única hipótese, porque é mulher, certo? Impossível ter sido porque trabalhou para isso.

Há comentários em barda sobre a troca de favores sexuais: "Gostava que cada mulher percebesse que é merecedora de tudo, sem ter de fazer favores sexuais. Sem deixar de se manipular", escreve. "Falo sobre sexualidade, sobre igualdade de género, sobre assédio sem qualquer pudor. A sexualidade é para ser vivida. A igualdade de género é urgente ainda agora. E o assédio precisa de ser denunciado, sem qualquer receio."

Outro assunto importante: a ideia absurda de que uma mulher e um homem não podem simplesmente amigos. A ideia de que entre um e outro tem de haver sexo. "Há uns tempos surgiram comentários a sugerir uma suposta intenção minha de roubar o marido à Rita Ferro Rodrigues. Constituíram a maior estupidez de todas", diz. "É assim tão grande a dificuldade de perceber que uma mulher e um homem podem ter uma relação de amizade, que neste caso é profissional, sem que a questão sexual seja invocada?", questiona.

5.

"Não passa de uma peixeira porca de língua falsa"

Estamos, precisamente, no capítulo "Falsa", com vários comentários em que se acusa a apresentadora de criar uma personagem, de não ser verdadeira, de não se mostrar exatamente como é. Eu não conheço Cristina Ferreira, mas, de qualquer forma, creio que qualquer celebridade está no absoluto direito de criar uma persona pública, salvaguardando uma parte de si para a sua esfera privada.

De qualquer modo, a apresentadora refuta essas acusações e fala ainda noutra questão: a cobardia de quem está por detrás do teclado. Este é o grande guarda-chuva da questão. "Estou convencida de que a maioria das pessoas jamais me diria este tipo de coisas na cara", diz. "Acharam essas pessoas que aquilo que publicam, para toda a gente ler, não agride? Que não deve ser motivo de julgamento porque é apenas escrito? Sentir-se-ão cobardemente protegidas por um ecrã? Faz-me muita confusão."

6.

"Belas mamas querida Cristina, mas era preferível tirares uma foto toda nua, para deixares os homens de pau teso e grosso e ele esgalharem o pessegueiro a pensar em ti, já que é isso que gostas de fazer. beijos!!"

Bela prosa, não é? Pois. Estamos no capítulo "Exibicionista", repleto de comentários acerca do corpo da apresentadora, com muitas abordagens abjetas de cariz sexual. É importante lembrar: estamos a falar de seres humanos.

"Não somos abstrações. Eu, por ser figura pública, não sou capa de um livro. Eu existo. As pessoas precisam de começar a ter noção desta realidade. E é preciso estar atento, porque os ataques não são exclusivos e dedicados tão-somente a figuras públicas."

É verdade e basta consultar as caixas de comentários de uma qualquer notícia online: as pessoas insultam-se, agridem-se, são violentas. "Estamos a ir por um caminho perigoso. O que significa isto? Em termos sociais, que repercussões terá?".

Mais à frente, apela à criação de uma legislação: "Quero muito que haja uma legislação que regule esta situação de impunidade que vivemos. Em que se pode escrever tudo. Há pouco tempo, tive uma conversa com membros da Entidade Reguladora da Comunicação Social e perguntei: Quando é que começamos a tentar perceber a razão por detrás de tanta agressividade?".

Assume que a solução é complexa: "Não será uma lei fácil de redigir e levará tempo. Temos de começar a falar sobre o tema e a agir. Não posso ter seja quem for a escrever isto na minha página de Instagram ou de Facebook: 'és uma vaca'. Não posso."

7.

"Velha de merda só neste pais uma peixeirona vingativa a ganhar o que ganha Portugal no seu melhor"

Chegamos ao último capítulo assinado pela apresentadora. O mais importante a reter: "Escolho eliminar os rostos e os apelidos das pessoas cujos comentários estão neste livro. Deixo apenas o primeiro nome, ou parte do nickname, para que se possa identificar o género", escreve. "Não quero vingar-me de ninguém. Quero apenas que analisem o momento social que estamos a viver. (...) Guardo apenas se é homem ou mulher. Há uma disparidade muito grande. E essa avaliação merece ser feita. A grande maioria das pessoas que me atacam é composta por ser mulher."

Atacada por mulheres, por ser mulher. Uma mulher independente, uma mulher bem sucedida. Goste-se ou não, uma mulher que chegou onde poucas mulheres chegam: ao sítio dos homens. Não é o que todas queremos?

Nota de redação: A Associação de Apoio à Vítima tem uma secção online dedicada ao cyberbullying. Consulte mais informações aqui ou peça ajuda através do 707 200 077 (10h00-13h00/14h00-17h00 – dias úteis) ou do e-mail APAV.SEDE@APAV.PT