A pergunta tem uma só resposta? Não. Queremos dizer-lhe se deve ou não gastar o seu dinheiro numa refeição? Também não. Visitámos o Feitoria, restaurante do Altis Belém Hotel & Spa que, desde maio, tem aos comandos da cozinha André Cruz. Após a saída de João Rodrigues, o chef lisboeta de 35 anos criou o menu Semente, que valeu, em 2022, e pelo 11.º ano consecutivo, a renovação da estrela Michelin ao Feitoria.
Já em 2023, André Cruz ganhou o prémio Chefe Revelação 2022, nos Prémios Mesa Marcada, atribuídos pelo site homónimo especializado em gastronomia. Semente é o nome do menu de degustação constituído por oito momentos (trocado por miúdos, oito pratos, que vão desde as entradas à sobremesa) e custa 180€.
O que se prova em janeiro pode não ser exatamente o mesmo que será servido em abril ou em agosto porque André Cruz, apaixonado por tudo o que é sazonal, local e português, vai transformando cada criação consoante a época. Tivemos a oportunidade de acompanhar os vários momentos da refeição com o pairing de vinhos selecionado pelo sommelier Pedro Ramos (e que tem um custo de 95€).
Passo a passo, eis o que provámos
A refeição começou acompanhada por um Champagne Dehours & Fils - Grande Réserve.
1 - Terra e Mar
Helófitos crocantes e frescos, com gamba do Algarve e maracujá, emparelhados com o taco de choco, papada de porco, pickle de cebola e pimento preservado. O último elemento desta tríade, beterraba e ouriço do mar (sabores para paladares experimentados). Aparentemente divorciados, os elementos da terra e do mar conjugam-se para um início de experiência intenso, que nos deixa na expectativa de saber o que por aí vem mais. Gostávamos de ter sentido a beterraba com mais pungência.
O couvert não conta para as contas dos momentos, mas é sempre um momento de alegria quando para a mesa vêm fatias de pão mornas, acompanhadas com manteiga e azeite. Um pão de trigo, outro de centeio com pinhões e frutos secos, além de uma focaccia com flor de manjericão, serviram de veículo para provar os dois tipos de manteiga (uma de ovelha e outra de vaca) e os dois tipos de azeite. Quem acha que, num restaurante de fine dining se passa fome, é porque nunca provou estes pães.
Prosseguimos a refeição com um Paxá - Crato Branco 2021.
2 - Tunídeos
O lírio branco dos Açores tem uma ligeira cura em sal e citrinos com azeite de louro verde, feito no Feitoria. Já o atum é grelhado na brasa e chega em dose dupla, acompanhado de tártaro da barriga de atum, caviar e caldo de hibisco nacional. Há um sorriso inevitável quando se conjuga o sabor do hibisco, que traz à memória chás bebidos na infância, com a riqueza opulenta e sofisticada do atum e do caviar. Sabemos que estamos num hotel de cinco estrelas, numa sala com vista para o Tejo, mas estamos noutro lado, a correr de pés descalços.
3 - Horta e lavagante azul do Atlântico
Chawanmushi é o nome que se dá ao creme de ovos feito ao estilo japonês, geralmente comido em pratos salgados e com uma textura mais gelatinosa do que o congénere ocidental. No Feitoria, o chef André Cruz confecciona-o como receptáculo do lavagante azul, cozido ao vapor e com coentros. O prato, inspirado no creme de marisco português vem emparelhado com cebola assada, enguia fumada de Aveiro, ervilhas e flores da estação.
O marisco, intenso, impossibilita desfrutar os sabores delicados das ervilhas. Seriam ótimos servidos separadamente, mas em conjunto, anulam-se. Sentimos falta de algum elemento de acidez para potenciar a frescura das ervilhas.
Prosseguimos a refeição com um Zillinger - Numer - Gruner Veltliner 2020.
4 - Bacalhau, pimenta verde e gema
Sames de bacalhau estufados, amido de batata, badejo de Peniche, texturas de salsa, gema de codorniz e trufa negra e pimenta verde liofilizada bio. Um prato que é, ao mesmo tempo, um hino à portugalidade e um teste aos paladares menos habituados à textura desafiante dos sames, que são gelatinosos e podem, para os novatos, causar alguma estranheza.
André Cruz explica que, ao invés da tradicional azeitona, usada no bacalhau à Brás que serve de inspiração ao momento, escolheu a trufa. Teríamos preferido a oleosidade fresca do fruto à intensidade do fungo mas, vá, trufa é trufa.
O vinho seguinte foi Filipa Pato - Nossa Calcário - Bical - 2021.
5 - Cozido do mar
Robalo com puré de nabo, amêijoa branca, lingueirão e perceve. Alga confitada, couves e caldo das espinhas e cabeças do peixe. O prato é inspirado no cozido à portuguesa, mas numa versão marítima. A horta está presente na couve de Bruxelas. Um prato que é pura felicidade e simplicidade, com sabores limpos e reconfortantes e que respeitam o peixe na sua estrutura e textura.
Passamos para o tinto, com um Vietti - Langhe - Nebbiolo - 2019.
6 - Gamba do dia e cogumelos
A gamba do dia foi, na realidade, um camarão violeta do Algarve, acompanhada de arroz de cogumelos selvagens e biológicos, emulsão de boletos, molho de laranja e molhos das cabeças flamejadas com aguardente velha. E é neste momento que André Cruz passa a perna a quem estava à espera de mais um momento e traz para a mesa o tacho. Sirva-se quem puder (e quem quiser) de mais arroz de cogumelos, denso e escuro como se fosse chocolate salgado. Por nós, se fosse para trocar a carne pelos vegetais, era este arroz que queríamos à mesa todos os dias.
Seguimos a refeição com Quinta da Pellada - Mulher Nua - 2018
7 - Presa de porco do Alentejo biológico e feijoada de raízes
Feijoada quase no fim de uma refeição? Pois é. A presa de porco alentejano grelhada é acompanhada com feijoada com feijão papo de rola e raízes de cenouras, cherovia, salsifi e topinamburgo, massa de pimentão caseira e couve. André Cruz gosta de provocar sobressaltos nos comensais que, sem esperar, são surpreendidos com a intensidade do porco e do feijão, já quando esperavam estar na reta final da experiência. É intenso? É. Mas apreciamos o atrevimento disruptivo.
Terminamos a refeição com Champagne Pierre Brocard - Contrée Noire - Pinot Noir - 2017
8 - Chocolate, frutos vermelhos e malagueta
O momento mais aguardado para quem adora sobremesas, o mais temido por quem está à espera de uma desilusão (ou uma bomba de açúcar para ficar indisposto). Pertencemos ao segundo grupo e, caramba, como fomos surpreendidos. Começamos por onde? Pela combinação mais — vá, não temos vergonha de o dizer — orgásmica que já experimentámos numa sobremesa: chocolate com trufa negra, acompanhados de caramelo salgado, avelã do Douro e flor de sal. Os sabores podem comparar-se, com as devidas distâncias, ao primo milionário e excêntrico do Ferrero Rocher. Mas não ficamos por aqui.
Para desenjoar (ou salivar por mais), o gelado de malagueta e framboesa, fresco e picante e, para aquele aconchego final, mais delicada e suave pannacotta que já provámos, coberta com uma doce e exótica capa de mel e cardamomo.
Talvez a ordem dos pratos não seja a ideal, talvez sejamos nós que não estávamos preparados para os 'salto' que André Cruz dá. Mas visitar o Feitoria, pelo menos uma vez na vida, é perceber que ainda conseguimos ser surpreendidos. Mais que não seja pelo primo milionário e excêntrico do Ferrero Rocher.
* A MAGG experimentou o menu Semente do chef André Cruz a convite do Feitoria